Conteúdo audiovisual e propriedade intelectual no reino dos "puxadinhos"

Puxadinho, como conhecido popularmente, é aquele acréscimo na casa, que a toque de caixa ganha um novo cômodo à medida que a família cresce. Não é casa nova, nem reforma estrutural, que redesenhe o espaço como um todo e mantenha sua funcionalidade original. É um jeito que se dá. Assim, onde mal viviam quatro, pior vivem seis e vamos que vamos, não necessariamente adiante.

As tentativas de emendar a legislação que regula o audiovisual, sobretudo a chamada "Lei do SEAC", por ora, têm seguido essa tradição. Na raiz do problema, está o fato de que a regulação do setor vem, historicamente, sendo moldada não pelas características de sua atividade-fim, a produção de conteúdo, mas em função da tecnologia pela qual o conteúdo chega ao consumidor.

Tem sido assim desde os anos 1960, nos primórdios da TV aberta. A regulação se dá a partir da atividade de "comunicação", sem maiores preocupações com as condições de produção. A Lei do Cabo de 1995 não mudou esse quadro. A Lei do SEAC, já em 2011, embora mais cuidadosa que as anteriores em relação à produção, também se concentrou no meio – os canais lineares de TV por assinatura – deixando de lado as possibilidades de distribuição que já despontavam no horizonte, como o streaming de internet.

Claro que as vias de escoamento da produção são fatores de consideração obrigatória do desenho das políticas e estratégias de qualquer setor, mas ninguém faz política agrícola ou industrial tendo em conta principalmente as características das estradas. É mais comum o contrário, pois o que importa é a produção. É essa produção que gera os ativos que serão negociados no mercado e, no longo prazo, contribuirão para o acúmulo de riquezas no país. A riqueza das nações não é mais que a soma das riquezas produzidas pelas nações, afinal.

Distribuir conteúdo audiovisual já foi uma tarefa muito mais complexa em termos técnicos – basta lembrar as muitas torres de TV que se espalhavam pelos morros do país, e, nesse contexto, talvez não fizesse sentido pensar produção e distribuição como esferas autônomas. Nesse modelo, as atividades de produção e exibição se fundiam. Hoje, quem produz audiovisual pode fornecer suas obras em diferentes plataformas, razão pela qual a regulação do setor deveria se centrar no processo produtivo da obra, mais que nos veículos que incidentalmente lhe sirvam de tela.

Legislações recentes, como a de Portugal de 2020, conseguiram abarcar TV aberta, TV por assinatura e plataformas de streaming em um mesmo corpo normativo, privilegiando o fomento ao conteúdo audiovisual português. Assim conduziram porque a economia contemporânea é fortemente dependente de ativos intelectuais, como são filmes, séries, novelas e jogos. Outros países seguem nessa direção. Na internet ou fora dela, "o conteúdo é o rei", predisse Bill Gates naquele longínquo 1996. Na mosca, dizemos nós.

As políticas de fomento ao setor audiovisual, independentemente do contexto tecnológico, não podem perder de vista sua função essencial de dar voz a uma imensa parcela da sociedade que, sem elas, não teria como produzir e comunicar suas obras em escala profissional. Em um mundo de múltiplas telas, onde a linguagem audiovisual assume o papel central na comunicação nas mais variadas esferas das relações interpessoais, isso pode levar à invisibilidade, com consequências perversas para indivíduos e grupos; e para o país, seu reflexo.

Além desse aspecto simbólico, há um aspecto econômico, que dialoga com o futuro de nossa matriz produtiva. Mecanismos como o Fundo Setorial do Audiovisual constituem um dos poucos caminhos para a produção de obras audiovisuais mercadologicamente viáveis cujos direitos de propriedade intelectual permaneçam no Brasil.

Obras produzidas em regime de prestação de serviços, sob encomenda de canais e plataformas estrangeiros, geram empregos e receitas no curto prazo, o que é ótimo. Porém, do ponto de vista econômico, são ativos de propriedade intelectual estrangeiros. O produtor brasileiro será remunerado pelo serviço, mas os resultados da exploração econômica da obra, durante seu prazo de proteção legal, pertencerão – legitimamente, é bom que se diga – ao contratante.

O futuro da produção cultural brasileira, particularmente o da produção audiovisual independente, passa pela diversificação dos modelos de produção. A prestação de serviços é uma alternativa válida, que contribui para a qualificação de profissionais e das estruturas de produção, além de dar visibilidade internacional para elementos de nossa tradição cultural. Mas não geram propriedade intelectual brasileira em larga escala, de forma estável e previsível, o que é fundamental para nossas perspectivas econômicas.

Segundo dados da UNESCO, apesar do tombo de 20% em relação a 2019, as indústrias culturais e criativas adicionaram 2,65 trilhões de dólares à economia global em 2020. Se fossem um país, seriam a 5ª economia do mundo. Que as reformas que, de fato, urgem no marco regulatório do audiovisual atentem para a necessidade de manter e, se possível, expandir linhas de produção que efetivamente favoreçam a produção de conteúdo artístico-literário e o acúmulo de capital intelectual no país.

São esses ativos que podem colocar o Brasil no caminho do desenvolvimento econômico sustentado e sustentável, condizente com sua vocação criativa e a realidade do nosso tempo.

* Claudio Lins de Vasconcelos é advogado, professor da pós-graduação em Direito da Propriedade Intelectual da PUC-Rio e do mestrado em Gestão Cultural da UFRGS;
Leonardo Edde é produtor audiovisual, presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual e do Conselho de Economia Criativa da FIRJAN, e Vice-presidente da FIRJAN; e
Mauro Garcia é presidente executivo da Bravi – Brasil Audiovisual Independente.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui