Sem regulação, novos modelos podem inviabilizar economia do audiovisual, diz Manoel Rangel

Manoel Rangel teve um papel central em toda a política e regulação do audiovisual desde 2003 até o dia 20 de maio de 2017. Desde que chegou ao Ministério da Cultura, ainda no início do primeiro mandato de Lula, como um assessor da secretaria do audiovisual, até o final do seu terceiro mandato como diretor-presidente da Ancine, Rangel participou ativamente de todas as grandes batalhas do setor e imprimiu à Ancine uma boa dose do seu estilo e da sua forma de ver a indústria e o mercado. É inegável que o setor audiovisual mudou muito durante esses 14 anos em que Rangel esteve no governo, 12 deles na Ancine. A estrutura de fomento ganhou uma dimensão nunca antes vista no Brasil, criou-se, com base na política de cotas, um mercado de produção independente relevante,  e a Ancine se tornou uma agência com forte atuação regulatória, com ramificações que vão desde o mercado de salas de cinema até empresas de telecomunicações. São aspectos que Manoel Rangel, nessa entrevista dada à Tela Viva em seu último dia de mandato na Ancine, enxerga como pontos positivos.

Rangel também recebeu, ao longo de sua trajetória como servidor público, críticas e elogios pelo sua disposição de comprar algumas brigas, como o projeto da Ancinav, que pretendia criar uma agência do audiovisual com atuação mais ampla do que tem a Ancine hoje. Ou pela forma como batalhou para que a legislação de TV por assinatura contemplasse uma política de cotas. Com inegável capacidade de atuar politicamente, Rangel escolheu cuidadosamente as batalhas, recuando de algumas e mas indo até o final em outras. Muitas vezes taxado de intervencionista, Rangel não esconde que acredita na importância e na necessidade de um estado regulador forte no mercado audiovisual. Esta entrevista é um registro de alguns episódios dessa história e uma oportunidade de entender as razões que levaram o mercado audiovisual a ser organizado, no Brasil, na forma atual.

TELA VIVA – Fazer um balanço de tanto tempo no governo e depois na Ancine é complicado, mas o que você aponta como principais fatos, ou legados, desse período?

Manoel Rangel – É uma longa trajetória, com muitas fases. Do que foi construído, destaco três coisas pela relevância, complexidade e impacto no mercado. A primeira é a Lei 12.485/11 (Lei do SeAC) e a profunda transformação que ela produziu. Ela permitiu a chegada, pela primeira vez e em larga escala, de conteúdo brasileiro e independente na TV paga. Havia algo antes, mas mudou a escala, mudou a escala do financiamento ao setor audiovisual e a dimensão do Estado, porque institucionalizou a regulação do audiovisual no Brasil. Eu diria que a Lei 12.485 é a questão mais relevante, mais impactante e mais transformadora, dando outra escala inclusive à Ancine.

O segundo fato que eu destaco foi o programa Brasil de Todas as Telas, ao lado do Fundo Setorial do Audiovisual como fonte de financiamento, que marcou a retomada da capacidade do Estado de enfrentar os gargalos de desenvolvimento do setor e induzir desenvolvimento, reorganizando o sistema de fomento. O FSA ganhou robustez para as dimensões do Brasil. Isso tudo, contudo, é meio. A questão mais relevante foi o Brasil de Todas as Telas, lançado com esse nome em julho de 2014 e com um investimento de R$ 1,2 bilhão. Foi o programa que abriu o foco da política do audiovisual para as diversas atividades, incluindo o campo público, as diferentes regiões e Unidades da Federação, trazendo as emissoras abertas e fechadas, fortalecendo o parque exibidor, desde a concepção dos projetos até a expansão de infraestrutura. A presidenta Dilma foi determinante nesse processo, porque não basta ter o recurso, não basta ter o fundo, é preciso vontade política para fazer com que os órgãos do orçamento autorizem o uso dos recursos para cumprir a lei e permitir essa política. O patamar de investimento foi ampliado nos anos subsequentes. Em 2015 foram R$ 640 milhões, em 2016 foram R$ 730 milhões e este ano são R$ 740 milhões efetivamente aplicados. Por isso o FSA é o fundo de maior percentual de execução entre os fundos setoriais, com quase 70% de execução. Foram mais de R$ 2 bilhões alocados.

A terceira grande dimensão do que foi feito que me deixa satisfeito é a consolidação do trabalho e a institucionalização da Ancine como agência reguladora do audiovisual, a capacidade de enforcement e a capacidade de ser indutora do desenvolvimento, de ser centro de informação do mercado e um órgão de inteligência. A agência tem um quadro de pessoal completo e que é altamente profissionalizado, com comandos em suas diferentes áreas com funcionários de carreira e processos estáveis, instrumento de gerenciamento e planos anuais, agendas regulatórias, calendário de financiamento, sistema de gestão de metas por servidor. Ou seja, temos a constituição de um órgão.

 

A Ancine conseguiu ao longo desses anos uma certa perenidade administrativa, uma estabilidade sobretudo orçamentária. Como isso foi construído?

O que garantiu isso, na minha visão, foi o desempenho técnico-gerencial da agência e, de outro, o desempenho político, de articulação. Quando você consegue demonstrar a necessidade dos recursos, a capacidade de executar os programas e, portanto, de entrega, é possível chegar ao final do ano ampliando os limites. Não significa que a gente não sofra e não tenha sofrido com os ciclos de dificuldade orçamentária do país. De outro lado é preciso uma interlocução permanente, política e técnica com os ministérios da Cultura, Fazenda e Planejamento. Houve muita cooperação dos secretários de orçamento, tesouro e dos secretários executivos do MinC, e um trabalho permanente e intransferível do diretor-presidente da agência e da sua secretaria de gestão, mas todas as áreas precisam estar envolvidas nessas negociações.

Existe um risco de que essa estabilidade financeira da Ancine se perca?

É pressuposto de quem comanda a Ancine. Esse é o primeiro dever, de gerir a agência, ao lado de manter o rumo. A Débora Ivanov, que assume o comando de maneira substituta até a nomeação do presidente definitivo, tem plena consciência disso e capacidade de acompanhar. Ela conhece os nossos processos e o respeito pelo trabalho da agência está instalado na administração federal.

E o que te frustrou nesse período na Ancine, o que você gostaria de ter feito e não deu certo, ou não conseguiu?

Essa é sempre a pergunta mais difícil. Eu gostaria de ter concluído a construção de uma norma de direitos para a Ancine, porque a questão dos direitos na atividade audiovisual é central. Direitos de propriedade, direitos sobre as obras, direitos de comercialização. Quando chegamos na Ancine essa questão não era tão clara, mas isso é o coração da economia audiovisual, que essencialmente é a gestão sobre marcas, talentos, direitos, propriedades… Tudo está vinculado aos contratos e à forma como esses direitos são negociados. A capacidade da indústria se sustentar e encontrar fontes de financiamento depende de uma boa organização destas licenças no tempo, a tal cauda longa, no controle desses direitos e a negociação de talentos e com a criatividade, de modo a não ser tão longo que permita a remuneração desses talentos mas permita também a exploração de longo prazo. Quando chegamos na Ancine esse tema era subestimado na agência, na forma como eram tratados, de maneira meio cartorial, os contratos. Mas sem ler os contratos não há como saber como é a economia do audiovisual, como ela transita e em que bases ela se dá. Introduzimos uma visão mais gerencial, nos aprofundamos nesses meandros. Entendemos que o recurso público é potencialmente causador de distorções ou indutor de boas práticas. Não havia parâmetros para aquilo que a lei falou, que eram obras de produção independente. Se o produtor independente não tem o poder dirigente sobre a obra nem se rentabiliza com a obra, ela deixa de ser independente. Esse conceito nós conseguimos firmar e é a base do tratamento da produção independente na Lei 12.485 e da política de financiamento. Isso está bem construído. Mas ao não se condicionar à maneira como se dá o financiamento público e sobretudo a relação com agentes econômicos detentores de vantagens dadas pela administração pública, como o artigo 3ºA, artigo 39 etc, que são renúncia de recursos públicos para incentivar a produção independente, por vezes encontramos situações de contratos com cessão de direito por 70, 100 anos, em que o produtor ficava com nada sobre as obras, em que não havia direitos. Isso foi investido com uma nova lógica, e a preservação do poder dirigente foi a questão central. A deliberação 95 estabeleceu tempos máximos para a comunicação pública, tempos máximos para os investimentos em TV. Isso gerou uma série de conflitos até mesmo com produtores que eram beneficiados, mas hoje a leitura é que isso está inclusive defasado e seus termos são insuficientes.

A crítica que sempre se fez em relação a isso é que muitas vezes a agência transcendeu o desejo de bem regular o mercado e foi para a interferência direta e intensa em relações privadas.

Quando canais e produtores independentes negociam com base em investimentos privados, a regra é que o contrato celebrado nessa relação será absolutamente livre, da forma como as partes estabelecerem. Para ser caracterizado como produção brasileira, o controle dessa obra deve pertencer a produtora brasileira, como está na lei. E para ser produção independente, o poder dirigente tem que estar com uma empresa independente e ela tem que ter perspectiva de rentabilização. Mas a regra é de liberdade de negociação. Entrou recurso público, ele não pode ser utilizado em duplo benefício do que está alocando recurso. Não pode alienar completamente aquele que a lei fixou que deve ser o agente, que é o produtor independente. É uma atuação não de proteger, mas de equilibrar relações desiguais. De um lado existe alguém com o poder de veicular e dizer quem circula ou não no mercado. É um poder máximo na mesa. E além disso o Estado ainda concedeu um direito adicional, que é ter recurso público para investir em obras. Mas a lei colocou um condicionante: essas obras têm que ser de produção independente. E para isso a Ancine entende que a rentabilização do produtor independente é fundamental, porque a lei fala da sustentabilidade da indústria audiovisual. Os produtores precisam ter a perspectiva de se rentabilizar com a exploração econômica de suas obras, e não sendo meros prestadores de serviço, pois a lei não é uma lei de prestação de serviço no mercado audiovisual.

É verdade que existe essa crítica em relação à suposta interferência da agência, mas a verdade é que as liberdades negociais são preservadas e por isso não houve um disciplinamento exaustivo. Só fixamos parâmetros, e mesmo assim essa é uma lacuna porque há contradições crescentes entre os agentes econômicos, eles têm força desigual, e o recurso público tem atuado com o dano colateral de empoderar ainda mais o agente econômico que já é por si forte o suficiente. Daí a frustração de não ter conseguido fazer essa nova norma de direitos. Seria uma instrução normativa. Estudamos uma notícia regulatória para isso mas não sentimos que estava pronta para ser publicada, mas está na agenda regulatória e deve vir a debate. É uma imposição e uma necessidade do mercado.

E a regulamentação do VoD, também frustra?

Outro aspecto que gera uma frustração foi não ter conseguido concluir o processo de construção de um marco regulatório para o VOD. Entendo esse marco como indispensável porque é a fronteira de expansão dos serviços, já atingiu maturidade desde 2015, era plenamente possível avançar com esse processo em condições normais de temperatura e pressão, era possível avançar com uma lei que poderia ter tramitado muito rapidamente no Congresso, porque é uma lei simples, muito mais simples do que a 12.485 e outras. Mas o Brasil não esteve nessas condições normais de temperatura e pressão nos últimos 24 meses.

Essa lei do VoD teria que fazer exatamente o que? Empoderar a Ancine para ser a reguladora desse mercado?

O mercado audiovisual não tem a tradição que o mercado de telecomunicações tem de determinar que é preciso regular e autorizar a agência reguladora a constituir as regras do serviço. É uma tradição que a LGT acolhe para o mercado de telecomunicações e que se entende como razoável, salutar e em muitos casos bem-vinda, embora em algum momento o próprio regulador diga que prefere não atuar e usufruir deste poder. No mercado audiovisual, a regulação de um determinado serviço é feita de maneira mais ampla. Por isso entendo que o marco legal do VoD deveria avançar um pouco mais do que simplesmente dizer que a Ancine deve ser a reguladora. Deveria fixar um conjunto de princípios, a natureza do serviço, as obrigações dos provedores, precisaria resolver a barreira de entrada e expansão que é a maneira como a Condecine está estabelecida para o vídeo-sob-demanda, de tal forma que a lei seria mais ampla.

Durante um tempo você acreditava que a Lei do SeAC te daria essa possibilidade, por ser uma lei da comunicação por acesso condicionado, e não apenas do Serviço de Acesso Condicionado. Esse entendimento mudou?

Em 2013 havia um debate técnico no mercado e vários especialistas jurídicos entendiam que nós tínhamos o poder de regular o VOD, e aqui também tínhamos essa visão. Mas a reflexão foi aprofundada e quando vim a me pronunciar publicamente já foi para dizer que o marco legal deveria vir por lei. Entendemos que isso é que traria a segurança jurídica e que o mercado audiovisual não tinha a tradição de definir e delimitar os serviços de maneira infralegal. A lei é que traz os principais comando. Isso traz também a oportunidade de pactuação mais ampla com os agentes econômicos. Essa grande lição vem da Lei 12.485 e dos embates anteriores a ela. Leis devem ser resultado de uma construção coletiva. É preciso visão de para onde caminhar, fundamentos técnicos das necessidades do mercado e da realidade brasileira, mas é preciso submeter tudo isso ao conjunto da sociedade e dos agentes econômicos e da sociedade civil, que é o que o parlamento faz. Numa negociação, há sempre o risco de que a lei não consiga dar conta de todos os objetivos. Ainda assim será a melhor lei construída. A Lei 12.485 tem solidez por isso.

A Lei 12.485 contou com uma conjunção de interesses que naquele momento se alinhavam, não? Porque o mais comum é as leis não saírem, porque ferem algum interesse com força política.

Discordo de que a Lei 12.485 seja fruto de uma conjunção de interesses. Não é. Ela é fruto de uma necessidade do mercado. A palavra interesse não expressa bem a questão porque remete a vontades particulares de um ou outro. A amplitude da lei e sua complexidade permite dizer que ela não é uma lei de interesses. Um ou outro aspecto, um ou outro comando, pode ter surgido de interesses particulares quando foi proposto, mas a lei como um todo é uma lei no melhor sentido do espírito público, que reflete o conjunto dos agentes envolvidos, interesses da sociedade e os embates travados, que foram ferrenhos e tortuosos, e isso não pode ser esquecido. Agentes econômicos, em vários momentos, tentaram fazer da lei um texto de ajuste de interesses, o tempo todo isso foi tentado. E diria mais: ela fere um conjunto de interesses, e isso é paradoxal, porque ela acolheu questões legítimas e contrariou aspectos desses interesses. Em essência, é uma lei que preserva o interesse público. Tanto é que com a lei houve um salto, com o mercado dobrando de tamanho. Claro que outros fatores se conjugaram, mas mantidas as barreiras que existiam antes da lei, aplicando-se rigorosamente as regras existentes, esse salto não teria acontecido.

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Em que momento a Ancine entrou na discussão da Lei do SeAC?

A Ancine entrou em janeiro de 2007 na discussão. No fim do processo da Ancinav identificamos algumas questões que precisavam ter seguimento, e a principal delas era a convergência digital. Era um fato dado, que independia da visão de quadros de governo. O nó central era a TV paga, que era onde convergiam as empresas de telecom, as empresas de radiodifusão e operadores de conteúdos. Era no arranjo regulatório da TV paga que era mais flagrante a inviabilidade de regulação por tecnologia. Identificamos ainda que havia um espaço para construir e fortalecer o campo público da comunicação, que tinha previsão constitucional mas não tinha um tratamento adequado do Estado brasileiro, e identificamos espaço para fortalecimento da capacidade de financiamento da Ancine. Para o financiamento, veio com a Lei 11.437, o Fundo Setorial do Audiovisual, o Artigo 3A da Lei do Audiovisual para construir as pontes com a televisão, o 1A, a ampliação dos Funcines… Na Lei 11.437 resolvemos as questões de financiamento e acrescentamos alguma coisa de poder de regulação da Ancine e capacidade de obter informações no mercado. A resposta da demanda em relação ao campo público da comunicação foi o Fórum de TVs Públicas, que foi um momento único para dar impulso para a construção da EBC e da TV Brasil. O terceiro momento era o debate sobre a Lei de Comunicação Social Eletrônica, que foi interrompido pelas razões pelas quais sempre se interrompe esse debate, mas que deixou a questão da convergência no ar.

Em janeiro de 2007 eu assumo a presidência da Ancine e no discurso de posse eu apresento que o grande desafio do audiovisual brasileiro não era na disputa de um mercado pequeno, mas que a melhor maneira de enfrentar o problema era fazer crescer esse mercado, o que permitiria acomodar quem estava excluído dele, incluindo o conteúdo brasileiro. A percepção era de que a TV aberta ia bem, o mercado de DVD estava bem, mas faltava resolver, sob a ótica de tamanho do mercado, a TV paga e as salas de cinema. É quando entra o PL 29 do Paulo Bornhausen, voltado para a competição, que se junta ao projeto dos deputados Paulo Teixeira e Walter Pinheiro e ao do deputado Nelson Marquezan, que trazia a questão das empresas brasileiras prevista na Constituição. Então havia uma base conceitual interessante em cada um desses projetos que merecia ser desenvolvida. O que faltava era o trato da produção independente, e nisso vem o projeto de iniciativa do deputado João Maia, que em algum grau foi subsidiado por nós, trazendo a questão da produção independente e das obrigações de carregamento de conteúdo brasileiro. Foram esses quatro projetos apensados que deram origem ao projeto que ganhou o deputado Jorge Bittar como relator. A Ancine começou a trabalhar com ele com assessoramento e acompanhamento, oferecendo suporte, e ele foi brilhante na construção de caminhos e muito acolhedor na construção de diálogos. Houve o tempo todo diálogos com a Anatel e com agentes econômicos e sem dúvida contribuímos com o processo. Por exemplo, em um dado momento os programadores internacionais estavam fora do processo de negociação. Na época o Sean Spencer estava no comando da TAP e juntos nós construímos pontos para trazê-los para a mesa, incorporando algumas das preocupações deles. Até que em um dado momento, não sei porque, há um curto-circuito e eles assumem uma posição de confronto e se colocam fora da mesa.

Na época, eu me lembro, os programadores internacionais  tinham a preocupação que se fossem adotadas cotas no Brasil, isso pudesse se espalhar para o restante da América Latina.

Uma fantasia porque os processos são autônomos, a legislação em cada país é diferente, cada um tem as suas contradições. A vida mostrou que aquilo era uma fantasia. Os processos que aconteceram na América Latina não tiveram nada a ver com a Lei 12.485. Não existe nada tão avançado quanto a lei brasileira, embora em outros terrenos da comunicação outros países tenham avançado mais, e depois retrocederam dentro do jogo com que cada país constroi seus modelos e seus conflitos. Para a nós a Lei 12.485 foi encarada como um esforço de fazer crescer o mercado de TV paga para garantir espaço para conteúdo brasileiro, conteúdo independente. É uma grande satisfação ter participado desse processo e ajudado a construir os consensos. Eu nunca duvidei de que a lei viria. Havia muito ceticismo, formado pelas experiências históricas das dificuldades de avançar nesse tema. A nossa convicção de que viria decorria do fato de que o tema da convergência exigia uma resposta e o clinche instalado entre os agentes só poderia ter desfeito com uma forte participação do governo, que tinha convicção de que era necessário assegurar espaço para o conteúdo e para a produção independente brasileira. A Ancine foi, de alguma maneira, a guardiã da atenção do governo sobre esse tema, mas que contou com a atenção do presidente Lula, da ministra Dilma, do engajamento dos ministros Gil e Juca Ferreira e no final até a Anatel entendeu que esse era o caminho, depois de ensaiar fazer algo por conta própria.

O momento em que a Globo apoiou publicamente o projeto, na fala do Roberto Irineu Marinho durante a ABTA de 2010, foi determinante para o sucesso da lei?

Não. Entendo que no momento em que o Roberto Irineu Marinho fez o discurso, ele assumiu que a configuração que estava construída era inevitável, assimilável e que o grupo Globo teria como natureza central de ser produtora e programadora de conteúdos. Sim, eles tinham concessões de radiodifusão, tinham participação no controle da Net e Sky, mas a sua natureza era a da produção. Essa condição estava protegida pela Constituição, por isso não digo que essa fala tenha sido determinante. Mas é o agente econômico caminhando com o processo social, e por isso foi tão importante esse gesto. É a consciência do agente econômico relevante sobre a configuração que o mercado e a economia tomaram. Posicionando sua empresa de uma maneira estratégica nessa configuração, se encontrava um caminho para a tramitação legislativa.

Você não esconde a sua visão de que o mercado deve ser regulado. Suas falas foram sempre em torno desse papel regulador, e a Ancine sob seu comando refletiu isso. Como isso se conciliará com um momento político em que o discurso é liberalizante, de menos regulação?

Eu aceitei ser regulador porque acredito nesse papel e na necessidade de regulação. A auto-regulação é uma pedra filosofal que, como tal, não existe. Quando se fala em auto-regular o que se defende é a regulação pelas corporações econômicas e, entre elas, pela que tiver mais força e posição dominante. É assim que funciona a auto-regulação em qualquer ambiente da economia. A regulação pode ser ex-ante ou ex-post, mas é sempre regulação. A auto-regulação é não-regulação, ou uma regulação pelas corporações. Quem tem posição dominante no mercado, trabalha para não perder essa posição e impõe ao mercado um conjunto de danos. A regulação é própria da economia diante de áreas sensíveis, e a área de audiovisual e de comunicação é sensível. Está ligada a questões etéreas, mas igualmente cruciais para a vida em sociedade. É a ideia de pluralidade, diversidade, democracia, preservação da liberdade de expressão e direito de opinião.

Você entende que o trabalho que a Ancine faz, ou pelo menos fez na sua gestão, foram no sentido de preservar essa diversidade, e não econômica?

Ela é econômica essencialmente, mas motivada por um conjunto de princípios, de pluralidade, diversidade, liberdade de expressão, vedação do monopólio, valorização da cultura nacional, que estão na Constituição. Entendo por isso que a regulação é importante. É normal, contudo, em todas as sociedades, que haja ciclos de mais e menos regulação. O canto das sereias da auto-regulação também faz parte e a sociedade vai fazendo as suas escolhas e rumos. Mas a agência reguladora é o lugar de quem regula. Em que dose e em que termos, em que situações, é outra discussão. O primado, claro, deve ser sempre o da menor interferência possível, só atuando quando for indispensável, sobretudo quando estabelece normas acompanhadas de sanções. Isso é o máximo de enforcement que o regulador tem e que precisa ser usado com parcimônia. Mas há outras maneiras de atuar, instalando câmaras técnicas para equacionar problemas. Podemos anunciar a intenção de regular caso não haja uma solução pela prática de mercado. Regular pelo fomento, que nos permitem induzir boas práticas. Tudo isso foi feito, com bons resultados.

Estamos na metade do caminho do que a Lei do SeAC estabelece como período de vigência das cotas, que é um período de 12 anos. Os mecanismos de fomento, como os da Lei do Audiovisual, também costumam ter prazo, mas são permanentemente renovados. O mercado chegará em algum momento à auto-sustentabilidade, sem precisar de cotas ou de mecanismos públicos de fomento?

Se houver uma alteração profunda nas condições do mercado mundial, sim, mas nas condições do mercado global de conteúdos audiovisuais hoje, não. Não há capacidade da indústria audiovisual nacional se desenvolver sem que haja mecanismos do Estado para isso. E a indução desse desenvolvimento precisa combinar regulação e estímulo, e essa combinação é que traz o desenvolvimento, acompanhada de uma disposição do Estado de ser o xerife e acompanhar o bom desenvolvimento dessas duas frentes. A agência tem que ter a mão no pulso do mercado como um todo, para estar atenta ao calendário dessas questões.

A Ancine foi muito protagonista na agenda política do setor durante os seus mandatos. Como funcionou a relação com o Conselho Superior de Cinema e com a secretaria do Audiovisual, na sua avaliação?

O conselho foi sempre central e travou todos os debates importantes. Travou o debate sobre a Ancinav quando isso estava sobre a mesa, tratou da Lei 12.485 quando ainda tramitava, travou o debate sobre o Fundo Setorial do Audiovisual e a estruturação das primeiras operações, sobre o Cinema Perto de Você, sobre o Plano de Diretrizes e Metas e o acolheu depois de um ano de discussão, e travou o debate sobre o Brasil de Todas as Telas. Portanto, o conselho teve protagonismos. A pauta sempre foi definida pelo governo, não pela Ancine, pois o conselho é de assessoramento do governo e das suas políticas públicas. O conselho é o lugar em que essas políticas são colocadas a teste, apoiadas, afastadas ou rechaçadas. Há uma lenda estimulada recentemente de que o conselho não travou os debates. Os conselheiros foram parte ativa. De fato a Ancine teve uma participação importante na agenda por expandir o processo de sua estruturação, e havia questões a serem trazidas, como a estrutura de financiamento, a reorganização do mercado pela Lei 12.485, e a agência esteve no centro de tudo. Por isso subsidiou e preparou a discussão. No início de cada ano nós entendíamos ter a missão de pensar para onde caminha o mercado, uma espécie de Estado da Nação, ao mesmo tempo em que tínhamos um planejamento estratégico de longo curso. É algo que todas as áreas do governo precisam e devem ter. Sempre submetíamos essas questões ao Ministério da Cultura, e tivemos de lá, na maior parte das vezes, a concordância de que eram questões centrais a serem apresentadas à pauta do conselho. Tivemos uma boa interface com a Secretaria do Audiovisual, que tem uma visão clara definida para si. A missão da Ancine é definida em Lei, e a da SAv está em decreto, que pode ser alterado de tempos em tempos, e isso dá aos secretários a ideia de que podem moldar a secretaria como eles acham que elas devem ser, e isso às vezes gera conflitos. São conflitos que não deveriam existir e na maior parte das vezes não existiram, quando a SAv se dedicou à sua missão e a Ancine, à sua, definida em Lei. Acredito que a Ancine mantenha, pela sua capacidade técnica, a prerrogativa de levar ao conselho os elementos para tomada de decisão. Na última reunião, do dia 16 de maio, os próprios conselheiros acompanharam essa necessidade. É um bom momento e funciona bem. Não só ao Conselho, mas também do Congresso.

O Ministério da Cultura também acabou não buscando o protagonismo, não?

Não vejo assim. O MinC não trava disputa por protagonismo. Alguns ocupantes podem até querer, mas o que eu vi foi que os ministros tiveram a maior parte do tempo um forte compromisso com a política audiovisual.

De qualquer forma o governo endossou a atuação da Ancine…

É preciso destacar o papel que os ministros Gil, Juca e Marta tiveram junto com o presidente Lula e com a presidenta Dilma nessa nossa trajetória. O Brasil não tinha em 2003 uma política audiovisual consolidada. Tinha uma lei e uma agência que nascia, e ia caminhar para isso, mas ainda não tinha uma política. Nós construímos uma política nacional de cinema e audiovisual que ganhou características de política de Estado, na medida em que se coordenou ações de diversos órgãos da administração, lastreada em leis e na Constituição. Foi algo legitimado pelo parlamento, acolhido pelo Executivo e implementado. A escala que essa política ganhou e os desafios vencidos só foram possíveis porque havia de um lado a vontade de apoiar e executar essa política e de outro um forte movimento de desenvolvimento do Brasil, com distribuição de renda, emprego e aposta para a inserção do Brasil no mundo. Isso tudo foi campo fértil para o desenvolvimento de uma política audiovisual. Mas havia ainda o elemento de uma política cultural nova, que apostava na cultura em seu aspecto econômico, simbólico e autônomo. A política audiovisual se inseriu perfeitamente articulando esses três fatores. O presidente Lula e a presidenta Dilma, e os ministros Gilberto Gil, Juca Ferreira e Marta Suplicy também tomaram decisões nos momentos decisivos. Respeitaram a autonomia administrativa e financeira da agência e confiaram na construção técnico-política que foi feita para o setor. E pessoalmente tenho que lembrar que o Orlando Sena foi a pessoa que abriu esse caminho, e o Gustavo Dahl que viabilizou a existência da Ancine.

Um  aspecto de seu período à frente da Ancine que foi questionado em diversos momentos diz respeito à transparência da agência, pelo fato de não abrir as reuniões da diretoria, tratar sob sigilo os processos de fomento, só abrir a discussão sobre alguns temas depois de ter uma visão pronta. Poderia ter sido feito de outra forma? Por que o processo decisório nunca foi público?

A Ancine é absolutamente transparente, embora não haja transmissão da diretoria colegiada na Internet. Reduzir a discussão a uma câmera instalada e ao voyerismo de como se reúne a diretoria não caracteriza a transparência. Transparência é ter o processo público, ter processo de consultas, abertura para recebimento de questões e sugestões e acesso ao processo. Sendo a tendência geral a abertura das decisões com a transmissão ao vivo, essa deve ser a linha também da Ancine. Não tivemos condições de implantar, mas é bem vindo. Só não vinculo isso à transparência. Sobre o fato de não se saber detalhes do que está sendo feito pelo corpo técnico, o que eu vejo de outras agências é muito mais um processo de vazamento do que de comunicação pública. A Ancine é um órgão que não vaza. E a meu ver isso é bom, porque evita informação privilegiada para alguém em algum momento, para alertar alguém, interferir num caminho, induzir um caminho. O que a agência faz sempre é colocar os materiais em consulta pública. Antes disso pode-se fazer uma notícia regulatória. Às vezes publica uma análise de impacto regulatório, comunicando um processo de reflexão. Os temas em debate de regulamentação são publicados na agenda regulatória e todos são chamados a se manifestar sobre ela. Mas conseguimos manter o trabalho até aqui imune a vazamentos, o que faz com que o rito do processo de construção seja apenas o administrativo, com estudos, consulta e decisão públicos. Entendo que haja desejo de conhecer as contradições, os embates internos…

Ou as alternativas que poderiam ser adotadas…

As as alternativas são colocadas na consulta pública. Esse é o meu ponto de vista e é claro que cada gestão terá uma forma de conduzir as coisas. Sobre o sigilo dos processos de fomento, ela é absolutamente transparente. O que não se consegue ver é o parecer de um projeto de uma empresa, porque é preciso preservar o sigilo dessa empresa. Por que vamos expor o projeto de uma empresa a seus concorrentes?

Porque ela está pleiteando um recurso público…

Ela expõe para o Estado um conjunto de informações e estratégias, mas não para os concorrentes, que podem tomar a ideia, a estratégia, os meandros dessa empresa. Isso não existe em nenhum setor, por isso os processos são confidenciais. O fato de uma empresa estar aqui buscando recursos não significa que ela deva ser escrutinada publicamente na sua capacidade como empresa por curiosos ou concorrentes. Esse grau de sigilo é para preservar o interesse dos produtores. Mas a partir daí, o processo é aberto. O comitê de seleção é transparente, os parecer e análises são comunicados aos próprios proponentes para entenderem a decisão, as etapas são divulgadas.

Queria retomar um pouco o seu período ainda no Ministério da Cultura. O que teria sido diferente hoje se o projeto da Ancinav tivesse se materializado em uma lei?

Não me coloco essa pergunta porque o projeto não vingou. Ele teria constituído um conjunto de transformações que foram feitas talvez em maior velocidade. Ele teria recepcionado o futuro de maneira mais abrangente. Teria permitido uma agência mais assemelhada a outras, como a Anatel, no sentido de acolher as mudanças que ocorrem no mercado e incorporá-las no ordenamento regulatório. Nesse sentido sim, teria dado mais velocidade. Mas não houve, e não houve porque não havia maturidade do mercado audiovisual, ou consenso suficiente, ou clareza suficiente dos problemas, para permitir a formação de um entendimento em torno do tema. E na medida em que não houve, eu trato do que existe, e acredito que o país tenha ganho imensamente em torno do que foi construído. Ganhou com a Lei 11.437 e a construção do Fundo Setorial, ganhou capacidade de aproximar produção independente e TV aberta, ganhou capacidade de enfrentar os gargalos, ganhou com a Lei 12.485 que criou um mercado de produção independente e um mercado de licenças na TV paga e muitas outras conquistas.

Hoje vemos um debate sobre o papel das janelas e o desenvolvimento de uma lógica de exclusividade nas plataformas de vídeo sob demanda. Recentemente, obras produzidas para o Netflix foram objeto de protestos em Cannes. Qual o seu entendimento dessas mudanças na indústria?

A questão pode ser vista de uma maneira simples do ponto de vista econômico. É possível continuar reunindo todo o capital necessário para produzir as obras originais que se produz para o cinema, eliminando todas as janelas, tendo apenas uma única janela do VoD, de um único provedor? Provavelmente não. Essa é a resposta de 90% dos agentes econômicos do audiovisual. O modelo de exploração que trabalha com a ideia das janelas é um modelo universal que permite que as obras entrem a qualquer momento em qualquer uma das janelas, mas são delimitados territórios de exploração. No caso específico de Cannes, há ainda uma questão que é qual o sentido de levar para um festival de cinema obras que não foram para o cinema, que são telefilmes. Telefilmes existem há décadas, há obras de grande qualidade, são importantes para preencher as grades da TV, mas dizer que uma obra é para cinema e eliminar toda a cauda longa…

Esse novo modelo que surge é sustentável, na sua visão?

A perspectiva é que aquele agente que faz isso também não será capaz de, ali na frente, sustentar a sua própria atividade econômica. Quando você vai para o catálogo de um provedor de VoD, há algumas poucas obras originais e muitas obras produzidas dentro de outra lógica econômica, de valor, de cauda longa e exploração por diversos agentes de mercado. Não foi feito assim por acaso. Foi feito assim para encontrar formas de rentabilizar e facilitar o acesso dos usuários, diminuindo custos e assegurando que todas as pessoas possam ter acesso àquele conteúdo. Quando alguém vai, concentra e diz que será apenas de um jeito, é legítimo que se faça, mas não considere ilegítima a reação de todo o mercado que questiona aquele modelo por entender que aquilo inviabiliza a médio e longo prazo a inovação no mercado e a permanência desse mercado. Aliás, essa é a essência da ideia de porque precisa haver regulação. Muitas vezes um agente econômico tem uma ideia genial para ganhar muito dinheiro no curto prazo mas ele próprio não vê que pode estar matando o negócio para dali cinco ou seis anos. Para alguns dá jogo, pois alguns só pensam o mercado sob a lógica do investidor. Em cinco ou seis anos ele extrai o máximo que puder do mercado e depois vai ganhar dinheiro em outro negócio.

Está se referindo à Netflix?

Não quero me referir a nenhum provedor específico, ao contrário. Vejo a inovação que grandes provedores estão introduzindo, sobretudo no mercado de vídeo sob demanda, e é bom que se coloque em xeque um conjunto de dogmas da indústria, mas é preciso ver as respostas que melhor se concatenam. Quando o VoD surgiu, um dos aspectos mais interessantes era a possibilidade de não haver exclusividade, que provedores diferentes teriam todos os conteúdos em suas plataformas. Mas o que vemos é que alguns querem exclusividade absoluta. Isso é Hollywood dos anos 40, em que toda a propriedade está na mão de uma única empresa que controla tudo e todos os insumos. A história caminhou desde então. Então, é bom que se coloque em xeque os modelos, mas é bom pensar bem as consequências de cada movimento.

Estamos em um momento de uma nova onda de transformações da economia do audiovisual. Estamos em uma onda de aquisição de empresas de conteúdos por empresas de telecomunicações, estamos em uma onda em que empresas de tecnologia adquirem empresas de conteúdo… Isso sinaliza que o conteúdo é a questão central, o maior agregador de valor e gerador de riquezas. Empresas de infraestrutura e de tecnologia sentem a necessidade de expandir sua atividade econômica para o setor de conteúdo, e isso tende a gerar concentração e verticalização do mercado, em prejuízo da democracia, da diversidade e da pluralidade, com efeitos que a gente ainda não calculou. Há contradições também em relação à forma como o Brasil entendeu na sua Constituição e na legislação a organização do mercado. Outro aspecto em que estamos diante de um presente-futuro é a banda larga. Todos os conteúdos audiovisuais vão subir para a nuvem e para o ambiente da Internet. Teremos o VoD, o streaming de canal, a própria TV linear, paga e aberta, e tudo será economia real, mas em outros meios. As consequências disso para o mercado audiovisual são desafiadoras e estimulantes, e os agentes econômicos vão ajustar suas estratégias para isso. O Estado brasileiro também precisa ajustar a sua estratégia, e é preciso atenção aos fundamentos, porque são eles que conduzem empresas e organizações em cenários de mudanças e incertezas. Tenho razoável convicção de que o Brasil deseja autonomia e presença soberana no mundo, e capacidade de ter voz no cenário internacional. E isso só se faz uma indústria audiovisual nacional robusta.

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