Antes de regular de fato as mídias sociais, Brasil pode começar impondo mudanças

Marcelo Bechara, Marie Santini, Jan Freigang e Pablo Ortellado, moderador (Foto: Globo/ João Cotta)

"Social Media (De)Regulation & Policy" foi o quarto e último painel nesta quinta, 3 de abril, primeiro dia de debate do International Academy Day – evento promovido pela Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão nesta semana, no Rio de Janeiro, do qual a Globo é a anfitriã. As discussões da mesa gerarão em torno da importância da regulamentação das mídias sociais e de possíveis caminhos até lá.

Marcelo Bechara, diretor de Relações Institucionais da Globo, pontuou que não se trata de um debate sobre liberdade de expressão x censura: "Quando falamos em regulamentação, as indústrias do passado, como do tabaco, açúcar e mídia outdoor, por exemplo, já passaram por isso e durante décadas foram resistentes, é natural. É o mesmo aqui. A diferença agora é que nós não estamos regulamentando essas mídias, e sim elas é que estão nos regulamentando por meio dos algoritmos. É quase uma falsa discussão. Elas estão fazendo isso contra nós. Não é uma questão de liberdade de expressão versus regulamentação. As leis hoje são feitas pelos algoritmos – eles regulamentam nossos desejos, nossas escolhas. Quando isso vem dos legisladores, é um sistema democrático. Votamos por quem nos representa. Mas regulamentação por algoritmo não é democracia".

Para ele, a transparência dos algoritmos será um possível começo. "Temos que capturar de novo a liberdade do diálogo. Estamos do lado certo da história. Tentam nos empurrar para esse lugar de censores, mas isso não é verdade. Queremos justamente resgatar esse lugar de liberdade de expressão", reforçou.

Cenário complexo

Marie Santini é diretora e fundadora do Netlab/UFRJ, laboratório de pesquisa em internet e redes sociais dedicado a diagnosticar o fenômeno da desinformação digital e suas consequências. A especialista considera a discussão bastante complexa – e acha importante esclarecer, pegando carona nessa questão da liberdade de expressão levantada por Bechara, que a realidade hoje é de falta dessa liberdade, e não o contrário. "Essas plataformas moderam milhões de conteúdos diariamente mas não dão transparência disso, não prestam contas e não têm nenhuma responsabilidade sobre esse trabalho. As plataformas são multinacionais e muitas vezes não respeitam as leis locais. Então a regulamentação é justamente pela nossa liberdade de expressão", defendeu.

O desafio, em sua visão, tem várias camadas, começando por um nível não exatamente legal, e sim epistêmico, de um entendimento que foi sendo criado em torno do que são essas empresas. "Elas nasceram no Vale do Silício, com cara de start ups, desenvolvendo inteligência. Por conta disso, e por não terem um modelo de negócio – o modo de atuar era todo mundo usando e assim as treinando de forma colaborativa – elas avançaram de forma desregulada. Só respeitar a lei local já seria uma inibição para as inovações que elas fariam. Elas atenderam demandas sociais latentes. Hoje, essas empresas são as mais poderosas do mundo e precisam respeitar as leis locais. Precisa da regulamentação, claro, mas antes disso, por que não fazer essas empresas respeitarem as leis que temos?", questionou.

Para Santini, outra questão importante é que os dados dessas empresas são sigilosos, ninguém tem acesso. "O mercado não tem dados sobre engajamento, audiência ou o que quer que acontece ali que não seja dado por elas mesmas. São elas que validam a própria audiência, é um mercado que gira em torno de si mesmo e não é possível auditar. Mesmo que a regulação fosse aprovada, ainda haveria o desafio enorme de observar se as leis estão sendo aplicadas ou não. O estado teria que criar uma infraestrutura robusta para monitorar, auditar e garantir a segurança das empresas e dos cidadãos", destacou. "Por fim, está a questão política. Essas empresas perceberam que é benéfico se auxiliarem a determinados grupos políticos de extrema direita que não têm interesse nessa regulamentação e se beneficiam dessa terra sem lei".

Experiência internacional

Jan Freigang, cônsul geral da Alemanha no Rio de Janeiro, falando do ponto de vista de um país onde o cenário é totalmente diferente, também entende ser uma dicotomia falsa. "A censura tem sido usada como termo para descreditar questões de discurso de ódio e violência e que não fazem parte da liberdade. Para nós, da União Europeia, na questão dos direitos digitais, acredito que não tem base falar de censura. Tem alguns elementos de segurança que não mudaram praticamente nada com a regulação em relação às mídias sociais. O que é ilegal offline, é ilegal online. O que é legal offline, é legal online", afirmou. "A regulação é, na verdade, base para garantir uma real liberdade de expressão e também proteção contra a censura dessas plataformas. E tem que ser feito com obrigações e mecanismos de revisão".

A lei alemã que faz essa regulamentação foi pioneira e, de certa forma, experimental – em termos de legislação e também de implementação. Mas a tentativa foi bem sucedida. "A ideia era responsabilizar as mídias sociais para terem sistemas mais inteligentes em relação a conteúdo ofensivo e falso e mecanismos que fossem melhorados principalmente sobre discursos de ódio e difamação. E buscamos transparência – pela primeira vez, elas precisaram enviar relatórios sobre como era feita a moderação de conteúdo. As preocupações em torno da lei diziam que ela bloquearia conteúdos importantes, e isso não aconteceu. O que nós vimos foi bem positivo: uma atmosfera onde os discursos de ódio e a desinformação foram menos espalhados. É difícil mensurar porque não sabemos o que aconteceria sem a lei", explicou Freigang.

Bechara entende que o modelo é uma boa inspiração, mas diz ser contra um "copia e cola" de qualquer que seja a legislação de outros países porque temos realidades diferentes e não necessariamente uma coisa que funcionou num país vai funcionar no outro. Aqui, por exemplo, ele acredita que, em termos de política, a principal dificuldade é a polarização – e isso está diretamente ligado ao debate da regulamentação, uma vez que governos são eleitos com ajuda das mídias sociais. "Os algoritmos são usados para fazer política. Parte da discussão política é controlada usando hashtags. Vimos isso algumas vezes", citou.

Possíveis caminhos

O executivo vê alguns possíveis caminhos antes da chegada até a regulamentação efetiva. "Estou observando atualmente um consenso crescente de que precisamos fazer algo sobre as crianças e os adolescentes nas mídias sociais. Talvez possamos ver primeiro uma regulação direcionada para esses grupos específicos – e eu endosso isso, porque são mais vulneráveis. Esse pode ser um bom começo para tratarmos do tema no Brasil", sugeriu.

Diante de tamanha urgência para pelo menos começar a criar algum tipo de regra, Santini menciona o Art. 19 do Marco Civil da Internet, que diz o seguinte: "Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário".

"Hoje, com esse artigo, essas empresas estão protegidas de qualquer responsabilidade e entendem isso até em questões comerciais – como publicidade, e publicidade fraudulenta. O artigo está defasado e é fundamental começar por esse ponto, torná-lo institucional para que a gente possa, pelo menos, tirar essa blindagem. São as únicas empresas que não precisam cumprir nenhuma regra, nenhuma lei no nosso país", enfatizou. "Precisamos fazer um pequeno avanço e, a partir daí, algumas coisas podem começar a acontecer. Com isso, vamos amadurecendo e qualificando o debate, até para avançar em outras pequenas regulações. Além disso, precisamos pensar nas leis que existem no país que não estão sendo aplicadas – não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Conforme disse o Jan, o que vale offline deveria valer online. Mas os países estão com dificuldade para aplicar leis que existem. Nesse momento, deveríamos cobrar o governo de aplicar as leis existentes. Isso já incomodaria bastante. Aí, sim, talvez possamos entrar em uma possível negociação com essas plataformas", acredita.

No entanto, ela ressalta: "O Governo não vai regulamentar e, no dia seguinte, todos os problemas estarão resolvidos. A Europa mostrou como é complexo. O Governo atual nem usufruiria de uma regulamentação aprovada agora. E também não tem força para aprovar agora. A lição que fica da Europa é avançar nessa pauta pensando nos serviços e nos consumidores".

Por fim, Bechara pontuou não gostar de pensar nessas companhias como inimigas – afinal, elas são inovadoras, mudaram tudo em termos de comunicação, oferecem ótimos serviços para bilhões de pessoas e criam conexões. "Mas todas as indústrias passam por momentos desafiadores", comentou. Ele apontou ainda para a possibilidade de uma autorregulação: "Que criem suas próprias políticas, mas façam algo que funcione. Poderia ter uma associação onde essas empresas reuniriam seus princípios e teriam que obedecemos. Hoje, não tem esse lugar. Mas acho que o mercado não está preparado para essa conversa. Não confiamos uns nos outros. Mas, na minha opinião, seria mais fácil fazer isso acontecer do que ter uma regulamentação imposta".

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