Dados questionáveis podem ter levado auditoria do Artigo 39 a conclusão errada

Em reportagens publicadas esta semana, este noticiário e o jornal Valor (que deu a matéria pela primeira vez) trouxeram a informação de que a auditoria realizada pela Ancine no mecanismo de fomento do Artigo 39, entre os anos de 2013 e 2017, indicava a possibilidade de uma grande evasão fiscal, da ordem dos R$ 157 milhões. Segundo a auditoria, o que ficou evidente na análise dos dados é que os valores recolhidos nas contas do Artigo 39 eram inferiores aos 3% das remessas feitas, conforme previsto na MP 2.228/2001. Apenas no ano de 2017 o percentual voltou a ser de 3%. Relembrando: o mecanismo de fomento do Artigo 39 da MP 2.228/2001 prevê que em lugar do pagamento da Condecine de 11% sobre as remessas feitas pela contratação de conteúdos de TV paga no exterior, os canais podem optar por aplicar 3% destas remessas em coprodução. As remessas são os pagamentos feitos pelos operadores de TV paga para os canais fora do Brasil. Este valor de 3% é depositado pelos operadores em uma conta corrente controlada pela Ancine e vinculada a uma programadora específica, que escolhe os projetos para coprodução (registrado na agência). É a Ancine quem libera os recursos para os produtores indicados pelos programadores.

O que se constatou é que o valor depositado entre 2013 e 2016 não correspondia a 3% do que era remetido, o que só ocorreu em 2017. Esta constatação da auditoria bate com os dados da Ancine de valores recolhidos e valores remetidos. Mas a causa pode não ser evasão fiscal, e sim uma alteração atípica e bastante relevante nos dados que a Ancine dispõe referentes às remessas ao exterior. As razões desta distorção ainda requerem mais apuração, mas o fato é que existe uma variação muito significativa em 2010 e 2011 nos números da Ancine, sem razão aparente, e que explica a inconsistência apurada pela auditoria nos anos seguintes. A auditoria, que analisou 200 processos e viu problemas em pelo menos 64, foi encaminhada pela ouvidoria da agência à Receita Federal e ao Ministério Público, entre outras autoridades, gerando uma grande apreensão entre grandes programadores e produtores.

Este noticiário detectou a inconsistência fazendo a mesma análise da auditoria nos números oficiais da agência disponíveis no OCA (Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual). Mas foi preciso olhar além de 2013 e recuar até onde a Ancine tem dados disponíveis para perceber a variação. O que se observa é que entre 2003 e 2010 o percentual dos valores recolhidos nas contas do Artigo 39 e os valores remetidos é preciso e constante em 3%, perfeitamente consistente com a exigência legal. Mas a partir de 2011 os valores referentes às remessas dão um salto gigantesco em relação ao padrão dos anos anteriores. Em 2011, o aumento no valor de remessas é  234% além do que havia sido apurado em 2010, e em 2012 o aumento é de 103% em relação ao já elevado valor de 2011.

O mercado de TV paga cresceu bastante em 2011 e 2012 em número de assinantes: respectivamente, 30% e 28%. Ainda assim, é muito menos do que o crescimento dos valores remetidos apurados pela Ancine. Já os valores recolhidos nas contas de coprodução também crescem, mas acompanhando o ritmo do mercado: 26% em 2011 e 27% em 2012, respectivamente.

Quando se olha os valores absolutos é possível ter uma dimensão ainda mais impactante dos dados. Em 2010, o mercado remeteu ao exterior R$ 820 milhões. Em 2011 esse montante dá um salto de mais de três vezes, para R$ 2,7 bilhões, e em 2012 volta a dobrar para R$ 5,6 bilhões.

Já os valores recolhidos, que eram de R$ 26 milhões em 2010 crescem de forma bem mais suave, para R$ 33 milhões em 2011 e R$ 42 milhões em 2012. Com isso, o percentual de recolhimento/remessas despenca de 3% para menos de 1% em 2012 e só em 2017 volta a ficar no que foi estabelecido em lei. Foi exatamente este período que a auditoria olhou.

Note-se que os valores recolhidos às contas do Artigo 39 crescem ano a ano de maneira constante desde 2007. Só desaceleram com a própria desaceleração do mercado de TV paga a partir de 2015. Ainda assim, os valores recolhidos têm sido sempre maiores em relação aos anos anteriores, pelo menos até 2017, para os quais há dados disponíveis (os números de 2018 não estão fechados).

Como se percebe no gráfico acima, os valores de remessas, depois do salto astronômico de 2011 e 2012, entram em forte retração e passam a ser seguidamente inferiores aos dos anos anteriores. Com isso, o percentual entre recolhimento e remessas volta a convergir para os 3%.

Olhando-se os dados de crescimento do mercado de TV paga, é possível ver crescimento de base até 2015, mas nunca em percentuais superiores a 30%. De 2015 para cá o mercado ou ficou estável ou teve pequenas variações negativas.

As possíveis explicações para esta variação no número dos valores recolhidos são muitas. Pode haver algum problema de consolidação nos dados da Receita Federal, que faz o controle das remessas ao exterior, ou os dados podem estar incluindo algum montante além dos direitos sobre canais de TV paga (direitos esportivos, por exemplo, ou direitos para VoD). A hipótese de evasão, obviamente, não pode ser descartada, mas segundo fontes ouvidas por este noticiário, considerando que o mercado de TV paga não cresceu no mesmo percentual das remessas ao exterior, não haveria como explicar valores absolutos tão grandes, ainda mais considerando-se o nível de compliance das empresas envolvidas (grandes empresas de telecomunicações e grandes programadoras internacionais). Já o dado de valores recolhidos é considerado mais consistente, não só porque teve variação em linha com o crescimento do mercado como também porque a Ancine tem o controle das contas bancárias e acompanha o saldo permanentemente. De qualquer forma, uma explicação definitiva para a inconsistência terá ainda que ser dada pela agência e pelas autoridades que receberam a auditoria, como a própria Receita Federal. É preciso destacar que a auditoria é sigilosa e este noticiário não teve acesso a todos os cálculos e análises para saber se esta discrepância nos números foi percebida pelos técnicos e justificada. Se isto aconteceu, estas informações não aparecem nas conclusões a que tivemos acesso.

Os dados para estas análises estão disponíveis no OCA, e podem ser visualizados de forma simplifica abaixo e na planilha de Excel de forma completa aqui:

2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Art.39 – Recolhido
(R$ milhão)
14,5  16,6 22,3  25,9  32,7  41,6 56,4  67,4 71,4 80,3 80,8
Art.39 – Remetido
(R$ milhão)
481,6 555,5 668,8 821,2 2.746 5.585 4.687 3.380 3.382 2.992 2.696
Recol./remet. 3,00% 3,00% 3,34% 3,16% 1,19% 0,74% 1,20% 1,99% 2,11% 2,69% 3,00%
Assinantes (milhão) 5,3 6,3 7,5 9,8 12,7 16,2 18 19,6 19,1 18,7 18,9
Crescimento do mercado 13% 19% 19% 31% 30% 28% 11% 9% -3% -2% 1%
 Variação recolhido 12% 15% 34% 16% 26% 27% 35% 20% 6% 12% 1%
Variação Remetido 12% 15% 20% 23% 234% 103% -16% -28% 0% -12% -10%

 

 

 

 

 

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