A Tecnologia não dita as regras

Em qualquer sociedade organizada, os regramentos sociais, políticos e econômicos fazem parte de um ordenamento jurídico que não se subordina a qualquer tecnologia, existente ou não. As atividades de cada setor, independentemente da tecnologia utilizada para sua execução, seguem regras gerais mantendo o status quo da segurança jurídica.

E o que isso tem a ver com as tentativas de interferência por alguns agentes na Lei 12.485, a Lei do SeAC – Serviço de Comunicação de Acesso Condicionado, que preserva o equilíbrio entre agentes do setor audiovisual para as ofertas de programação linear de canais de televisão por assinatura? Tudo. É claro para todos os segmentos do audiovisual que, a partir da Lei, configurou-se uma indústria vigorosa e crescente no Brasil, à semelhança de muitos países. Mas ninguém discorda que passados sete anos de sua vigência, ela merece atualização.

O Brasil viveu ciclos virtuosos do cinema, sempre produzido de forma independente. Tivemos três estúdios: Atlântida, Vera Cruz e Cinédia, que não se sustentaram economicamente, apesar de breve êxito de público e crítica. Mas foi o cinema independente que impulsionou o cinema nacional, que vive novo grande momento no mercado interno e é, incansavelmente, premiado no exterior.

No entanto, a televisão no Brasil nasceu, além de exibidora, também produtora. A TV brasileira "produzia tudo o que exibia e exibia tudo o que produzia". Em nenhum lugar do mundo é assim. As tevês abertas produzem o que lhes é editorial, o que é seu core business. Todo o restante de sua grade de programação é feito em coprodução ou por produtores independentes. Curiosamente, as tevês abertas no Brasil caminham em sentido contrário ao cenário internacional – buscam ser produtoras, inclusive para outras formas de distribuição. O grupo Globo busca a fusão entre TV Globo, Globosat e GloboPlay, enveredando pela identidade de produtora e não mais a relevante exibidora brasileira.

A Lei 12.485 configurou em sua essência alguns princípios constitucionais, como o do estímulo à produção independente brasileira e à produção regional. Após anos de debate no Congresso, ela firma um equilíbrio comercial, de direito patrimonial entre os agentes da cadeia produtiva do audiovisual. A garantia de presença do conteúdo brasileiro independente nos canais ofertados no Brasil se faz cada vez mais presente, superando as cotas mínimas estabelecidas, muito menores que em vários países, e conferindo resultados expressivos em audiência. Formou novas gerações de autores, produtores, técnicos, abriu mercado de trabalho. Gerou propriedades intelectuais, ativos econômicos e royalties para o País. E ainda viralizou essa qualidade e interesse do público à produção cinematográfica e de obras seriadas brasileiras nas novas plataformas de vídeo por demanda.

O que acontece hoje na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação do Senado é que por conta da necessidade de uma empresa global de telecomunicações, tenta-se romper um arcabouço jurídico exemplar quebrando-se uma das regras desse equilíbrio, expressa nos artigos 5º e 6º da Lei, que impedem a propriedade cruzada, ou seja, a verticalização de atuação de alguns agentes em detrimento de todos os outros. Quem atua como operador (distribuidor) de televisão por assinatura não pode simultaneamente ser programador (proprietário de canais de TV) e produtor. Passar por cima desses artigos permitiria que uma mesma empresa atuasse em todos os segmentos, fazendo valer seu poder econômico, o que é contra as regras concorrenciais e contra o interesse do consumidor. Essa análise técnica ainda ocorre na Agência Nacional de Telecomunicações, que pediu mais tempo de análise diante da complexidade do tema.

Surgiu aí outra questão, mais grave, que é a tentativa de se burlar esses regramentos, no esforço de convencer congressistas, mídia e opinião pública de que é possível oferecer canais de televisão pela Internet sem qualquer regra ou condição. Em nome de uma falácia de liberdade na internet, sem regulação, sem impostos, sem compromisso com a sociedade e o Estado brasileiro. As contas correntes acessadas pela Internet ou pelos aplicativos não estarão sujeitas às regras do Banco Central e sequer pagarão tarifas bancárias. Somente seguirão as regras do setor as agências analógicas. Verdade? Claro que não. Da mesma forma que não é verdade que voto por biometria pode selecionar mais de um candidato a eleições majoritárias e só seguirão as regras do Tribunal Superior Eleitoral os votos que utilizam tecnologias anteriores.

Estamos diante de uma artimanha semântica, que não se sustenta. O que está sob regramento é o audiovisual, sujeito e objeto, centro da oferta do serviço e não a tecnologia pelo qual esse objeto é distribuído. E quem confirma isso é o Supremo Tribunal Federal em relatório aprovado constitucionalmente pelo Ministro Luiz Fux, assim como inúmeros pareceres de juristas renomados.

O impacto econômico desastroso de uma ação dessas, que se apresenta sob forma de emendas ou projetos de lei no Congresso, é destruir uma indústria brasileira que cresce e gera milhares de empregos. Fazer valer a Lei, o regramento comercial e social de tanta relevância econômica no mundo contemporâneo, de uma indústria limpa, civilizatória, é fazer valer a ordem jurídica. Sabemos que os parlamentares estarão atentos e não serão atraídos pelo diversionismo semântico que se tenta apresentar como tese. Porque sabemos que Banco é Banco em qualquer tecnologia. Audiovisual é audiovisual sob qualquer distribuição. A verdade é a Lei. Que pode ser atualizada sempre. Para melhor.

*Mauro Garcia é presidente executivo da BRAVI – Brasil Audiovisual Independente.

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