A Lei Paulo Gustavo e o combate ao confisco do FNC e do FSA

No último dia 25 de fevereiro foi publicado aqui na Tela Viva, artigo de Marcos Alberto Sant'Anna Bitelli, a respeito do PLP 73/2021, também conhecido como Lei Paulo Gustavo, que acabava de ser aprovada, no dia anterior, na Câmara dos Deputados e retornava então ao Senado para a apreciação das alterações feitas pela Câmara. Com surpresa lemos o artigo de Marcos Bitelli que, a título de alertar os produtores independentes brasileiros, apresenta uma série de equívocos e inverdades que apenas parecem tentar "embaçar" o debate público sobre a citada lei junto ao setor audiovisual. Porém ao contrário de Bitelli, que alerta que suas conclusões independem de "vieses políticos e partidários", o presente contraponto tem lado, ou um "lugar de fala", se nos permitem pegar emprestado expressão muito utilizada hoje em dia. Somos assessores parlamentares dos autores do projeto de lei aqui comentado e nossas observações partem desse lugar que ocupamos.

Poderíamos começar este contraponto pelo título do artigo de Bitelli, ou da conclusão que apresenta, de que a Lei Paulo Gustavo é uma "solução imperfeita" para o fomento do audiovisual brasileiro. Para isso bastaria apontar que não existe nenhuma "lei perfeita", já que aprimoramentos são sempre possíveis em qualquer lei. Existem as "leis possíveis", isto é, aquelas que conseguiram sagrar a sua aprovação num contexto parlamentar onde vários interesses atuam simultaneamente, coisa que a Paulo Gustavo ainda não alcançou, seja porque ainda há uma votação pendente no Senado, seja porque ainda há a necessidade de seu sancionamento pelo Presidente da República para passar a ter efeitos legais. No entanto, além do tom de "alerta" às "produtoras audiovisuais independentes" sobre os possíveis malefícios que a Lei Paulo Gustavo poderia provocar no setor, a grande motivação que nos fez escrever este texto é a afirmação de Bitelli, em pelo menos três passagens de seu artigo, de que a Lei Paulo Gustavo retiraria recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que poderiam irrigar a produção nacional. Há nessa afirmação um grande equívoco, não se sabe se intencional ou involuntário, pois a Lei Paulo Gustavo acessa e destina aos entes federados o superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC), incluído aí o superávit financeiro do FSA. Ou seja, trata-se, no caso da Lei Paulo Gustavo, de recursos diferentes daqueles alocados no FSA pela Lei Orçamentária Anual (LOA) e que podem ser utilizados pela Ancine no fomento ao audiovisual nacional. Aqui permitam-nos uma pequena digressão sobre o orçamento público e a questão do "superávit financeiro" dos fundos públicos federais para melhor esclarecimento da minha afirmação.

Como se sabe, os recursos públicos que a Ancine, ou qualquer outro órgão público, pode aplicar, seja em sua área meio, seja nas ações finalísticas, são aqueles alocados pela Lei Orçamentária Anual (LOA) nas ações orçamentárias e/ou fundos públicos sobre as quais possui governabilidade. Ou seja, o que a Ancine pode utilizar do FSA em ações finalísticas num ano é, no máximo, aquilo que a LOA desse mesmo ano destinou ao FSA. Caso a despesa prevista tenha sido ao menos empenhada nesse ano, aí excepcionalmente, no ano seguinte, por meio do conhecido mecanismo dos restos a pagar, os recursos originalmente alocados num ano podem ser executados no(s) ano (s) seguinte (s). Mas nem o orçamento alocado pela LOA ao FSA, nem os restos a pagar se confundem com o "superávit financeiro" do FSA. O "superávit financeiro" do FSA, como de qualquer fundo público, é composto por todos os saldos não utilizados do FSA ao longo dos anos, seja porque a Ancine deixou de executar, seja porque os recursos foram contingenciados. Ou seja, são recursos que não foram utilizados em anos anteriores. Desta forma, ainda que primários, convertem-se em financeiros, passando a constituir saldo da Conta Única do Tesouro Nacional.

O superávit financeiro de qualquer fundo público é, portanto, cumulativo, ou seja, vão se somando ano a ano os recursos não utilizados do fundo. O superávit financeiro de um fundo público é uma fonte que não abre espaço no orçamento para gastos primários adicionais, como o apoio ao setor audiovisual conforme preconizado por Bitelli. Isso porque, como se sabe, sobre o orçamento público aplicam-se as regras fiscais, das quais as mais conhecidas são: a) a meta de resultado primário; b) o teto de gastos, e; c) a regra de ouro. Mesmo antes do advento do teto de gastos em 2016, a meta de resultado primário estabelecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) praticamente impedia que se utilizasse amplamente o superávit financeiro de fundos públicos na LOA do ano seguinte, ainda que como fonte para edição de créditos orçamentários, conforme previsto na Lei nº 4.320/1964. Isso se deve ao fato de que quando uma receita financeira financia uma despesa primária, há impacto sobre a meta de resultado primário prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ou seja, no caso do FSA, para falar apenas de uma de suas fontes, como todo ano entra nova receita de Condecine, a LOA anual trabalha apenas com essa nova receita, para não prejudicar a meta de resultado primário. Depois da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que estabeleceu o "Novo Regime Fiscal", também conhecido como "Tetos de Gastos", a utilização do superávit financeiro de qualquer fundo como fonte de créditos orçamentários ficou ainda mais restrita , uma vez que se trata de regra que limita a despesa, amarrando-a à despesa efetuada no ano anterior corrigida pela inflação, independente da existência de fonte de recurso primário. Convém lembrar que créditos extraordinários, editados para fazer frente a despesas urgentes, relevantes e imprevisíveis, não são computados no teto de gasto, o que será fundamental para compreender nosso argumento, conforme se verá a seguir. Enfim, a afirmação de que a Lei Paulo Gustavo retira recursos do FSA que poderiam ser utilizados pela Ancine não encontra guarida na realidade.

A ideia de imparcialidade não é razoável neste terreno. Ainda que o contingenciamento tenha existido em todos os governos desde a LRF, a instituição do Novo Regime Fiscal pela EC 95, durante a gestão Temer, agravou restrições artificiais à ação do Estado brasileiro, dificultando a execução de recursos, ainda que sejam vinculados a políticas específicas, como é o caso da Condecine. Há dezenas de estudos críticos do atual arcabouço fiscal que poderiam dar origem a regras mais amigáveis à execução das políticas públicas. No entanto, enquanto o atual regime estiver vigente, é preciso analisar o cenário a partir das restrições existentes.   

Se é fato que bastaria restituir os recursos não utilizados no orçamento como preconiza Bitelli, o leitor poderia indagar por que o governo não propiciou, ele mesmo, que os recursos do superávit financeiro do FSA fossem direcionados para a Ancine, tal como a Lei Paulo Gustavo fez em relação aos Estados, DF e municípios? A resposta é que o governo não só não o fez, como ainda fez coisa pior, ao destinar o superávit financeiro do FNC e do FSA à amortização da dívida pública, como mostraremos adiante. Antes, pedimos licença mais uma vez para outra digressão, essa de caráter histórico, sobre as origens da Lei Paulo Gustavo.

Em 2020 o Congresso Nacional aprovou dois diplomas legais para fazer frente à pandemia de Covid. O primeiro foi o Decreto Legislativo nº 6, de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública provocado pela pandemia em todo o território nacional, com vigência até 31/12/2020. Foi esse Decreto Legislativo que propiciou as inúmeras Medidas Provisórias de crédito extraordinário para as mais variadas áreas em 2020, uma vez que atendia a condição imposta pela Constituição Federal para este tipo de crédito orçamentário (art. 167, § 3º). O segundo foi a Emenda Constitucional nº 106, de 2020, que instituiu o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações, o chamado "orçamento de guerra", cuja vigência esteve "amarrada" ao Decreto Legislativo 6/2020, isto é, se encerrou também em 31/12/2020. Esses dois diplomas legais, juntos, afastaram a aplicação de algumas regras fiscais para que ações emergenciais pudessem fazer frente aos efeitos sociais e econômicos da pandemia. Com isso, vários setores econômicos foram atendidos por meio de leis aprovadas no Congresso. O setor cultural foi um deles, por meio da Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/2020). É importante relembrar esse histórico porque a Lei Paulo Gustavo se baseou e foi inspirada, em larga medida, na Lei Aldir Blanc. Essa foi uma das origens da Lei Paulo Gustavo que, no entanto, foi apresentada em 2021, sem calamidade pública oficialmente reconhecida e sem orçamento de guerra, o que demandou muito trabalho no seu desenho.

Por outro lado, a outra origem da Lei Paulo Gustavo reside nas ameaças feitas pelo governo atual e, enfim, no uso que ele fez do superávit financeiro, sem qualquer correlação com os "objetivos legais", do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual. Em 2019 foi largamente noticiado que o governo federal pretendia aprovar uma série de reformas que demandavam mudanças constitucionais, apresentando três PECs (propostas de emendas à Constituição) por meio de Senadores de sua base, a saber: a PEC dos Fundos Públicos, a PEC Emergencial e a PEC do Pacto Federativo. Nos detenhamos nas duas primeiras.

A PEC dos Fundos Públicos, cuja discussão avançou bastante em 2019, previa resumidamente a extinção de praticamente todos os fundos públicos, incluindo o FNC e, por consequência, o FSA. Foi por meio de muita pressão e negociação que a oposição conseguiu que vários fundos públicos fossem salvos, incluindo o FNC (e o FSA). Mas veio a pandemia no retorno aos trabalhos legislativos, em 2020 e, no intuito de simplificar a discussão e a aprovação, o governo promoveu a incorporação e concentração das três PECs na PEC Emergencial, que agora visava não mais a extinção dos fundos públicos, mas a desvinculação de suas receitas às políticas para as quais eram destinados, além da prorrogação, em 2021, do chamado "auxílio emergencial". Mais uma vez, por esforço da oposição, se chegou no Senado a um acordo onde alguns fundos eram excepcionados da regra de desvinculação, o que incluiu o FNC (e o FSA). Ocorre que o governo, numa manobra, digamos, pouco ortodoxa, passou por cima do acordado no Senado e aprovou na Câmara a Emenda Constitucional nº 109, de 2021, que permitiu, ao governo, o uso do superávit primário dos fundos públicos para a amortização da dívida pública! Foi a quebra do acordo costurado no Senado, portanto, a outra origem da Lei Paulo Gustavo. Ou seja, uma Lei que procurou, por um lado, dotar o setor cultural de ações emergenciais, uma vez que em 2021 a pandemia e seus efeitos sobre o setor cultural não haviam acabado, como ainda não acabaram hoje e, por outro, "salvar" os recursos do superávit financeiro do FNC e do FSA da sanha fiscalista do atual governo.

Feita essa longa digressão histórica e voltando ao artigo de Bitelli, cremos que todos os alertas que ele fez no seu texto às produtoras independentes cairiam melhor às ações do governo do que à Lei Paulo Gustavo, porque quem retirou os recursos do superávit financeiro do FSA para pagar a dívida foi o governo, não a Lei Paulo Gustavo. A Lei Paulo Gustavo, pelo contrário, prevê o total e a divisão dos recursos entre o audiovisual e os demais setores culturais no mesmo montante e na mesma proporção do último resultado disponível, apurado em 31/12/2020 para o superávit financeiro do FNC. Se o governo quisesse usar o superávit financeiro do FSA em apoio às produtoras independentes via Ancine, por que não o fez? Por que o Conselho Superior de Cinema, do qual Bitelli faz parte, não propôs isso ao governo? E por que o governo canalizou recursos do audiovisual para os proprietários da riqueza financeira, sob a forma de títulos da dívida pública, já que amortizar a dívida pública significa isso? Lembrando ainda que se o Congresso fizesse o que Bitelli indiretamente sugere como o "caminho perfeito', isto é, a destinação à Ancine, incorreria em inconstitucionalidade por vício de iniciativa.

Há algumas observações pertinentes no artigo de Bitelli, como as que apontam para o fato de que haverá municípios sem capacidade de implementar editais para o audiovisual, mas a própria Lei Paulo Gustavo prevê os remédios para esses casos, com a redistribuição dos recursos não utilizados para os municípios e Estados que possuem a capacidade para sua execução. Mesmo assim, soa no mínimo prematura e quase uma manifestação de desejo afirmar que a execução descentralizada dos recursos da Lei Paulo Gustavo não permitirá a produção de filmes exitosos. Mesmo a ideia de financiar "a completude de bons projetos" é melhor atendida pela Lei Paulo Gustavo do que pela burocrática proposta de Bitelli. O tempo dirá quem tem razão, pois a produção audiovisual não gera resultados imediatos. Mas basta lembrar dos inúmeros casos de projetos audiovisuais viabilizados pela Lei Aldir Blanc, que possuía menos recursos direcionados ao audiovisual, e que inclusive já gerou um filme ("Sideral", do Rio Grande do Norte) que disputou a Palma de Ouro em Cannes.  Também é pertinente a preocupação com os prazos, que também possuem tratamento adequado por parte da Lei Paulo Gustavo quanto a eventuais limitações impostas pela legislação eleitoral, mas, conforme ocorreu com a Lei Aldir Blanc, caso seja necessário, é possível aprovar-se a sua prorrogação para 2023.

Por fim, há algumas questões que Bitelli omite, como a paralisação intencional das políticas de fomento pela Ancine durante os últimos três anos, a pouca capacidade operacional da agência para acompanhar os projetos, o passivo de prestações de contas e os imbróglios com o TCU, que praticamente inviabilizaria a solução que ele defende. E há outras questões que Bitelli parece não ter entendido. Um exemplo é que ele parece desprezar o cenário de pandemia e a necessidade de ações emergenciais para o setor cultural. Ora, para destinar ações emergenciais ao setor cultural é necessário algum tratamento do tema fiscal, como a Lei Paulo Gustavo faz, ao excepcionalizar da contabilidade do resultado primário as ações emergenciais para o setor cultural sempre que houver calamidades e pandemias. Se fosse para fazer isso por meio das políticas usuais e ordinárias da Ancine, não seria uma Lei emergencial e sequer seria aprovada, uma vez que esbarraria nas questões fiscais. Especialmente, recursos emergenciais (desde que também atendam aos requisitos da imprevisibilidade e da relevância) podem ser executados por meio de créditos extraordinários, não contabilizados no teto de gasto, dispositivo fartamente utilizado pelo governo em 2021. Se fosse aprovada nos termos que Bitelli defende, a Lei Paulo Gustavo não seria executada e geraria mais superávit financeiros nos dois fundos. Outra aparente incompreensão de Bitelli é quando ele afirma que "o projeto avançou nos resultados sobre as aplicações financeiras do FSA e sobre a reversão de saldos financeiros anuais não utilizados no final do exercício". O que existe sobre isso na Lei Paulo Gustavo é que no âmbito do FNC, conforme previsto na Lei Rouanet (Lei 8.313/1991), dentre suas fontes de recursos havia o "resultado das aplicações em títulos públicos federais, obedecida a legislação vigente sobre a matéria", o que limitava as aplicações do fundo a títulos públicos. A Lei Paulo Gustavo apenas ampliou as possibilidades de aplicações financeiras do fundo, inclusive adequando ao que está disposto na lei que trata do FSA. Quanto à reversão de saldos financeiros do FNC para o próprio FNC, não se trata de uma tentativa de "evitar o contingenciamento", mas de evitar a criação de novos superávits financeiros do fundo. Aliás, quanto a uma suposta previsão para "evitar o contingenciamento" que Bitelli aponta na Lei Paulo Gustavo, é bom que se diga que existia tal provisão no projeto original apresentado, mas desde sua primeira tramitação no Senado esse dispositivo infelizmente foi retirado por pressão do governo.

Enfim, não há como sustentar imparcialidade num momento tão crítico para a vida do país e quando não há nenhum exemplo positivo de ação no setor cultural pelo atual governo. De fato, conforme já exposto, todos os governos praticaram, ainda que em graus diferenciados, contingenciamento de recursos para cumprir a meta de resultado primário. No entanto, dada a vinculação legal das receitas, os recursos seguiam associados a suas destinações legais, embora sob a forma de superávit financeiro apurado em balanço. O quadro se alterou completamente quando o atual governo aprovou a EC 109, confiscando recursos de políticas públicas como as da área da cultura para destiná-los à amortização da dívida, favorecendo detentores de riqueza financeira.

A proposta de Bitelli apenas agravaria este quadro, mantendo a sangria de recursos do FSA. Sem dúvida, a intenção é boa. Mas, na prática, não seria o setor audiovisual o beneficiário de uma proposta do tipo pois os únicos que ganhariam com ela seriam os credores da dívida pública.

*Bruno Moretti e Marcos Souza são servidores públicos e assessores parlamentares da bancada do PT no Senado.

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