"Esse filme só foi possível graças a políticas públicas que hoje não existem mais", diz diretor do premiado "Pacarrete"

"Pacarrete", primeiro longa-metragem do diretor cearense Allan Deberton, tem sido o grande destaque dos festivais de cinema nacionais. Em Gramado, o filme foi disparado o mais premiado, faturando oito troféus – Melhor Filme, Direção, Atriz, Roteiro, Atriz Coadjuvante, Ator Coadjuvante, Júri Popular e Desenho de Som. Na semana passada, abriu o Festival de Vitória e, ao fim do evento, a atriz que interpreta a personagem-título, Marcélia Cartaxo, também levou o prêmio de melhor atuação. E na noite da última quarta, 2 de outubro, foi consagrado com dois prêmios no FAM, em Florianópolis: Melhor Filme pelo júri popular e Melhor Filme pelo júri oficial.

Na cidade catarinense, o diretor e a protagonista de sua obra conversaram com exclusividade com este noticiário. Marcélia, conhecida por seus trabalhos em "A Hora da Estrela" e "Madame Satã", falou sobre a positiva repercussão do longa, tanto com o público quanto com a crítica especializada. "É muito emocionante ver a reação das pessoas. A Pacarrete é uma personagem humanizada, eu mesma me identifico muito com ela. As pessoas chegam até mim para contar que se sentiram tocadas pelo filme e, em cada uma, ele toca de um jeito diferente. Eu sou uma atriz muito sensitiva e aprendi com esse trabalho que a gente não tem controle sobre as coisas conforme a vida avança. As coisas simplesmente vão", disse.

Deberton, que com "Pacarrete" lança seu primeiro longa-metragem, segue surpreso com tamanha repercussão. "Acho que casou da gente ter tido uma equipe muito dedicada para poder fazer o melhor filme possível dentro do orçamento tão miúdo que tínhamos. Esse projeto é antigo, comecei a pensar nele em 2007. Em 2010, já convidei a Marcélia para participar, mas a priori ela não acreditou muito nele. Quando nos conhecemos, eu era um curtametragista que tinha uma ideia bastante vaga a respeito desse filme, sem prazo para tocá-lo. Mas eu queria muito contar essa história. Eu sou de Russas (cidade do Ceará onde se passa a trama), vi a personagem nas ruas, fazendo confusão, sendo alvo de chacota da cidade. Eu queria falar dessa injustiça que ela sofria. Até pouco tempo, as pessoas se referiam a ela na cidade como uma louca, alguém para se manter longe. Eu quis fazer jus a quem ela realmente foi. Pacarrete sempre disse que, um dia, ainda iriam falar dela. Ela não teve oportunidade de ver isso acontecendo em vida, mas com essa repercussão do filme, sinto que o dever está cumprido. Era o que ela almejava", conta.

Apesar da trajetória de sucesso que o filme vem trilhando, atriz e diretor lamentam o atual momento político do país, especialmente no que diz respeito às políticas públicas voltadas ao setor audiovisual. "A gente vive um momento infeliz, de desgoverno mesmo. É curioso ver quem votou a favor desse governo na plateia do filme, se emocionando com uma obra que fala sobre arte. Estamos vivendo um cenário de tristeza e hipocrisia. Mas vejo os artistas resistindo, se levantando, e 'Pacarrete' vem para dialogar justamente com isso: com a nossa cultura, com o nosso existir. É por meio da arte que a gente se expande. Arte é educação. Estávamos vivendo uma fase de cada vez mais respeito, aceitação e crescimento, e de repente esse retrocesso tão grande e tão rápido. A gente tem que ser forte e puxar esses temas à tona, botar na mesa mesmo", declara Marcélia.

"A reviravolta é urgente. Em pouco tempo, muita coisa que demorou anos para ser conquistada foi desmantelada. Eu não consigo aceitar a extinção do Ministério da Cultura, que era o mais antigo do Brasil. É uma falta de incentivo, de valor, de interesse em dialogar com arte, com as pessoas. Cultura vai além de cinema, teatro, dança. Cultura passa pelos costumes, pela tradição de ser brasileiro", ressalta Deberton. "Esse filme foi feito por editais de fomento que privilegiavam novos artistas e primeiras obras e também a partir de outros para produções do Norte e Nordeste. Hoje, seria pouco provável que eu conseguisse filmar 'Pacarrete'. Esse filme só foi possível graças a políticas públicas que hoje não existem mais. Há muitos outros realizadores com grandes histórias para serem contadas, gente que iria fazer proveito do orçamento possível. Estávamos vivendo um boom tão grande de produção, de ser visto e representado internacionalmente. Fica meu apelo para que a gente consiga reverter isso da forma mais rápida possível", continua. E por fim, o diretor deixa o alerta: "Agora, ainda estamos reproduzindo e repercutindo o que foi fomentado anos atrás. Mas o resultado desse desmonte virá em breve".

Na trama, que se passa em Russas, Ceará, Pacarrete (Marcélia Cartaxo) é uma professora de dança aposentada que vive com a irmã Chiquinha (Zezita Matos) e tem Maria (Soia Lira) como empregada doméstica. Rigorosa e ranzinza, ela vive limpando a calçada e brigando com quem passa por ela. Seu grande sonho é estrelar um balé para a população local durante a grande festa de aniversário de 200 anos cidade, que está prestes a acontecer. Para tanto, ela manda confeccionar uma nova roupa de bailarina e ensaia arduamente ao mesmo tempo em que tenta convencer a prefeitura de seu show. Entretanto, a falta de interesse da população em geral por espetáculos do tipo logo se torna seu grande oponente. "Pacarrete" ainda não tem data de estreia no circuito nacional.

1 COMENTÁRIO

  1. Se for bom não deveria necessitar de recursos dos pobres contribuintes.

    Já passou da hora para a indústria cinematográfica brasileira ficar adulta e parar de viver às custas dos contribuintes.

    Usar dinheiro dos pobres (através dos impostos) para financiar obras para ricos? Já acabou tarde. Se for bom mesmo, o público comprará ingressos e pagará a obra. Veja o caso do Flamengo, a CEF cancelou os contratos com o clube, imediatamente o BS2, banco privado, assumiu o patrocínio do Flamengo.

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