Sugestões à nova direção da Ancine

No primeiro dia útil de 2018 o Ministério da Cultura nomeou o novo presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Nos dias seguintes o Diário Oficial da União trouxe uma quantidade expressiva de exonerações e nomeações de novos ocupantes para os cargos internos da agência. O objetivo é público e notório: colocar um fim aos 10 anos de presidência de Manoel Rangel, do PCdoB. Mas apenas a troca de pessoas representa muito pouco diante dos desafios de construção de uma agência reguladora transparente, republicana e eficiente. É preciso alterar também a estrutura de funcionamento da agência e seus instrumentos normativos. O presente texto visa sugerir um conjunto de medidas a serem adotadas pela nova gestão da Ancine.

(1) Poucos governos do mundo possuem a quantidade de informações sobre o conjunto de obras audiovisuais que circulam em seu mercado que a Ancine obtém através do Certificado de Produto Brasileiro (CPB) e do Certificado de Registro de Títulos (CRT). Mas essas informações não servem para nada, pois a agência não dispõe de um efetivo banco de dados e das ferramentas necessárias de business inteligence. A simples pergunta sobre quais obras financiadas com recursos públicos possuem coprodução com o Grupo Globo e qual a participação da Globo nessas obras demandaria um trabalho hercúleo, de vários servidores, para ser obtida. Atualmente a área de tecnologia da informação está subordinada à mesma secretaria que, entre outras coisas, administra os recursos humanos e cuida das compras da agência, do papel higiênico ao toner das impressoras. É fundamental dar à área de TI o status de superintendência de gestão da informação, que vá muito além do tradicional suporte de informática.

(2) Exceto por aquelas informações que sejam de caráter sigiloso, esse banco de dados deveria estar disponível para o uso por parte da sociedade civil e das universidades brasileiras. De posse dessas informações, seria mais fácil exercer uma fiscalização cidadã das políticas adotadas pela Ancine.

(3) Atualmente a Superintendência de Registro (SRE) funciona como um simples cartório de registro das obras audiovisuais e das empresas que atuam nesse mercado. A partir do suporte da gestão da informação, a atual SRE deveria ser transformada em uma espécie de IBGE do audiovisual, dividida em duas áreas. Uma de direito autoral, responsável por produzir informações sobre os ativos intangíveis que circulam no mercado. Outra de direito societário, capaz de gerir as informações obtidas com as empresas do setor. Por informações entenda-se não apenas aquelas de natureza cartorial, mas também o que for capaz de construir um cenário real do mercado. Por exemplo, qual a distribuição regional das empresas, quantas possuem, em cargos de gestão, negros e/ou mulheres, quantos empregos formais são gerados, qual o perfil de renda dos trabalhadores do setor, etc, etc.

(4) Dispondo dos recursos TI e das informações produzidas pela SRE, a atual Superintendência de Análise de Mercado (SAM) deveria funcionar como o "IPEA da Ancine", com a obrigação de fornecer à diretoria a necessária inteligência para produzir uma verdadeira política industrial para o setor. Para isso, a primeira medida seria repassar para a Superintendência de Fiscalização (SFI) as tarefas de fiscalização de cotas de obras audiovisuais brasileiras em salas de exibição e em canais de TV paga, bem como da cota de canais brasileiros nos pacotes de TV paga. Não faz nenhum sentido que a fiscalização das cotas não esteja na superintendência responsável pela fiscalização. Isso permitiria à SAM se focar na sua atividade-fim, que é a produção de conhecimento sobre o mercado e a construção de cenários futuros.

(5) Da mesma forma, e cumprindo uma antiga determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), a Coordenação de Prestação de Contas deveria ser retirada da Superintendência de Fomento e repassada para a SFI. Essa mudança visa impedir que a mesma instância interna que executa o fomento fique responsável por fiscalizar o uso do dinheiro. Assim, a prestação de contas seria transformada em uma espécie de compliance do fomento.

(6) Atualmente a Ancine possui uma Secretaria de Políticas de Financiamento, uma Superintendência de Fomento (SFO) e uma Superintendência de Desenvolvimento Econômico (SDE). As três instâncias são responsáveis pela área de fomento. Ao mesmo tempo em que existe sobreposição de atividades, também há a dispersão de outras. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), por exemplo, tem responsabilidades espalhadas pelas três instâncias internas. Se o objetivo é racionalizar e desburocratizar a gestão, seria importante reunir o fomento em uma única superintendência.

(7) Assim como diversos outros órgãos públicos, a Ancine possui enormes problemas quanto a circulação interna de informações. Exceto os servidores nos cargos comissionados mais altos, o corpo funcional não tem a menor idéia de para onde a agência caminha, quais são os objetivos, metas e prazos e os meios que serão utilizados para alcançá-los. É comum que uma demanda simplesmente desapareça antes de sua conclusão, sem que os servidores tenham idéia de para que foi necessário tanto esforço. Em geral os servidores vivem do famoso "rádio-corredor" e isso é péssimo para criar o necessário comprometimento do corpo funcional. Se ninguém sabe para onde está indo, como se comprometer com o resultado a ser alcançado? Um instrumento fundamental para mudar esse estado de coisas é transformar Assessoria de Comunicação (ACO) da atual assessoria de imprensa do presidente da agência em uma instância responsável pela política de comunicação da Ancine, tanto interna quanto externa. Por exemplo, seria fundamental criar um veículo interno de comunicação capaz de servir de elo entre a diretoria e as centenas de servidores da Ancine.

(8) Até 2017, mais da metade do tempo de trabalho de um diretor da Ancine era gasto revendo um por um os relatórios técnicos para aprovação dos pleitos de fomento. Isso porque tais pleitos só poderiam ser aprovados pela própria diretoria. Ainda que possa não ter sido esse seu objetivo, tal conduta permite o surgimento de práticas fisiologistas da diretoria com o mercado, com os diretores se tornando atravessadores das demandas de fomento das empresas produtoras. Quanto mais impessoal e técnica for a decisão de fomento, melhor. Na gestão da ex-presidente Débora Ivanov foram dados passos importantes para transferir as aprovações para a área técnica da Ancine, tornando a Diretoria Colegiada apenas uma câmara recursal. É fundamental consolidar e aprofundar essa mudança.

(9) Além da estrutura interna, torna-se necessário rever o atual cipoal normativo. A Ancine possui mais de 100 instruções normativas (INs), entre revogadas total ou parcialmente e em vigor. Há casos graves de conflitos conceituais, quando uma IN tem definições diferentes de outra IN. Muitas possuem um viés excessivamente burocrático. A imensa maioria é mal escrita e não segue as regras básicas de redação legislativa. Esse tipo de situação acaba contribuindo para a falta de isonomia entre o pequeno e o grande agente de mercado. Enquanto o pequeno fica perdido no interior desse cipoal, o grande dispõe de assessoria jurídica e do networking dentro da própria agência para saber que rumos deve tomar. Um corpo normativo enxuto, bem escrito, claro, não conflitante e desburocratizado é elemento central para a construção de um fomento republicano.

(10) Um elemento central para o funcionamento de qualquer órgão público é a necessidade legal de motivação do ato administrativo. O ordenamento jurídico permite que o gestor público possa exercer, mas não de forma absoluta, o poder discricionário para aqueles atos que não são vinculados. Ou seja, para aqueles atos onde é possível que o gestor público atue a partir de critérios subjetivos. Justamente por isso, é fundamental que tais atos discricionários sejam embasados em uma criteriosa motivação. A Ancine, como a rigor boa parte do aparelho de Estado, precisa avançar muito na construção de motivações bem fundamentadas e claras. Não basta que o gestor público alegue o seu poder discricionário. É fundamental que ele se justifique perante a sociedade.

(11) Por fim, há sete anos a Ancine vem definindo como uma de suas metas prioritárias a redação de uma instrução normativa de "direitos" que defina quais os direitos e deveres dos coprodutores que aportam recursos públicos de renúncia fiscal. Por exemplo, quais os direitos que a Globo pode possuir em um filme independente no qual ela invista recursos públicos de renúncia fiscal? Em que momento a aquisição de direitos por parte do coprodutor termina por descaracterizar a natureza independente da obra audiovisual? Embora pautada como prioridade desde 2010, até hoje essa instrução normativa não foi confeccionada e muito menos aprovada.

O atual cenário do governo federal e do Ministério da Cultura, em particular, não me torna muito esperançoso de que o conjunto de tais medidas venha a ser adotado. Mas há sempre a possibilidade de que sejamos surpreendidos. (*- O autor é servidor da Ancine na carreira de especialista em regulação da atividade cinematográfica e audiovisual).

12 COMENTÁRIOS

    • Acho impossível que façam qualquer convite pra mim. Mas, se fizessem, eu agradeceria e diria que não, que não pretendo aceitar cargo de confiança nesse governo. Tornei i texto público justamente para que as ideias possam ir além da minha pessoa.

      • Bom, mas esse governo foi eleito em 2014; afinal, o Temer era vice da Dilma, Moreira foi ministro da Dilma, Meirelles foi ministro do Lula, Padilha ocupou cargos nos governos Lula e Dilma, Juca foi líder dos governos Lula e Dilma…e muitos outros, até o Geddel! Então, se você ou alguém aqui ocupou cargo em qualquer governo de 2003 a 2016…participou do atual governo do PMDB ;). É tudo igual.

        Noves fora a provocação, as propostas são boas. A Ancine precisa e merece mudar. A chance existe. Se vão querer fazer é outra coisa.

  1. Muito bom. Difícil, como aponta o autor, se imaginar que o atual governo tenha tamanho compromisso republicano. Mas Gindre demonstra que existe um caminho possível.

  2. Concordo com os itens 8,9, 10 e 11. A Agência deve regular apenas o que a lei determina. O serviço do Seac é da livre iniciativa privada e não publico. Quem quer o serviço tem que pagar e ser assinante. Portanto cumprir o artigo 3 da lei 12.485/11. Menas interferência na livre iniciativa "privada" escutar quem está nas pontas, pois são elas que iram aceitar a primeira exibição para as produções independente. Respeitar o escopo do parágrafo único do primeiro artigo e não misturar Radiodifusão (Anatel) que tem seus próprios fundos trazendo esses Radiodifusores para o nosso fundo das telecomunicação. Parar de querer legislar ( Obrigação do Congresso nacional) é apenas regular o mercado sem previlegios para este ou aquele grupo. Apenas pequenas é fácil decisão e opinião de um programador do interior do Brasil. Já se passaram mais de 7 anos e não regulamentaram meu setor. Tudo hoje é facultativo, apesar de mais de 100 (In's) Nossa sobrevivência para quem vive fora do eixo depende de melhores políticas pública voltado para o setor privado , não só envolvendo a união, como os setores, assinantes e sociedade civil. Não existe democracia sem diálogo com todos os atores envolvidos incluo a sociedade civil. Queremos colaborar para o desenvolvimento daquilo que construimos neste mais de 20 anos da lei do cabo e hoje lei do Seac. Tamos juntos pra discutirmos e criar as câmaras setoriais bem representativa ouvindo todas as vozes. O fomento para 3º setor da sociedade civil também faz parte deste escopo no artigo 32 item VIII e não pode seguir a regra de mercado que visam lucros.

    • "MENAS" INTERFERÊNCIA? SÃO ELAS QUE "IRAM" ACEITAR…
      Você está de sacanagem?
      Menas interferência na livre iniciativa "privada" escutar quem está nas pontas, pois são elas que iram aceitar a primeira exibição para as produções independente.
      Preguiça de ler o resto….

  3. Sonhador…
    Se a nova Diretoria quisesse realmente mudanças teria começado se preocupando com meritocracia e não apenas afastando todos que supostamente eram ligados à antiga Diretoria.
    Muda, muda, pra continuar tudo igual. Brasil!!!

  4. Muito bons os caminhos e sugestões apontados: o cipoal normativo é um enorme entrave, desde muito conhecido, mas com pouca disposição a enfrentá-lo.
    Seria mto bom ter a frente dessas mudanças alguém com visão do todo e capaz de levá-las a cabo. Yuri, mesmo que o título do texto fosse o sugerido por vc, é preciso olhar pro todo, pra floresta e não pra árvore.abs

  5. Boas propostas. Porém o mais importante para uma nova gestão bem sucedida será um investimento maciço em TI e convencer os servidores dos benefícios dos novos caminhos. O Diretor Presidente anterior tentou impor uma política UP to Down e sofreu muito até entender isso. Só o tempo dirá…

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