Preservação audiovisual é problema sistêmico no Brasil e na América Latina

A maior crise já vivida pela Cinemateca Brasileira ressalta o problema sistêmico da preservação e nos alerta para a importância de envolver toda a cadeia produtiva e sensibilizar a sociedade para a importância da preservação audiovisual. O assunto foi tema do painel "Preservação de filmes e formação de público", que foi realizado nesta quinta-feira, dia 7 de outubro, como parte da programação do Reach, braço do BrLab voltado às discussões sobre públicos e audiências. 

Inês Aisengart, preservacionista que já trabalhou na Cinemateca Brasileira, abriu sua fala no painel fazendo um esclarecimento: "Não podemos falar em obras preservadas. Afinal, elas nunca estão preservadas de forma concluída. A preservação deve ser contínua. Mas, infelizmente, filmes em preservação são exceção e, hoje, carregam em si o signo da ruína. Desastres com fogo e água somados à precariedade de preservação e à ausência de políticas e mecanismos de investimento formam essa ruína que assombra a Cinemateca Brasileira, que exatamente hoje está completando 75 anos de existência mas segue fechada, em uma crise sem precedentes". 

A especialista fez então uma breve linha do tempo da instituição, relembrando suas décadas de dificuldades lá no início seguidas por um processo de amadurecimento a partir do ano 2000. "No entanto, sem formalizar a equipe técnica, que passou por arranjos temporários uma vez que não houve concurso público", reforçou. "Nesse período, projetos educacionais e de formação de público foram desenvolvidos e a Cinemateca foi sede de importantes eventos. Mas, em 2013, veio o primeiro grande baque depois de muita prosperidade. Isso acarretou no incêndio em 2016, quando os trabalhos estavam sendo retomados – com parcos recursos, mas ainda com muita autonomia". Aisengart pontua que a partir de 2018 a Cinemateca passou a ser palco de disputa política, e "pessoas incompetentes e inadequadas assumiram a direção da instituição". Uma das primeiras ações do novo governo, no início de 2019, foi a extinção do Ministério da Cultura. "Então, a Cinemateca tornou-se um espaço usurpado por esse novo governo. Desde agosto de 2020 ela segue fechada, com enorme prejuízo ao acervo documental e audiovisual e ao laboratório de processamento de películas, vídeo e digital, um dos mais completos e o único que estava ativo no Brasil", ressalta a preservacionista, lembrando ainda que o corpo técnico foi dispensado com salários atrasados e em pleno contexto da pandemia, trazendo consequências nefastas à sociedade, como perda de décadas de trabalho minucioso e recursos públicos investidos ao longo do tempo. 

Nesses 75 anos, a instituição sofreu cinco incêndios e uma enchente, sendo o mais recente dos incêndios há 70 dias. "Foi igualmente trágico em relação ao acervo e ainda não há uma posição oficial sobre o que foi perdido", reforça. 

Hoje, temos uma série de movimentos a favor da Cinemateca Brasileira, com atuação da sociedade civil, ex-trabalhadores, moradores do bairro onde ela está localizada, coletivos de cultura e audiovisual e a ABPA – Associação Brasileira de Preservação Audiovisual. Há ainda uma ação civil pública em andamento mas, segundo Aisengart, "de nada adiantou". Para a especialista, o governo "fez uma desestruturação brutal da instituição e as soluções indicadas são alarmantes, como um contrato emergencial que nunca se inicia e um edital para a seleção de uma nova organização social para a gestão da Cinemateca que está saturado de armadilhas, como um orçamento anunciado muito aquém de suas reais necessidades". 

Para concluir o tema, ela declarou: "2021 deveria ser o ano da efeméride dos 75 anos da Cinemateca, mas essa tragédia é mais uma no meio de tantas agravadas pela pandemia, corrupção e truculência desse governo criminoso. O audiovisual é uma ferramenta potente de educação e educadores e preservacionistas têm novos desafios pela frente no que diz respeito à formação de público e valorização do audiovisual como forças contrárias a esse apagamento de culturas. O desafio de promover o reconhecimento das produções nacionais como elementos do patrimônio audiovisual e mecanismos para sua preservação". 

Formação de público 

O painel desta quinta também girou em torno do tema da formação de público. Nesse sentido, Aisengart menciona a criação de mecanismos no mercado para reverter signos de ruína e aumento da oferta de patrimônio audiovisual brasileiro nas janelas comerciais. "Falo de cota de tela de streaming e editais para subsidiar a digitalização e a restauração das obras brasileiras não-contemporâneas. O nosso market share nas telinhas é patético – e não por conta da qualidade do conteúdo. Precisamos reverter esse abismo junto das plataformas. Precisamos de políticas e programas para a valorização de memórias marginalizadas, além de novas dinâmicas entre universidades e arquivos", afirmou. 

Markus Duffner, coordenador da Locarno Heritage, concorda: "É preciso reestruturar mecanismos de mercado para plataformas se sensibilizarem também. Entre os grandes serviços de streaming, a sensibilização é inferior nesse aspecto. É muito importante chegarmos a novas audiências". 

Já Adriana Fresquet, professora na FE/UFRJ que trabalha em parceria com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do RJ, reforça a questão da união entre educação e audiovisual. "Juntos, nós temos o poder de transformar essa ruína em utopia. É necessário fazer uma reflexão sobre o lugar da educação. Talvez uma das possibilidades de transferir essa ruína para utopia seja converter políticas públicas do audiovisual com as políticas públicas para a educação. Nesse sentido, a experiência que temos na Federal do Rio de Janeiro com a Cinemateca seja uma espécie de piloto para podermos pensar em políticas públicas que efetivamente democratizem o acesso ao acervo audiovisual", explica. "A relação das Cinematecas e Museus de Imagem e Som com os estudantes se torna vital em um tempo de 'algoritmização' da vida. Cada vez mais estamos sendo levados a um determinado modo de ver e consumir. Por isso, acredito em horas de cinema nacional nas cargas das escolas brasileiras, por exemplo. É uma maneira de, em um país de assimetrias sócio-econômicas e culturais, democratizar o acesso à produção nacional. Precisamos estreitar esforços, multiplicar iniciativas que comprometam atividades pedagógicas com audiovisual", completa. "Para isso, é urgente que novas políticas de preservação e digitalização dos acervos aconteçam no Brasil e na América Latina como um todo para circular pelas escolas e universidades", conclui. 

Preservação digital 

Frédéric Maire, diretor da FIAF – Federação Internacional de Arquivos Fílmicos, organização que conta atualmente com 171 membros oficiais espalhados por 79 países diferentes, contou que a ideia inicial da Federação era vincular os arquivos e as Cinematecas do mundo inteiro, com o objetivo central de preservar o material fílmico, memória essencial para as sociedades, mas também para compartilhar filmes. "Nesse caminho, a FIAF desenvolveu projetos de formação, suporte e apoio à Cinematecas, especialmente de países com dificuldades. Não podemos intervir diretamente nos países, mas fazemos o que é possível. Enviamos uma carta para o Governo Brasileiro, a fim de ajudar a Cinemateca, mas nada aconteceu", disse. Nesse sentido de incentivar o Brasil, a FIAF anunciou o cineasta brasileiro Walter Salles como o laureado do Prêmio FIAF 2020. 

Acerca da preservação, Maire refletiu: "A meu ver, o problema real é preservar a memória de hoje, que é muito frágil. Poderíamos falar em armazenamento na nuvem, mas não sabemos se é por aí", afirmou, citando ainda eventuais problemas de segurança digital. "Tenho medo que essa conservação seja difícil. Na Suíça, França e em alguns outros países estamos colocando filmes digitais em negativos, filmes físicos mesmo, para termos esse material seguro em nossos armazéns. Em países com laboratórios de processamento de películas, vídeo e digital, esse poderia ser um sistema mais econômico e lógico para conservar esse patrimônio, ou pelo menos uma parte desse patrimônio digital". 

Para Aisengart, no Brasil estamos atrasados para lidar com o digital em políticas estratégicas e de informação. "Arquivo é poder. Não podemos perpetuar a dinâmica do século passado, onde a produção e também a preservação orbitavam em torno de uma única classe econômica. Temos o desafio de incutir a consciência sobre a importância da preservação e, quiçá, isso gere maior representatividade", finalizou. 

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