Quem é mais dono da obra? A disputa por "The Last of Us" entre criadores e fãs

Veranise Dubeux - professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Economia Criativa, Estratégia e Inovação da ESPM. (Crédito: Divulgação)

Quando a série The Last of Us estreou pela HBO em 2023, ela não apenas adaptou um dos jogos mais aclamados dos videogames — ela acendeu uma discussão sobre autoria, expectativas e o papel do público no destino de uma obra artística.

Criada por Neil Druckmann (também responsável pelo jogo original), em parceria com Craig Mazin (Chernobyl), a série mergulha num mundo pós-apocalíptico assolado por um fungo mutante que transforma humanos em criaturas violentas e irracionais. O vírus se espalha com muita facilidade, e os poucos sobreviventes vivem em zonas de quarentena controladas ou vagam entre ruínas em busca de abrigo. Nesse cenário, Joel, um contrabandista traumatizado pela perda da filha, é encarregado de transportar Ellie, uma adolescente imune à infecção, até um grupo rebelde de militantes, os Vagalumes, que acredita que ela pode ser a chave para uma cura.

Mas, apesar dos elogios à produção, à atuação de Pedro Pascal e Bella Ramsey e à direção sensível, a adaptação dividiu opiniões — principalmente entre os fãs mais fervorosos dos jogos de videogame.

Entre as críticas mais recorrentes, destacam-se alterações narrativas e mudanças na personalidade de personagens centrais, como Joel. No jogo, ele é retratado como um sobrevivente frio e implacável, moldado por perdas profundas e um mundo sem piedade. Já na série, ele ganha contornos mais vulneráveis: sofre crises de pânico, procura ajuda psicológica, demonstra mais emoções. Para alguns fãs, essa mudança dilui o impacto do personagem. "Joel não é mais o mesmo", dizem. "Ele ficou fraco demais."

Outros pontos que causaram polêmica incluem a exclusão de cenas icônicas, como momentos musicais com Joel, a ausência de algumas passagens marcantes do jogo e mudanças étnicas em personagens. Parte do público demonstrou resistência à inclusão e à diversidade na série — críticas essas que, por vezes, escorregaram para o preconceito disfarçado de "defesa da fidelidade".

As reações intensas levantam uma pergunta inevitável: até que ponto um criador pode — ou deve — alterar sua própria obra ao adaptá-la para outra mídia?

Neil Druckmann, que enfrentou uma avalanche de opiniões nas redes sociais, adotou uma postura rara no mundo hiperexposto do entretenimento digital. Em vez de rebater críticas com agressividade, reconheceu a complexidade de agradar a todos. "Quando milhões de pessoas assistem à sua obra, você precisa entender que algumas vão amar, outras vão odiar — e tudo bem", afirmou. Sua resposta virou exemplo de maturidade num cenário em que criadores vivem na corda bamba entre aplausos e cancelamentos.

Essa postura abre espaço para algo raro: diálogo. Afinal, The Last of Us não é apenas uma história sobre monstros e sobrevivência — é uma narrativa sobre relações humanas em ambientes extremos, e isso inclui o que se passa fora das telas, entre público e produção.

No centro dessa discussão está uma questão mais profunda sobre propriedade narrativa. Quando uma obra ganha o mundo, ela ainda pertence somente a quem a criou? Ou o público que se conecta emocionalmente com os personagens, que revisita a história dezenas de vezes e constrói comunidades inteiras ao redor dela, também se torna dono — mesmo que simbólico?

É verdade que muitos fãs desejam ver na tela exatamente o que viram no jogo. Mas adaptação é transformação, não transcrição. A linguagem televisiva tem outro ritmo, outras exigências dramáticas. A série investe em nuances, em silêncios, em espaço para ambiguidade — algo que um jogo, mais centrado em ação e imersão, nem sempre permite. E a TV, como bem sabemos, precisa mais de personagens complexos do que de heróis invencíveis.

Em um mundo em que os zumbis são criados por um fungo e os vivos lutam para preservar sua empatia, The Last of Us nos lembra que, tanto na ficção quanto na vida real, sobreviver é um ato humano. A arte, como a própria Ellie, carrega em si a chance de cura — mesmo que, para isso, precise mudar, provocar e desagradar.

Porque talvez a verdadeira questão não seja "quem é mais dono da obra?", mas sim: o que estamos dispostos a perder — ou ganhar — para que uma boa história continue a ser contada?

*Veranise Dubeux é doutora em Engenharia Mecânica pela COOPE – UFRJ; mestre em Engenharia Civil pela COOPE-UFRJ; e engenheira civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente, é docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Economia Criativa, Estratégia e Inovação – PPGECEI – ESPM-Rio; pesquisadora do LEC – Laboratório de Economia Criativa, Desenvolvimento e Território; editora-chefe da Revista Diálogo com a Economia Criativa; e professora da Graduação em Administração da ESPM-Rio e Graduação em Administração da PUC-Rio.

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