Como sócia e produtora executiva da Lascene Produções, empresa jovem porém com 6 projetos já exibidos por canais brasileiros como GNT, PrimeBox, CineBrasilTV e Canal Curta!, provoquei Julio Worcman, diretor do último, a debatermos, com visões distintas, as novas regras apresentadas nos três editais de fomento à produção para TV do FSA 2022. O resultado está neste texto à quatro mãos que compartilhamos através da Tela Viva/Pay TV News.
Serão investidos R$ 190 milhões na produção independente de obras audiovisuais brasileiras de ficção, animação, documentário, variedades e reality show, para TV/VOD, através de três editais com regras muito parecidas: Produção TV/VOD (geral); Produção TV/VOD Novos Realizadores; e Produção TV/VOD – Via Programadora.
É grande a movimentação entre as programadoras e produtoras brasileiras habilitadas a participar. Os editais despertam a expectativa: nos próximos anos, poderemos voltar a assistir, nas telas de TV e nas plataformas de VOD, conteúdos inéditos e independentes com a cara do Brasil? Depois de enfrentar uma pandemia e um governo pouco empenhado em auxiliar a recuperação do setor, empresas do ramo do audiovisual, de diferentes portes, finalmente vislumbram oportunidades de negócio – e de voltar a gerar empregos.
Tudo isso, por si só, é bastante positivo. Também enxergamos com bons olhos a continuidade da política de regionalização, que estabelece cotas para empresas sediadas fora do eixo Rio-São Paulo.
E destacamos três boas novidades oferecidas pelas chamadas de 2022:
1. a criação de uma linha para TV destinada exclusivamente aos novos realizadores, com investimento de R$ 20 milhões. A disputa será grande, já que temos hoje no Brasil muitas empresas classificadas com níveis 1 e 2 na Ancine (até duas obras produzidas registradas com comprovação de exibição pública comercial);
2. o estabelecimento de um número pequeno de projetos que podem ser contemplados por uma mesma produtora ou grupo econômico em um mesmo edital. Isso evita a concentração de recursos para um mesmo proponente; e por último,
3. a possibilidade do "vídeo sob demanda" (VOD) ser o segmento de estreia das obras, uma primeira correção com relação a ordenação das janelas de comercialização.
Como nem tudo é perfeito, trazemos também algumas críticas e questões, do ponto de vista de uma produtora independente, e de um canal brasileiro independente, visando a talvez ensejar retificações nos editais publicados ou melhorias nas futuras chamadas públicas de apoio à produção para TV/VOD:
a. Os editais foram publicados na forma de "concurso" e não mais de "fluxo contínuo" – como as chamadas "Fluxo Contínuo para TV Prodav 01/2013" (cujas regras perduraram até 2017) -, mesmo diante da realidade da entrada de recursos da Condecine reabastecendo em fluxo contínuo, anualmente, o FSA. A opção "concurso", com prazo fechado para inscrições, traz em si a perspectiva de interrupções na política de fomento à produção nacional independente. A forma "fluxo contínuo" é possível – pelos aportes anuais ao FSA – e sugere a necessária continuidade e fluidez do fomento à produção audiovisual previsto em Lei, e que funcionou razoavelmente bem de 2013 até 2017.
b. Outro aparente retrocesso é o retorno de um "Comitê de Investimentos", comissão de pessoas que vai julgar e pontuar centenas de projetos para televisão, após encerrada a pré-seleção dos inscritos pelos critérios objetivos de documentação, pontuação do binômio produtora-programadora e induções de regionalidade e outras previstas. O "Comitê", além de possíveis subjetividades, (re)introduz de forma inequívoca a morosidade no processo de análise de projetos pela Ancine, tão criticada por todos os agentes do setor entre 2013 e 2017. Afinal, quem deve decidir sobre o interesse ou não de um projeto audiovisual para TV é em última instância a programadora que o pré-licencia, obrigando-se a pagar a licença da obra e a exibi-la em horário nobre. Talvez um sistema de pontuação do binômio produtora-programadora com mais casas decimais seja uma forma eficiente e objetiva de acomodar a fila de projetos que receberiam investimento antes de outros, na sequência do lançamento de novos editais. No longo prazo, entendemos que a manutenção da disponibilização dos recursos do FSA, (re)abastecendo anualmente em fluxo contínuo os mesmos editais, seria o bastante para atender a demanda de grade dos canais de TV habilitados, acabando com o corre-corre e o crivo de um comitê cuja função essencial é excluir projetos, no lugar das programadoras. Talvez um "Comitê" seja adequado para selecionar projetos apenas do edital para Novos Realizadores, a pensar.
c. O edital para Programadoras é o único que estipula um limite de investimento para o conjunto de projetos licenciados por um mesmo canal, e ainda limita a apenas um projeto por produtora participando do edital. Está claro que os canais deveriam ter a liberdade de escolher livremente seus parceiros – como nos Prodav 02 "Projetos de Programação", entre 2013 e 2016 – sem precisar se ater a critérios de classificação das produtoras ou por volume de CRTs gerados por elas até então.
d. No caso dos editais de TV para Novos Realizadores e Geral, questionamos a falta de um limite orçamentário máximo por programadora, por canal e/ou por número de projetos pré-licenciados por um mesmo canal de TV para inscrição em um mesmo edital. Acredito que esta falta de limites poderá gerar distorções importantes no mercado e/ou comprometimento do processo de seleção final pela Ancine:
1) O primeiro é a possibilidade de um canal ter projetos demais contemplados, em detrimento de outros, e ter o seu planejamento financeiro ou de grade comprometidos;
2) O segundo é o oposto, ou seja, um canal investir na curadoria e contração de um conjunto de projetos desenvolvidos pelas produtoras e não ser contemplado com os recursos do edital;
3) O terceiro é que com o protagonismo na seleção por parte da Ancine, que assumirá uma série de editais, incluindo as linhas de cinema, o processo certamente ficará mais lento e oneroso.
e. Embora as novas chamadas sejam para a produção de filmes e séries, os três editais suprimiram o valor básico inferior para pré-licenciamento de telefilmes, de 5% do orçamento, segundo o RGP. O custo básico de licenciamento de telefilmes foi igualado ao dos seriados (15% dos orçamentos). A regra anterior parecia entender que para as programadoras interessa o custo do minuto de programação e o preço das séries (com muito mais minutos) não se amortiza na duração de um telefilme. Seria interessante a Ancine esclarecer ao mercado a motivação da supressão, ou reconsiderar. Telefilmes documentais são um formato que viaja e circula bem, uma pena não os estimular. Como fruto de editais anteriores vimos vários documentários que estrearam em canais brasileiros do SeAC serem posteriormente licenciados por grandes plataformas de VOD como Netflix e Globoplay.
f. Ainda sobre o custo por minuto de conteúdos na grade dos canais, sempre considerado pelas programadoras, os três editais elevaram a pré-licença mínima de projetos para R$ 15 mil. No caso de licenças contratadas sem exclusividade, este valor mínimo joga o orçamento passível de financiamento para a partir de R$ 1 milhão, criando possivelmente alguma falta de coerência para programadoras contratarem projetos de orçamentos menores, como por exemplo telefilmes documentais mais simples ou series mais curtas.
g. Os três editais introduziram forte indução para contratação de licenças não exclusivas, agora por um terço do valor das exclusivas (e não mais por 20% mais baratas, conforme o Regulamento Geral do Prodav). Economicamente parece ótimo estímulo à maior circulação de obras, no entanto parece contrário à logica da televisão, onde a palavra "exclusivo" reina, e sobretudo contrário ao próprio SeAC (que hoje financia 90% do FSA) e aos seus assinantes, para quem é negativo um mesmo conteúdo estar ao mesmo tempo em mais de um canal de seu pacote (que inclui TVs abertas). Há poucas programadoras da TV paga que contratam sem exclusividade, pois o normal é que canais, seguindo a lógica do assinante, não licenciem conteúdos que estarão disponíveis em outros canais no mesmo período. De toda forma, talvez, seja interessante os editais permitirem a contratação da pré-licença não exclusiva, porém com uma opção de as programadoras virem a complementarem o valor mínimo da exclusividade quando da apresentação da obra, ou seja, até antes da emissão dos CPB.
h. Um outro ponto que chama atenção é que os editais 2022 para TV/VOD seguem não diferenciando as várias modalidades de direitos de VOD – FreeVOD (grátis) e TVOD, SVOD ou AVOD -, estabelecendo o mesmo valor adicional por qualquer licença de "VOD", desconsiderando se a pré-licença é "por preço fixo" ou um adiantamento sobre receitas futuras ao produtor. Evidentemente o custo inicial deveria ser menor se a licença prevê trazer royalties ao produtor (e ao FSA) mediante sucesso na exploração do segmento. Ou que, na outra ponta, a análise de potencial comercial de uma obra considere o potencial de royalties em VODs. Da mesma forma que sugerido no item acima, seria uma flexibilidade desejável assegurar à programadora a opção de vir a complementar a pré-licença para VOD até o momento da apresentação da obra, até antes da emissão do CPB.
i. Por fim, pelo menos uma dúvida importante restou não esclarecida, sobre as regras dos editais para TV. A resolução 180/2018 do Comitê Gestor do FSA, assinada pelo então e ainda diretor-presidente da Ancine, Alex Braga, trouxe alívio aos canais "superbrasileiros" – aqueles obrigados a exibir 12 horas de conteúdo nacional independente diariamente e, por consequência, os principais pré-licenciadores em volume de conteúdos financiados pelo FSA, para estreia em TVs: a resolução assegurou, excepcionalmente para aqueles canais, a vigência e exclusividade dos contratos por até 30 meses. A excepcionalidade introduzida pela Resolução 180/2018, segue em vigor, ou será revogada?
Apesar das questões acima colocadas, consideramos que o retorno das atividades do Fundo Setorial do Audiovisual ao fomento da produção audiovisual deve ser comemorada, pois não temos dúvidas de que trará ótimas produções para o público brasileiro na TV e que se amortizarão socialmente no longo prazo através da disponibilidade permanente nos VODs.