“De Volta aos 15” teve sua terceira e última temporada lançada na Netflix em agosto. A série original nacional produzida pela Glaz Entretenimento coleciona bons resultados de audiência – essa última leva, por exemplo, alcançou o terceiro lugar no Top 10 Global de séries de língua não-inglesa mais vistas da plataforma, com mais de 8.4 milhões de horas assistidas. A produção audiovisual é baseada no best-seller homônimo de Bruna Vieira, tem direção geral de Dainara Toffoli, direção de episódios de Marina Person, Vitor Brandt e Gautier Lee, roteiros de Vitor Brandt (chefe de sala), Amanda Jordão, Gautier Lee, Luiza Fazio e Ray Tavares, com André Hanks como assistente, e produção de Carolina Alckmin e Mayra Lucas, da Glaz Entretenimento.
A série foi produzida, escrita e dirigida majoritariamente por mulheres ao longo de suas três temporadas, e se encerra ainda com uma mensagem positiva de representatividade LGBTQIAP+. Na frente das câmeras, as atrizes trans Nila e Alice Marcone ajudaram a contar uma história sobre as dores e as delícias do crescimento de uma adolescente trans que se torna uma escritora de sucesso na vida adulta.
“As protagonistas da história são mulheres, então temos esse cuidado – a Netflix estimula a gente nesse sentido, assim como o mercado brasileiro como um todo – de que atrás das câmeras seja igual é na frente. Ou seja, não faria sentido uma série protagonizada por mulheres ser conduzida por homens. Seria incoerente. Precisamos ser agentes da mudança e queremos que o mundo mude. E a série só cresceu com isso”, disse a produtora Carolina Alckmin em entrevista exclusiva para TELA VIVA. “Temos, por exemplo, essa trama de César que se transforma em Camila. E a Nila, a atriz, pessoalmente passou por essa transição também, ao longo das filmagens. Foi um privilégio para nós acompanharmos isso e termos ela na equipe. Essa representatividade enriquece a série de uma maneira que não conseguimos nem mensurar. Elucida e dá voz para muita gente, em muitas situações, e traz conforto. E de uma maneira muito natural”, completou.
A produtora enfatiza que o objetivo do projeto é contar uma história, mas sempre emocionar. “Se a gente conta a história só com o propósito de haver uma bandeira, nosso objetivo estará mal posto. Porque a principal intenção é tocar o coração das pessoas. Se fizermos isso, levaremos as pautas certas para os lugares certos. E acho que fizemos isso bem. Se uma família que não sabe como tratar essa questão e, ao ver a série, entender que é só amar e acolher, ou se um jovem que está vivendo esse processo e não sabe nem nomear o que está acontecendo, se sentir representado pela série, aí nosso trabalho estará feito. Esse papel de inclusão é parte de um lugar emocional”, reforçou.
Retrato natural a partir de experiências reais
Ainda atrás das câmeras de “De Volta aos 15”, quem escreveu essa história que quebra tabus e foge dos clichês ao retratar pessoas LGBTQIAP+ foi uma sala de roteiristas diversa, formada nesta última temporada por nomes como a roteirista queer Gautier Lee e a roteirista Luíza Fazio, mulher cis lésbica que se uniu ao time na terceira temporada. “Batemos muito na tecla da importância da diversidade na sala de roteiro e o nosso roteirista chefe, Vitor Brandt, faz muita questão disso. Quando ele vai escolher um roteirista, pensa primeiramente no talento da pessoa, claro, mas também na experiência de vida da pessoa e de que forma ela pode agregar aos personagens. Então a sala de ‘De Volta aos 15’ tem uma maioria LGBTQIAP+, negros, mulheres… É um lugar muito seguro para compartilharmos nossas próprias vivências. Acabamos acessando memórias de vida, ou até do presente, mas que se encaixam, e vamos conversando e vendo quais relações elas têm com os personagens”, explicou a roteirista Luíza Fazio.
Ela explicou que tratar de diversidade com naturalidade passa, por exemplo, por desenvolver uma trama lésbica que sai do clichê da pessoa se assumindo para os pais: “Isso a gente já falou. Podemos explorar coisas mais cotidianas para pessoas LGBTQIAP+. Um coração partido é um exemplo de um tema universal, independente de acontecer, como no caso do ‘De Volta aos 15’, num relacionamento entre duas mulheres. O fato de a nossa sala de roteiro ser tão diversa faz com que a gente possa trazer essas experiências pessoais e reais para dar complexidade para os personagens”. Para ela, o melhor feedback é aquele que fala que a produção é uma série com “jovens de verdade”, inclusive a comunidade LGBTQIAP+, “sem parecer que quem escreveu está tentando provar algum ponto”.
A roteirista acredita que “De Volta aos 15” continua um legado muito forte de séries e novelas teen no Brasil e abre essa porta que, segundo ela, foi muito pouco explorada, que é a da diversidade real. “São poucos os produtos que tiveram a coragem de fazer isso – e o sucesso da série está aí para provar que o público está precisando e querendo consumir esses produtos. E é uma série que viaja entre gerações, para além de territórios. E ainda deixa o legado de mostrar que, no Brasil, somos capazes de fazer produções boas e relevantes, e que vão impactar a vida das pessoas para o bem”.
Construção humanizada da personagem trans
A atriz Nila, que está no elenco desde a primeira temporada, começou a série como “uma atriz que precisava agarrar essa oportunidade a todo custo porque sentia que a carreira dependeria do desempenho nesse projeto”, nas palavras dela mesma. “Agora, quatro anos depois, finalizo essa série me enxergando de uma forma totalmente diferente. Claro que mudei muito. Construí uma personagem que, mais tarde, se tornou o meu veículo de investigação e entendimento sobre a minha própria identidade de gênero e, junto disso, vieram as mudanças de cidade, de relacionamentos e de vida em geral. E acredito que, justamente por ter me entregado muito nesse processo de construção de Camila/César, hoje percebo a grandeza que é fazer cinema”, reflete.
A profissional já recebeu diversos retornos, de pessoas de dentro e de fora do meio, sobre seu trabalho em “De Volta aos 15”, e todos falam especialmente sobre a importância da Camila ser essa personagem trans cujo conflito não é sua própria identidade. “Quantas séries você conhece que retratam a transição de gênero de forma leve, afetuosa e, ainda assim, profunda? Não há muitos exemplos nem no mercado exterior, e isso faz de ‘De Volta aos 15’ uma série bastante pioneira no assunto”, observa. “Mais recentemente, recebi uma mensagem de uma autora premiada de ficção científica, a Charlie Jane Anders, que é uma mulher trans, falando justamente sobre como a Camila é uma personagem única no universo cinematográfico, já que seu conflito não está centralizado na sua identidade: ela se apaixona, ela tem questões com a família, ela tem um livro para desenvolver, ela tem amigas e conflitos com essas pessoas, tudo isso em paralelo ao fato dela ser trans. A Camila é um grande exemplo a ser seguido sobre a construção humanizada de uma personagem trans. E isso só foi possível por termos pessoas trans envolvidas na sua criação, além de pessoas aliadas, interessadas em construir uma história que contemple essa parcela da sociedade”, reconhece.
Desenvolvimento e formação profissional
Nos bastidores, Nila também passou por mentoria de pós-produção na última temporada da série, ao lado da produtora Carolina Alckmin, pois deseja explorar a possibilidade de se tornar showrunner um dia. “Quero criar, produzir e atuar nos meus próprios projetos, e é essa ambição que tem ocupado meus dias desde janeiro”, afirmou. Ela revelou que já tem um projeto de série pronto, que desenvolveu junto da Camila Kertzman (roteirista de “Jogo Cruzado”, do antigo Star+), e está escrevendo mais dois projetos de longa-metragem e um de curta – este, que pretende filmar ainda este ano. “Acho que é um pouco daquele clichê que diz ‘seja a mudança que você quer ver no mundo’. Não consigo mais suportar a espera do mercado perceber que há potências significativas e econômicas nas narrativas queer. Também não me apetece mais o fato de fazer poucos testes de elenco e ter que me desdobrar para fazer as pessoas entenderem minha identidade de gênero – que pouco tem a ver com o meu desempenho profissional como atriz. Se não há espaço para pessoas trans no audiovisual, eu quero ajudar a construir um, então“, declara.
Nila considera que a experiência foi “além do esperado”, uma vez que ela se viu fazendo coisas que achou que demoraria anos para concretizar. “Passei mais de dois meses morando com a Carol (Alckmin, produtora) em Lisboa e viajando com ela para alguns países da Europa”. Nesse período, a atriz e futura showrunner esteve no Festival de Roterdã e, em outra oportunidade, também incentivada por Carolina, passou dez dias na Alemanha para acompanhar o Festival de Berlim, onde assistiu a estreias de filmes e participou de mesas sobre o mercado internacional, coprodução e outros temas relacionados às narrativas cinematográficas queer. “Além de todo o networking que fiz enquanto estava indo aos encontros. Em geral, essa experiência me fez acreditar que posso chegar a qualquer lugar que eu quiser, e que a pessoa que eu sou e o lugar de onde eu vim são as potências que me farão chegar lá”, destaca.
A princípio, a ideia da residência era que ela acompanhasse o processo de finalização e pós-produção da terceira temporada – mas, para Nila, acabou sendo um grande intensivo sobre o que é, de fato, ser produtora: “A Carol é uma grande produtora, que tem uma enorme desenvoltura criativa e analítica, e eu a via trabalhar todos os dias, dentro e fora do horário de trabalho. Dessa forma, fui entendendo que a base desse trabalho é a comunicação. É como queremos entrar na casa das pessoas, como podemos provocá-las emocionalmente e, principalmente, qual mensagem queremos criar no imaginário delas. Acho que foram os momentos de descontração que eu tive com ela que mais me ensinaram sobre produção cinematográfica. É um trabalho árduo e difícil de se fazer no Brasil – mas tem que ser bom. Tem que ser prazeroso, e temos que buscar a razão pela qual aquela história merece ser contada. A hora da edição, por exemplo, é o momento que reescrevemos a narrativa e condensamos as mensagens que queremos que o público reflita”.
Por fim, a atriz considera que todo esse processo lhe deu esperanças de que pode haver espaço para ela nesse mercado – se ela se esforçar para criá-lo. “Esse projeto sempre foi muito generoso comigo e a Carol foi uma, dentre muitas nessa série, que me enxergou e acreditou em mim. Sempre serei grata a ela por ter me feito este convite e espero que um dia, quando me tornar showrunner, eu possa agradecê-la por ter plantado essa sementinha lá atrás, quando finalizávamos um dos melhores projetos que fizemos”.
Iniciativa Netflix
Iniciativas como essa existem desde que a Netflix começou a produzir no Brasil: o serviço investe no desenvolvimento de talentos em suas produções e também em profissionais em início de carreira no audiovisual, atuando sempre por meio de lentes inclusivas, com foco em contribuir para a formação de mais profissionais nos diversos departamentos da indústria. A roteirista queer Gautier Lee, além de ter feito parte da sala de roteiro nas duas últimas temporadas de “De Volta aos 15”, também passou por mentoria de direção com a diretora geral da segunda temporada, Maria de Medicis, e agora na terceira e última temporada co-dirigiu o episódio 5.
A história da Camila foi muito legal, mas na última temporada forçaram um pouco, basicamente quase todos os relacionamentos eram gays. É muito mais representativo quando há um equilíbrio, pq ficou meio forçado!