Auditoria da Ancine sobre Artigo 39 gera apreensão no mercado

(Atualizada às 22:00) A divulgação dos termos de uma auditoria realizada pela Ancine em relação à aplicação de recursos do Artigo 39 em coproduções realizadas por produtoras brasileiras e programadoras internacionais está sendo vista por diversos atores de mercado ouvidos por este noticiário como um "bombardeio amigo" que a agência está promovendo no mercado de TV paga e produção audiovisual. O jornal Valor Econômico desta terça, 22, traz uma reportagem revelando que auditoria interna da agência com possíveis irregularidades foi distribuída aos órgãos de controle e ao Ministério Público, e que esta auditoria apontaria para um "desfalque" de R$ 350 milhões ao Fundo Setorial do Audiovisual. O entendimento de fontes que tiveram acesso ao documento é que a Ancine acabou transformando em caso de polícia questões que envolvem sobretudo divergências sobre processos e burocracias internas da agência, sem que houvesse ainda o pleno contraditório ou esclarecimentos das partes envolvidas, e que o clima de incerteza que se gera com esse movimento pode colocar em risco um dos mecanismos mais eficientes de coprodução existentes hoje no mercado.

A argumentação de programadoras e fontes ligadas ao mercado de produção, ouvidos na condição de anonimato, é de que não teria como ter havido prejuízo ao fundo porque não existiriam casos em que os recursos tenham sido desviados ou repassados sem aplicação. O que houve foram divergências na contagem de prazos e mudanças de projetos em que os recursos foram aplicados. As fontes ressaltam ainda que estes recursos sequer fazem parte do Fundo Setorial do Audiovisual, já que eles só entram no saldo do FSA caso não sejam aplicados. Há ainda dúvidas em relação aos números relacionados aos problemas que supostamente teriam sido detectados pela auditoria, conforme reportagem do Valor: os R$ 350 milhões citados na reportagem como desfalque no FSA correspondem à totalidade do que foi recolhido pelo Artigo 39 no período da auditoria (2013 a 2017), ou seja, seria como dizer que todos os recursos recolhidos no período estivessem irregulares, o que é matematicamente impossível, já que, segundo os dados da própria Ancine, foram investidos em projetos específicos R$ 270 milhões no período, ao passo que de 2013 a 2017 o mecanismo do Artigo 39 gerou uma arrecadação de R$ 356,4 milhões.  A reportagem, em outra passagem, fala que haveria problemas em 64 projetos que totalizam R$ 200 milhões e evasão fiscal de um total de R$ 157 milhões. A auditoria é sigilosa, mas segundo fontes que tiveram acesso ao documento ela implica todas as grandes programadoras internacionais presentes no Brasil e que utilizam o mecanismo rotineiramente, além de boa parte das grandes produtoras que atuam no mercado de produção para TV.

A Ancine confirma que encaminhou o trabalho, realizado no segundo semestre do ano passado, aos órgãos de controle e ao Ministério Público. Segundo a agência, "após denúncia de possíveis irregularidades na alocação/aplicação de recursos gerenciados pela Ancine provenientes do artigo 39, inciso X, da MP 2228-1, a Ouvidoria-Geral da Ancine – já na nova gestão – solicitou, em fevereiro de 2018, uma auditoria nos projetos que usaram estes recursos nos últimos cinco exercícios fiscais (de 2013 a 2017). A auditoria foi finalizada em setembro do ano passado e circulou nas áreas técnicas da agência – de fiscalização e fomento -, constatando que, nestes exercícios, houve de fato irregularidades na aplicação dos recursos num total de 64 projetos. O valor total dos projetos ainda está sob avaliação. O resultado da auditoria foi encaminhado à Secretaria Especial da Cultura, ao Tribunal de Contas da União, à Corregedoria Geral da União e ao Ministério Público Federal para as providências cabíveis". A auditoria é realizada pelo auditor da agência, que tem mandato fixo e é aprovado pela diretoria colegiada.

Segundo apurou este noticiário, a auditoria realizada teria sido uma apuração de conformidade, ou seja, uma auditoria para verificar se os processos estavam seguindo corretamente os procedimentos previstos nas regras da agência, e as próprias regras da instituição diante dos dispositivos legais. Não foi uma auditoria, portanto, de fiscalização de casos específicos, ainda que tenha surgido de uma denúncia anônima que apontava alguns casos. A auditoria, segundo pessoas que conhecem o documento e que foram ouvidas por este noticiário, aponta para a necessidade de melhoria de procedimentos e processos e não teria como objetivo apurar nem desvios de conduta nem falhas administrativas graves. Por padrão, estas auditorias são compartilhadas como os órgãos de controle do Executivo (CGU) e Legislativo (TCU), mas a sua distribuição ao Ministério Público pela própria ouvidoria da agência teria sido motivada pelo fato de as primeiras denúncias, que ensejaram a auditoria mais ampla, já terem sido direcionadas também ao Ministério Público.

Procedimentos autorizados

Do ponto de vista dos canais e produtoras que se viram implicadas na auditoria, a leitura é que não há que se questionar o que foi feito até aqui porque todo o processo sempre esteve respaldado em decisões do colegiado da Ancine, em pareceres jurídicos da agência e na orientação dos próprios técnicos da Ancine. O que se comenta é que os principais problemas elencados no trabalho estariam na contagem de prazo para aplicação dos recursos. Explica-se: depois que eles são depositados em conta corrente, os recursos provenientes do artigo 39 (3% sobre as remessas a serem feitas pelas operadoras) precisam ser direcionados em 270 dias para algum projeto de coprodução, a critério da programadora e com anuência da Ancine. O problema é como contar esse prazo, já que em muitos casos o processo de seleção dos projetos, fechamento dos acordos de coprodução e operacionalização da produção leva mais do que isso. O entendimento histórico da Ancine, com diversos pareceres da própria agência, tem sido no sentido de que, uma vez indicada a coprodução, a contagem de prazo é suspensa para que o projeto seja viabilizado. Este entendimento mudou recentemente e depois disso os processos foram alterados.

Outro questionamento que aparece na auditoria é sobre a mudança de alocação de recursos para projetos diferentes dos originalmente previstos, o que acontece com frequência quando uma coprodução acaba não se viabilizando (por dificuldades de negociação de direitos, acordo com talentos, problemas operacionais etc). A mudança de projetos é um mecanismo utilizado pelo mercado para viabilizar o uso dos recursos e evitar que ele fique parado e acabe indo para o Fundo Setorial do Audiovisual, onde pode ser contingenciado ou não ser aplicado por conta do processo mais lento de liberação. De qualquer forma, destacam fontes ligadas às programadoras e ao mercado de produção, os projetos que contaram com recursos do Artigo 39 aconteceram, o conteúdo foi produzido e exibido e o recurso incentivado cumpriu o seu papel de fomentar o audiovisual nacional.

As fontes ouvidas por este noticiário destacam que este mecanismo de "auto-gestão" setorial dos recursos previsto no Artigo 39 é considerado tão eficiente e desburocratizado que foi referência inclusive para o modelo que estava em discussão no governo Temer para a cobrança da Condecine para os serviços de vídeo-sob-demanda.

Análise

Existe no mercado, conforme relatos ouvidos por este noticiário, a percepção de que os conflitos internos na Ancine, reforçados por uma sequência de episódios negativos, estariam, no limite, comprometendo a credibilidade da própria agência e gerando turbulência desnecessária no mercado audiovisual como um todo, mas especialmente no já complicado mercado de TV paga, que hoje é a base do mercado de produção independente para TV. As fontes apontam vários episódios nos últimos 12 meses, desde as críticas públicas feitas pelo governo contra a Ancine ainda na gestão de Débora Ivanov (hoje diretora), passando por conflitos dentro do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual; as falhas apontadas pelo Tribunal de Contas da União na gestão do FSA; a inesperada sobreposição de atribuições entre a Secretaria do Audiovisual e a Ancine; as divergências entre produtores nacionais com os demais setores envolvidos na cadeia de VoD; as críticas e representações de parte do setor e autoridades contra as indicações do governo Temer ao Conselho Superior de Cinema; a operação de busca e apreensão da Polícia Federal contra o presidente e funcionários da Ancine (inclusive na ouvidoria que encaminhou a auditoria do Artigo 39 ao Ministério Público); o fim do Ministério da Cultura com a transferência da Ancine para um ministério generalista (Ministério da Cidadania), entre outros fatos. Tudo isso, analisam interlocutores deste noticiário, contribui negativamente para o setor como um todo, o que não quer dizer que as denúncias não devam ser feitas, investigadas e apuradas, com punição quando for o caso. Mas questiona-se no mercado se há materialidade que justifique tamanha turbulência ou se este será só mais um capítulo de notícias ruins para o setor, mas neste caso com potencial de implodir um mecanismo que tem sido, no saldo geral, muito positivo para toda a indústria.

2 COMENTÁRIOS

  1. O que nós ficamos impressionados é a avalanche de dinheiro que essa inútil agência movimenta. Essa maldita agência é uma herança maldita! Já passou da hora de acabar com ela, e que o dinheiro seja melhor empregado em áreas de REAL necessidade.

    Essa agência atrapalha o crescimento da tv paga com suas ditatoriais cotas: repetindo… herança maldita do (des)governo petista

  2. Os desinformados, cheios de raiva e ignorância já começam o desserviço de pregar contra a Ancine, uma agência fruto de décadas de luta do setor audiovisual. Uma agência que consegue seus recursos através da tributação do próprio setor e que financia, participando dos resultados, parte significativa da produção de conteúdo nacional. O pessoal que vocifera contra a agência talvez seja favorável à reserva de mercado em diversos setores, mas na cultura se colocam contra, sem embasamento ou argumentação substâncial, apenas para ser contra. É fundamental movimentarmos a enorme cadeia ecoômniôca que a produção audiovisual abarca, além da sua potência simbólica e artística, precisamos garantir espaços nas telas para nossas vozes, pensamentos e histórias. Que as irregularidades sejam apuradas, mas não se faça a asneira de jogar o bebê fora com a água suja da bacia!

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