Conteúdo brasileiro tem espaço garantido nos novos modelos de negócio

A produção nacional segue sendo de extrema importância nos canais por assinatura e o conteúdo brasileiro tem espaço garantido nos novos modelos de negócio: isso é unanimidade entre os programadores. Diretores de alguns dos principais canais de Pay TV participaram de um painel nesta quinta-feira, dia 4 de agosto, no Pay TV Fórum 2022 – evento organizado pelas publicações Tela Viva e Teletime – no qual discutiram questões relacionadas ao conteúdo nacional, tais como fomentos de produção e cotas de programação. 

É interessante ressaltar que essa relevância da produção brasileira existe inclusive nos grupos internacionais. Segundo Camila Cecchi, diretora de estratégia de conteúdo e produção da Sony Pictures Television, é parte crucial da programação. "Sobretudo por sermos uma marca internacional, já saímos um pouco atrás na questão da identificação do público. Por isso, há um investimento e um esforço redobrado para ter programação nacional na grade de ambos os nossos canais. Temos produções nacionais estreando esse ano e no ano que vem teremos ainda mais. Primeiro pela questão da identificação, que seria a razão mais 'automática', e depois porque o conteúdo nacional abre espaço para agregarmos talentos nacionais às nossas produções, e eles dão 'a cara' para o canal. Além disso, o conteúdo nacional abre possibilidades de integração para marcas que são infinitamente mais interessantes do que as que temos com conteúdo internacional. Ele possibilita formas orgânicas de integrar marca, tanto para o cliente quanto para o canal. No fim das contas, dependemos de audiência e anunciante, por isso a estratégia é essa", explicou. 

O Curta!, sendo um canal superbrasileiro, obviamente valoriza o conteúdo nacional e incentiva a produção independente – até hoje, já trabalhou com mais de 123 produtoras, de diferentes regiões do pais, e investiu R$124 milhões em conteúdos exclusivos. O mesmo acontece com o Grupo Box Brazil, que tem uma marca superbrasileira entre seus títulos, o Prime. E se o volume de conteúdo a ser produzido para compor a programação dos canais sempre foi um desafio, agora que eles lançaram novos canais, o desafio torna-se ainda maior. "Os canais não necessariamente precisam ter esse mesmo volume de conteúdo nacional, mas isso sempre esteve no DNA da Box. Somos uma programadora multicanal que trabalha com produção independente, isso segue entre nossas metas e prioridades. O Travel, por exemplo, não é um canal superbrasileiro, mas como exibe mais de 12 horas diárias de conteúdo nacional, tranquilamente se encaixaria como um. Lançar novos canais agora foi uma questão de oportunidade, a partir de uma visão de mudança de novos negócios. Vimos os movimentos das programadoras de redução e fusão de canais e enxergamos esse espaço. Além de termos uma grande rede de contato com produtoras independentes, também temos essa ponte com distribuidores e fornecedoras de conteúdo internacional, por isso o preenchimento da grade de programação é bem controlado", contou Ramiro Azevedo, diretor de programação da Box Brazil Media Group. 

A Globo, por sua vez, também carrega no portfólio um canal superbrasileiro, o Canal Brasil, além de outros que produzem um grande volume de conteúdo nacional, como OFF, Bis e Modo Viagem. "Hoje, uma das nossas grandes articulações internas é essa orquestração de distribuição de conteúdo e utilização dos talentos. Nossa visão prioriza manter o protagonismo de cada janela. A Globo é habilidosa no sentido de produzir conteúdo – e o conteúdo brasileiro é valor da empresa, não só vantagem competitiva. Buscamos fortalecer cada janela, sendo que cada uma tem seus conteúdos inéditos. Em alguns IPs temos esse olhar cross, de transitar entre janelas. Mas não é uma competição; trabalhamos harmonicamente", pontuou Daniela Mignani, diretora de canais de entretenimento, variedades, infantil e News da Globo. 

Modelos de fomento 

Grande parte desses conteúdos nacionais são produzidos a partir de verbas de fomento público. E se o Curta! diz que não sentiu um hiato no volume de produção por conta da pandemia, ele aponta que esse hiato vem, na verdade, do "apagão" no fomento da Ancine, que teve início em 2108 e só cessou recentemente. "Há novos editais na rua, o processo está sendo retomado. Mas como a agência passou um tempo sem contratações, teremos um hiato grande de produção original. É muito importante que a política de fomento persista. As cotas poderão até cair, mas como já vimos, todos os canais pagos incluíram mais conteúdo nacional do que a cota exigia – inclusive os estrangeiros. Em mercados da Europa as cotas nunca foram questionadas e persistem. Espero que persistam aqui também – embora o mercado não seja dependente delas", afirmou Julio Worcman, diretor geral do canal Curta!. 

Azevedo concorda que os canais já superaram essa necessidade de cumprir cota. "Não que eu esteja me posicionando contra elas, mas não nos preocupamos no sentido de que os nossos canais atingiram um nível de percepção de público, operadora e anunciante que esse não é mais o ponto. Mas acho importante que elas persistam, pois estão ali até como uma forma de manter o mercado e o conteúdo brasileiro vivos", defendeu. 

Do ponto de vista de uma marca internacional, Camila revela que eles também contam com o fomento – mas em vez do FSA, como acontece com o Curta! e o Box, eles fazem uso do Artigo 39. E fora o investimento público, há também investimento de fundos privados, em uma equação de 50% cada. "Projetos com possibilidade de produção via Artigo 39 se tornam mais atrativos dentro do modelo de negócio, mas também existem desafios, claro. Dependendo do tipo de financiamento, a característica da produção muda bastante, até o próprio cronograma e planejamento do canal", contou.  

Ancine defende ampliação dos incentivos 

Representante da Ancine na mesa, o diretor Tiago Mafra dos Santos entende que é importante fazer essa avaliação para além da cota, e que a percepção é que conteúdo nacional está relacionado à composição de marca e agregação de valor aos canais. Sobre os problemas de paralisação do FSA mencionados por Worcman, ele declarou: "Tomamos conhecimento dos problemas do Fundo em 2019, mas é importante ressaltar que desde 2020 estamos vivendo o contexto da pandemia. As próprias empresas solicitavam que não houvesse o desembolso dos valores antes que a pandemia cessasse. Então não foi só uma questão de apagão da nossa parte". 

O diretor prosseguiu: "Em relação ao fomento, o que eu vejo, e imagino que na discussão de cotas isso tenha que estar em voga, é que o modelo mais interessante é a ampliação de mecanismos de incentivo. Das obras brasileiras programadas em TV, pelo menos 40% teve algum tipo de incentivo, por isso defendo uma ampliação dos incentivos que já estão em vigor. A regulação do streaming e a reformulação do marco legal da TV paga devem, sim, passar por medidas de indução, e a principal indução é o fomento – e um fomento amplificador, e não regulador". Para Mafra, cabe à Ancine amplificar e regular só naquilo que tange à preservação da produção independente brasileira. No VOD, segundo monitoramento da Agência, são mais de cinco mil obras brasileiras presentes nas 45 plataformas analisadas, o que representaria de 8% a 9% do catálogo. No caso das plataformas que são programadas por agentes nacionais, esse número chega a quase 50%. "São dados que provam a relevância do conteúdo nacional", concluiu o diretor. 

Relevância do FSA 

É de fácil constatação que o FSA é essencial para produção de conteúdo brasileiro independente. No caso do Curta!, por exemplo, cerca de 60% das estreias contaram com recursos do Fundo Setorial. "É fundamental no nosso modelo de negócio. O canal foi montado para funcionar com a lei do fomento – não teria como funcionar. Nós somos a agência do FSA de varejo", brincou Worcman, que mencionou ainda que o valor que eles gastam por conteúdo original é mais ou menos o mesmo que pagam num licenciamento. 

O Box Brazil, por sua vez, tem quase que 100% dos seus conteúdos originais feitos com recursos vindos do FSA. "É quase tudo porque com o passar dos anos fomos aprendendo com a dinâmica do FSA e da produção independente que precisaríamos buscar alternativas, e não ficar exclusivamente dependente dele. Fomos atrás de modelos de viabilizar outros tipos de conteúdo. No Travel Box, por exemplo, fomos criativos, indo atrás de produtores de conteúdo da internet. Fizemos isso no FashionTV também, mas em menor escala. As novas formas de viabilizar ficam muito em cima de arranjos e parcerias com produtoras", citou Azevedo. 

O diretor da Ancine rebateu a fala de Worcman ao dizer que o objetivo não era que os canais se tornassem "agências de varejo do FSA", e que as produções não podem sempre ser financiadas pela política de fomento porque, nos planos da Agência, está destinar recursos para outros pontos do ecossistema audiovisual, como infra-estrutura e capacitação. "Não estou fazendo uma crítica ao canal, e sim ao modelo", ressaltou. "A questão é que o espírito da lei era gerar canais auto-sustentáveis pelo valor cobrado do assinante. Devemos reavaliar os modelos e as possibilidades de produção. Conteúdos produzidos totalmente no Brasil mas que são de propriedade de canais de fora não são considerados brasileiros. Ou seja, precisamos de uma revisão total, que passa pela reconstrução dos modelos", argumentou. 

Futuro das cotas 

A questão das cotas – isto é, a obrigatoriedade de tempo mínimo de veiculação de conteúdo brasileiro de produção independente – será revisada no próximo ano e a possibilidade de que elas não existam mais nesse modelo que conhecemos hoje é grande. Mafra adiantou: "Acho que a cota tem uma importância relevante, mas podemos, em vez disso, criar modelos de indução, fazendo com esse agente não necessite cumprir uma cota. Os canais têm que ser atrativos para o consumidor pelo conteúdo, e não pela obrigação. Hoje, os consumidores não exigem esses canais". 

Ao que Azevedo logo respondeu: "Em relação ao conteúdo, já está mais do que provado que o público brasileiro quer assistir produções nacionais, até os canais internacionais já superaram as horas impostas pelas cotas por perceberem a atratividade. Em relação às empresas, eu acho que os canais brasileiros tem atratividade, sim. O Travel Box, por exemplo, exibe mais de 12 horas diárias de conteúdo nacional, poderíamos alterar o registro dele. Mas ele já está em todas as operadoras, não mudaria a realidade do canal. Hoje ele está forte no mercado, tem anunciantes, é um canal bem nichado – o que faz sentido na TV paga". O executivo acrescentou: "Entre os investimentos da Agência que Tiago mencionou, há coisas previstas na lei – como investimentos em infra-estrutura para canais, com verbas para abater custos de satélite – que não foram aplicados. Tentamos algumas vezes provocar a Ancine para que esse módulo, que era previsto, fosse operacionalizado. Seria um grande incentivo, pois a verba economizada poderia ser reinvestida em conteúdo. Essa revisão que vem por aí precisa olhar para essas outras coisas, a fim de fomentar as programadoras independentes. Tornaria os canais brasileiros mais competitivos para concorrerem com players de investimentos de ordens muito superiores". 

Para Daniela, a cota não é o que faz os canais acontecerem, não é o que motiva. "Mas somos altamente favoráveis a qualquer mecanismo que fomente a indústria brasileira. Para além de economia e geração de empregos, estamos falando de cultura", salientou. 

Mafra finalizou: "A mudança na Ancine é de mindset mesmo. Queremos produzir um ambiente de debate, e não dizer como o mercado deve ser conduzido. Não vejo com preocupação as cláusulas da 12.485 que estão sendo encerradas, e sim como oportunidade. O marco legal deve promover a preservação dos players que já estão no mercado e permitir a entrada de novos". 

Na foto, Tiago Mafra, da Ancine; Camila Cecchi, da Sony Pictures Television; Julio Worcman, do Canal Curta!; Ramiro Azevedo, da Box Brazil Media Group; Daniela Mignani, da Globo; e Fernando Lauterjung, da Tela Viva. Crédito: Marcelo Kahn/TELA VIVA

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