A pedrada de Davi

(Foto: Divulgação)

A cada temporada de premiações da indústria audiovisual, fica evidente o quanto os serviços de streaming consolidaram sua presença nesse circuito. Na última cerimônia do Oscar, por exemplo, a Netflix pode até ter se frustrado ao ver sua coqueluche da temporada, Emilia Pérez, conquistar somente duas das treze categorias para as quais foi indicada, mas o nome da gigante do streaming apareceu em vários dos discursos de agradecimento. Já o número musical dedicado à franquia 007 serviu como uma vitrine para a Amazon, fundida à MGM, demonstrar sua força perante a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

* Lucas Martins Néia é roteirista, diretor e professor. Autor do livro Como a ficção televisiva moldou um país: uma história cultural da telenovela brasileira (1963 a 2020). Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. (Foto: Divulgação)

Em meio a esse "desfile de gigantes", um "Davi" brasileiro foi capaz de desferir uma pedrada certeira: com três indicações em categorias importantes, o Globoplay trouxe para o país a tão sonhada estatueta de melhor filme internacional. A vitória de "Ainda Estou Aqui", vendido como o primeiro filme original da plataforma, em um evento que, mesmo dedicado à entronização do cinema estadunidense, indiscutivelmente reverbera mundo afora, torna-se um valioso ativo para a Globo – que, agora, com certeza espera que esse prestígio contribua para a saúde financeira do seu braço digital.

Como bem lembrou o colunista Flavio Ricco, do Portal Leo Dias, "Ainda Estou Aqui" foi um projeto implementado na gestão Erick Bretas, substituído no início do ano passado por Manuel Belmar no comando do Globoplay. Não à toa Belmar assumiu o cargo após anos de experiência na área financeira do Grupo Globo, cujo interesse nessa troca residia em um direcionamento mais incisivo para que o streaming começasse, o quanto antes, a apresentar rendimentos compatíveis com aquilo que fora investido na área.

Isso não pode ser visto, contudo, à parte do que acontece em todo o Grupo Globo. O enxugamento de custos se reflete, inclusive, nos produtos da empresa para a TV aberta, especialmente as telenovelas – não à toa muitos nomes da era de ouro da Globo, agora desligados da emissora, têm apontado criticamente para tais reconfigurações no âmbito da dramaturgia diária. A nova política de contratos adotada pelo grupo tirou muitos veteranos da frente e de trás das câmeras – e, no caso dos profissionais dos bastidores, não falamos somente de autores e diretores, mas de todos os setores técnicos e artísticos responsáveis por fazer uma produção permanecer no ar no decorrer de oito meses.

É claro que novos modelos de negócio são necessários. Vivemos na transição da era dos meios de comunicação de massa para a era dos meios de comunicação digital. Os concorrentes diretos da Globo não são mais Record ou SBT, e sim YouTube e as já citadas Netflix e Amazon, além de HBO e afins; ou seja, players transnacionais. E a empresa sente tal impacto não só na TV aberta: basta pensar que ela também estende seus tentáculos para a TV fechada, via Globosat, e no âmbito do cinema, por intermédio da Globo Filmes. Com os investimentos migrando cada vez mais das chamadas mídias tradicionais para o digital – e com o Globoplay não obtendo lucros imediatos, ainda que isso estivesse previsto –, é claro que o grupo como um todo precisa se reconfigurar com vistas à otimização de suas operações.

Esse domínio da cena audiovisual brasileira por parte da Globo durante todos esses anos, contudo, também a coloca em uma posição privilegiada no que diz respeito às formas de narrar caras ao público brasileiro. Em contrapartida, a Netflix parece preferir impor aos criadores nacionais uma visão pasteurizada do que seriam "narrativas locais para mercados globais"; poucas séries da plataforma, como Sintonia, fogem de tal equação, e somente uma produção do Brasil contou, de fato, com investimentos comparáveis aos das superproduções estrangeiras da empresa: "Senna" – por conta, claro, do tamanho e da visibilidade do personagem-título em todo o mundo. O Prime Video, a seu turno, mesmo com boas produções nacionais no currículo, como "Manhãs de Setembro" e "Dom", ainda vê tais obras reverberarem mais entre a crítica do que junto ao público. E a HBO tenta furar essa bolha justamente com um produto caro à sua principal concorrente brasileira: uma telenovela, "Beleza Fatal" – que, assim como a série "Amor da Minha Vida", do Disney+, se vale de todo um star system criado pela Globo para angariar prestígio e público nesse mercado.

Pelos enfoques e personagens de suas ficções seriadas originais – "Arcanjo Renegado", "Rensga Hits!", "Rota 66", "Encantado's", "Os Outros", "As Aventuras de José e Durval", "Betinho", entre outras –, nota-se que há um esforço por parte do Globoplay em delinear uma espécie de mosaico do Brasil. Essa intenção, de alguma forma, caracteriza historicamente não só as telenovelas da Globo, mas principalmente suas séries – vide as "séries brasileiras" implementadas por Daniel Filho no final dos anos 1970, com o lançamento de títulos como "Malu Mulher", "Carga Pesada" e "Plantão de Polícia". A partir da década de 1980, a emissora também passa a investir em minisséries ora de caráter histórico, ora com um viés interpretativo da realidade contemporânea do país mais aprofundado do que o das telenovelas – possibilitado pela curta duração e pelo horário em que tais ficções eram exibidas.

Voltando ao cenário contemporâneo do streaming, é interessante observar algumas contradições: se "Ainda Estou Aqui" é o primeiro filme original Globoplay, em qual categoria "Dona Lurdes, o Filme" – baseado, justamente, em uma personagem de grande sucesso de uma telenovela – se enquadraria? Esse exemplo demonstra que, mesmo no digital, noções (de valor, inclusive) como a de filme, ligada à lógica do cinema, e telefilme, algo considerado "menor", permanecem cristalizadas na indústria, reverberando o universo e o modus operandi ainda pulsante das mídias tradicionais.

Que o Globoplay saiba capitalizar o sucesso de "Ainda Estou Aqui" por meio do investimento em narrativas que, efetivamente, dialoguem com o público brasileiro, priorizem o jeito brasileiro de contar histórias – exatamente aquilo em que a Globo, na TV aberta, se especializou ao longo do tempo. Que o Grupo Globo tenha noção de que isso, talvez, demande tempo (e, claro, dinheiro), e que busque por caminhos que coadunem seus objetivos financeiros às necessidades e lógicas criativas do seu capital humano. Que a empresa fuja da armadilha da uberização que já afeta grande parte do setor audiovisual brasileiro e seja capaz de potencializar todo esse prestígio construído historicamente – isto é, essa habilidade de falar do/com o Brasil – no ambiente digital.

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