Consulta do CGI abre debate necessário

Há cerca de um mês, apontamos, por meio de um editorial, alguns aspectos que reputamos relevantes em relação ao papel do Comitê Gestor da Internet e quanto à necessidade de discutir sua atuação. O CGI ganhou relevância nos últimos anos, com um papel definido em lei para opinar sobre a questão da neutralidade de rede e participar das políticas de "promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet".  Este papel pode ser crucial em muitas das questões que a sociedade discutirá daqui para frente.

Recentemente, o governo apresentou uma consulta pública na forma de questionamentos em que traz muitos dos aspectos que havíamos levantado para o centro do debate. Não nos parece haver, no processo ou na documentação divulgada para apoiar a consulta do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, nenhuma falta de transparência ou algo que denote um jogo de cartas marcadas, até porque não existe nenhuma proposta concreta. Ainda assim, algumas entidades que militam nas questões de Internet têm se colocado contrárias à consulta, acusando um alegado #GolpenoCGI. A "Internet Society Brasil" saiu nesta segunda, 14, com manifestação semelhante, pedindo o cancelamento da consulta. Destaque-se que há algum grau de divergência entre os diferentes movimentos sociais que atuam nas causas da Internet, como  a manifestação do Partido Pirata.

É evidente que se existe uma consulta do governo, existe uma intenção de promover mudanças ou, no mínimo, colher subsídios para tal. Mas daí a achar que a Internet no Brasil está em risco, sob ataque, ameaçada ou sob censura existe uma distância muito grande. Primeiro, porque o CGI não se confunde com a Internet nem o órgão tem papel regulador ou fiscalizador. Aliás, a maior parte das deliberações do comitê não tem nada a ver com liberdade de expressão, direitos dos usuários e expansão da infraestrutura. Basta consultar as atas.

Ainda assim, o debate sobre as atribuição do CGI não é novo nem pegou nenhuma pessoa que esteja envolvida com o comitê de surpresa. Pelo menos desde o começo do governo Dilma Rousseff uma reforma do Comitê Gestor vem sendo considerada dentro de algumas esferas do Executivo e manifestada, mais ou menos diretamente, inclusive por alguns conselheiros e ex-conselheiros.

O CGI não pertence ao governo ou a um ou outro segmento da sociedade civil, academia ou entidade empresarial, muito menos ao colegiado de plantão. É verdade que o Comitê Gestor é um ser difícil de ser definido, mas definitivamente é um ente de interesse público, já que é criado por um decreto presidencial e responsável pela gestão (inclusive cobrança) dos domínios .br e consignação de endereços IP no Brasil, que são recursos escassos e/ou essenciais dos quais dependem todos os que participam da Internet.

Em um processo de consulta pública de uma ação governamental, pode-se pedir mais prazo para contribuições. Pode-se pedir a realização de audiências públicas. Pode-se pedir que o governo preste mais esclarecimentos sobre o que está sendo discutido. Mas pedir que uma consulta deixe de existir é algo que não se vê todos os dias. Passa a impressão de que não se quer o debate.

Existe um elevado grau de politização no debate sobre o papel do CGI. A oposição ao governo Temer é um direito de qualquer entidade. Mas se o governo é ilegítimo para fazer este debate, também é ilegítimo para nomear ministros, cobrar impostos ou mesmo nomear integrantes do CGI. Querer impedir o governo de apresentar e discutir uma proposta, sem sequer indicar em que esta proposta é danosa ou ruim, parece ser a pior forma de politizar a discussão.

Alega-se ainda que o governo poderia ter submetido previamente ao próprio CGI sua proposta de consulta. Vamos supor que os integrantes do Comitê Gestor tivessem recebido com antecedência a lista de perguntas, ou que o governo tivesse dito antes que pretendia mexer no Comitê Gestor. Isso não daria a estas entidades uma informação privilegiada em relação a outras que eventualmente não tenham sido eleitas? E por que o próprio colegiado do CGI não propôs, ao longo destes anos, um debate com a sociedade sobre seu papel e sobre sua representatividade? Esse assunto não é novo. Repita-se: há anos os representantes do governo, ex-integrantes do CGI e diversas entidades, empresariais ou não, questionam o papel do Comitê Gestor. Qual foi a resposta do CGI a estes questionamentos? Ou nada foi feito, na expectativa de que o governo tomasse a iniciativa, como aconteceu agora?

Tampouco a falta de "consulta prévia" parece ser algo grave o bastante para comprometer o debate. Ao que consta, o CGI não discutiu profundamente com o governo, com a devida antecedência, a necessidade de elaborar o marco legal da Internet, por exemplo, ou se discutiu isso não está registrado nas suas atas. A abertura do processo de consulta pública do Marco Civil, em outubro de 2009, foi formalmente apresentada pelo Ministério da Justiça ao colegiado do Comitê Gestor apenas uma semana antes de colocada ao público. A primeira minuta do Marco Civil também não foi debatida com o CGI, cuja primeira manifestação oficial de apoio ao projeto de lei só aconteceu em 2012, dois anos depois que a discussão sobre um marco legal para a Internet foi aberta. E a regulamentação do Marco Civil editada em 2016 também não passou por nenhum tipo de consulta prévia ao Comitê Gestor.

De novo, é essencial que o CGI passe por um processo de reflexão sobre o seu próprio papel, representatividade e abrangência, mesmo que seja para concluir que está tudo ótimo como está. Mas este debate precisa acontecer logo, pois existem questões críticas que começam a se definir em relação à proteção de dados pessoais, modelos de negócio na Internet, privacidade e segurança, para citar alguns exemplos, que precisarão de uma arena qualificada para acontecer.  A consulta pública é uma forma de catalisar o debate sobre o papel do CGI nestas e em outras questões. Obviamente é preciso ficar atento aos resultados e encaminhamentos decorrentes da consulta, mas achar que nada precisa mudar é o mesmo que dizer que a Internet não mudou de 2003 para cá. Esperar até 2019 para iniciar esta discussão, até que um novo governo eleito tome posse, é incompatível com o ritmo da evolução do mundo digital.

5 COMENTÁRIOS

  1. Um texto muito lúcido. Parabéns.
    Dizer que uma consulta é perigosa equivale a ter medo de ouvir o que a sociedade pensa sobre o assunto.
    O CGI é um orgão multisetorial, mas a sociedade e seus atores não são estáticos eles mudam com o tempo e o CGI precisa de renovação. Acho bem vinda a consulta e é papel de todos garantir que tenha um resultado satisfatório.

  2. O fato de uma consulta pública para propor mudanças no CGI não ser debatida entre/com os membros do próprio Comitê, antes de ser lançada, não lhes parece estranho?

    Talvez tal decisão do governo não seja tão unilateral e autoritária quanto foram a da extinção do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e do fim do mandato de presidente da empresa, abolindo seu caráter público. Aliás, não li sequer uma linha da TelaViva repudiando tal decisão arbitrária do governo Temer para com a comunicação pública.

    Os interesses do mercado de comunicações avançam cada vez mais sobre o governo de plantão, ditam as ordens e mostram seu poder nos espaços institucionalizados de participação social, como o Conselho de Comunicação do Congresso (a cada mandato mais desfigurado em favor do empresariado) e o CGI.br (a bola da vez dos grandes players da comunicação).

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