A Spcine, empresa de cinema e audiovisual da cidade de São Paulo, participou do Ventana Sur, o maior mercado de conteúdos audiovisuais da América Latina, que neste ano aconteceu em Montevidéu, no Uruguai, entre os dias 2 e 6 de dezembro, com uma programação que reflete seu compromisso com a democratização cultural e a formação de novos agentes do audiovisual. No âmbito do evento, as prefeituras de São Paulo, por meio da Spcine, e de Montevidéu, firmaram um Acordo de Cooperação Técnica que tem como objetivo fortalecer o setor audiovisual na América do Sul.
No Ventana Sur, a instituição realizou uma mesa de debate com a presença do diretor de inovação e políticas audiovisuais da Spcine, Emiliano Zapata, e o superintendente Leandro Pardí. O tema central foi o Circuito Spcine, um dos maiores circuitos públicos de salas da América Latina, que recentemente anunciou um plano de expansão para novas localidades, reforçando o compromisso com o acesso ao cinema como política pública. A Prefeitura tem, atualmente, 32 salas de exibição nos Centros Culturais e Educacionais e se tornou a maior rede de salas públicas do continente, empatada com a Cidade do México. O painel abordou as atividades estratégicas da Spcine e os avanços no fortalecimento do Circuito Spcine como ferramenta de inclusão cultural e também explorou a importância de parcerias locais e internacionais no contexto das políticas públicas audiovisuais.
"Nossa participação no Ventana Sur foi incrível. O evento é um dos mais importantes para o audiovisual no contexto de América Latina. Os acordos que fizemos por lá são muito relevantes principalmente para a minha diretoria", contou Zapata em entrevista exclusiva para TELA VIVA. A Spcine apresentou para os outros países esse trabalho de acesso democrático ao cinema que tem feito no Brasil – somente em 2024, foram 12 novas salas inauguradas. "Eles ficaram completamente impressionados com essa iniciativa. Pensar em 32 salas públicas, com programação anual, sessões três vezes por semana, é de fato uma política quando se pensa em fomento na prática. Proporcionamos a primeira ida ao cinema de muitas crianças e nossas salas oferecem uma experiência igual a das salas do shopping, com os mesmos projetores e telas. É bem imersivo", pontuou.
Circuitos especiais e experiência coletiva
No Ventana Sur, Zapata ainda compartilhou a retomada das sessões voltadas a pessoas que estão no espectro autista, um braço de programação das salas chamado de "Circuito Azul", liderada por ele. "Uma vez, fizemos uma sessão e uma criança autista não conseguiu participar. Aquilo mexeu comigo. Falamos tanto de inclusão, pensamos tanto em como deixar nossas salas acessíveis, e como assim uma criança não poderia entrar? Fui pesquisar mais sobre o assunto e descobri que aumentou muito o número de crianças com esse diagnóstico nos últimos anos. E quando vamos para o território periférico, a situação é ainda mais complicada, porque o processo de conseguir o laudo é caro, muitas crianças têm o diagnóstico e os pais não sabem lidar, ou têm medo de falar. É difícil. Quando estamos em determinados lugares da cidade há muitos especialistas e soluções, mas nas franjas da cidade, as famílias não sabem como lidar", observou o diretor, que aproveitou o evento no Uruguai para dividir a experiência com produtores de outros territórios.
"Ainda são poucas as iniciativas no audiovisual pensadas para esse público. Existe uma portaria que deveria acontecer nas salas comerciais, mas eles falam que é prejuízo e acaba não acontecendo muito. Nós, enquanto sala municipal, do poder público, precisamos criar essa janela de fato. Conseguimos neste ano tornar isso possível e, agora, está no nosso calendário anual. Tem dado certo, e estamos recebendo cada vez mais pessoas. Foi muito legal levar essa política pública, que é tão humanizada, para um panorama internacional – principalmente envolvendo toda a América Latina".
Está nos planos de Zapata ampliar essas sessões especiais para outros públicos também – como os idosos, por exemplo. "Eles frequentam muito os CEUs. Fazem aula de dança, alongamento, diversas atividades. Tem uma programação ampla para eles. Mas descobrimos que muitos nunca tinham ido ao cinema. Às vezes, levavam os filhos, mas acabavam não entrando nas sessões porque aí era mais um ingresso pra pagar, e não é barato. Então preferiam proporcionar a experiência para os filhos. Mas, agora, com as salas públicas, eles querem ir, conhecer e desenvolver esse hábito. A gente pensa muito em crianças nos CEUs, por ser um centro educacional, mas tem todo esse universo de idosos interessados também. Eles inclusive pedem filmes antigos que queriam ter ido ver no cinema quando eram jovens. Faremos as sessões 'Melhor Idade', totalmente voltadas para esse público", contou. Para 2025, outra novidade será o circuito de programação para mães, que muitas vezes enfrentam dificuldades para assistir aos filmes nas sessões convencionais.
Todas essas iniciativas têm, para além dos seus objetivos, uma missão mais ampla, que é recuperar a ida ao cinema como uma experiência coletiva. Além disso, no contexto periférico, elas têm outro peso. "Os lugares onde estamos são pontos da cidade onde jamais inaugurariam salas comerciais. Essas pessoas estão geograficamente distantes, além da questão financeira. O cinema acabou se tornando um não-assunto nesses espaços. Elas veem cortes dos filmes nas redes sociais, pegam a senha do streaming do amigo, vão fazendo do jeito que dá. Hoje, é muito bonito ver essa formação de público crescendo", celebra o diretor.
Garantia de acesso
Para ele, é importante que as sessões do Circuito Spcine sejam divulgadas pela mídia – mas, normalmente, elas figuram em listas de lugares para assistir filmes de graça, o que para Zapata é uma definição aquém do que a iniciativa de fato representa. "O Circuito é muito mais do que isso. É sobre acesso, ter aquilo de forma garantida o ano inteiro, com três sessões por semana, às quartas, quintas e domingo. Não é só uma janela para ver de graça durante um período. É uma sala que pertence àquele território. Está nesse lugar de identificação, do cinema perto de casa, que a pessoa sabe onde é, conhece a programação. É uma política que tem dado muito certo – e que temos que ampliar cada vez mais".
O diretor lembrou ainda que o próprio setor tem um pouco de dificuldade de entender a importância dessas salas. "No Circuito, temos filmes nacionais que são grandes hits. São títulos que às vezes morrem no circuito comercial. Mas quando continuam em cartaz, o filme segue vivo, reverberando. Isso é o mais importante, manter a chama do cinema acesa o ano inteiro".
Levar o cinema a esses territórios e para essa parcela da população é também entender que eles devem fazer parte da conversa. Zapata explica: "Hoje, falam muito do sucesso de 'Ainda Estou Aqui'. Mas só vai ser um sucesso mesmo quando a gente chegar nos CEUs e estiverem falando sobre isso. Essa conversa que 'todo mundo' está tendo agora, só chega nessas franjas da cidade daqui seis meses, um ano. Só vai ser um sucesso para o setor mesmo quando todos estiverem na mesma página, falando do mesmo filme. Enquanto estivermos falando de indicações e premiações internacionais, ainda será uma coisa muito da bolha. Precisamos levar o filme e fazer com que ele tenha esse mesmo impacto por lá, entre essas pessoas que estão literalmente à margem". Nesse sentido, o diretor ainda enfrenta dificuldades para levar alguns títulos ao Circuito – e não falando especificamente do "Ainda Estou Aqui", mas de maneira mais geral mesmo. "Muitas vezes as distribuidoras falam que não dá para colocar naquele momento. Mas não podemos perder o timing. As pessoas querem saber, fazer parte da conversa, entrar no jogo com propriedade. Falar 'eu também assisti a esse filme no cinema' é empoderador. Quando pensam de forma ampla no ato de levar conteúdo de graça, ainda associam muito a filmes mais antigos. Não tem tanto essa preocupação de exibir o que está rolando agora. Essa é uma discussão que precisamos trazer".
E falando na programação das salas, Zapata destacou que as mostras têm dado muito certo. "Elas criam senso crítico nas crianças. Fizemos mostra chinesa, japonesa, coreana… É lindo ver as crianças saberem o olhar de cada uma dessas nacionalidades e não colocá-las no mesmo lugar. Eles começam a entender culturalmente e não crescem com um olhar xenofóbico, minimizando uma nação. E também crescem sabendo que o cinema norte-americano é legal, mas não é o eixo. Mostramos para elas a pluralidade". E, com esse objetivo, a Spcine tem procurado os consulados, que têm grandes portfólios de conteúdos que não circulam, ao mesmo tempo em que têm interesse nessa difusão, nessa troca. Para além dos consulados, ela busca parcerias com os festivais também. A Spcine já é apoiadora de diversos eventos do setor, mas tem pedido como contrapartida que os filmes selecionados sejam exibidos nos CEUs depois. "Muitas vezes falam que não é o público deles. E eu digo que não é o público ainda! Quando você oferece o conteúdo, você descobre o público. É um território que não conhecem ainda. E acho legal poder cobrar isso dos festivais".
Fomentar o audiovisual a partir da formação de público
Seguindo o processo de ampliação do número de salas feito em 2024, a ideia para 2025 é inaugurar ainda mais espaços. "O plano é que a gente consiga agora expandir para mais 15 CEUs – essa é a nossa nova meta. Quanto mais salas a gente entrega, mais a gente descobre que precisa entregar. São Paulo é muito grande", salienta o diretor.
E, pensando em enfatizar a importância do Circuito, a Spcine encomendou uma pesquisa junto à FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) para provar para o próprio setor o impacto que essas salas têm no meio. A pesquisa mostra, por exemplo, que os lugares que possuem salas do circuito têm menores índices de pirataria e de violência. "Queremos mostrar esses dados até para fazer um letramento dos gestores públicos. Quando falamos de cinema, ainda nos colocam num lugar muito alegórico. Mas cinema é política pública que resolve problema. Esse é o maior desafio que temos e que queremos continuar batalhando, para que as pessoas entendam, e principalmente dentro do contexto público. O Prefeito compareceu a algumas inaugurações de salas e ficou encantado. Entendeu que é importante e que dá resultado – porque mais do que algo itinerante, o Circuito é solução permanece. Meu grande sonho é trazer o governador para essa história e expandir o projeto para o estado – principalmente para cidades com menos de 70 mil habitantes, porque sei que uma sala de cinema faz grandes transformações nesses lugares. E, por que não, pensar numa expansão também a nível federal".
Por fim, Zapata reflete: "Quando se fala em fomento, rapidamente associam a editais para fazer mostras, festivais, e principalmente produzir. Mas vejo o fomento como fazer com que os filmes cheguem a esses lugares extremamente periféricos. Não existe nada maior para fomentar o audiovisual do que formar público. É garantir que a experiência do cinema continue viva dentro das pessoas".