Ceará é destaque na abertura da Quinzena de Cineastas em Cannes 2025 com quatro curtas e foco na internacionalização

Os oito diretores da Directors' Factory: Marcel Beltrán, Luciana Vieira, Stella Carneiro, Bernardo Ale Abinader, Ary Zara, Sharon Hakim, Wara, Sivan Noam Shimon. (Crédito: Jamille Queiroz)

O estado do Ceará ganha projeção internacional ao abrir a Quinzena de Cineastas no Festival de Cannes em 14 de maio, com a estreia de quatro curtas-metragens. Estas obras são fruto do Directors' Factory Ceará Brasil, uma iniciativa do Governo do Ceará, através da Secretaria da Cultura, em parceria com a Quinzena de Cineastas. O renomado diretor cearense Karim Aïnouz apadrinha esta edição, que marca o retorno do programa à América Latina após uma década, com o objetivo de promover a formação profissional de jovens realizadores e impulsionar a internacionalização da produção audiovisual da região Norte e Nordeste do Brasil. A Quinzena de Cineastas, principal mostra paralela ao Festival de Cannes, acontece entre 14 e 24 de maio.

Os quatro curtas, filmados integralmente em Fortaleza/CE, com a participação direta de mais de 100 profissionais locais, refletem um mosaico multicultural. As obras são: "A fera do mangue", codirigido por Wara (Ceará, Brasil) e Sivan Noam Shimon (Israel); "A vaqueira, a dançarina e o porco", uma colaboração entre Stella Carneiro (Alagoas, Brasil) e Ary Zara (Portugal); "Ponto cego", de Luciana Vieira (Ceará, Brasil) e Marcel Beltrán (Cuba); e "Como ler o vento", realizado por Bernardo Ale Abinader (Amazonas, Brasil) e Sharon Hakim (França/Egito).

O Directors' Factory e o papel de facilitador de Karim Aïnouz

O Directors' Factory é um programa dedicado a descobrir talentos emergentes globalmente, fomentando a coprodução internacional. A cada ano, um país parceiro é escolhido, e oito cineastas com projetos de primeiro ou segundo longa-metragem são selecionados para coescrever e codirigir quatro curtas. Karim Aïnouz, que em 2024 esteve na competição pela Palma de Ouro com '"Motel Destino"', também filmado no Ceará, enfatizou sua função como um facilitador no processo. "Eu não sou padrinho de nada, eu tô aqui facilitando esse processo da Factoria", afirmou, preferindo o termo "produtor sênior" ou "mentor". Ele destacou que o projeto é um "desdobramento desse processo de formação" que já ocorre no Porto Iracema das Artes em Fortaleza/CE, onde atua como tutor de jovens roteiristas há 12 anos. "O grande critério de seleção é quem tem um longa em desenvolvimento", explicou Aïnouz, ressaltando que além da exibição dos curtas, "a grande parte do processo mesmo é você poder proporcionar um fórum de potencial financiamento de filmes de longa-metragem que sejam com parcerias de fora do Brasil".

Desafios e aprendizados da codireção intercultural

A experiência de codirigir com um cineasta de outra cultura foi um tema central para os participantes. Wara, diretora de "A fera do mangue", descreveu a codireção como "um grande desafio" e "uma loucura", já que as duplas não se conheciam previamente. "Quando a gente se propõe a co-dirigir (…) a gente está criando algo novo, está criando um olhar diferente", disse, mencionando que as conversas iniciais online com Sivan Noam Shimon foram "um pouco mais lentas" devido à barreira do idioma, mas sempre com "uma boa energia de tentar encontrar pontos em comum". Para ela, o aprendizado foi "largar a mão de algumas ideias (…) e aceitar isso".

Luciana Vieira, que codirigiu "Ponto cego" com o cubano Marcel Beltrán, apontou que "escrever e dirigir junto é um desafio gigantesco mesmo entre grandes amigos, imagine entre duas pessoas de culturas totalmente distintas". O surpreendente para ela foi "poder perceber que mesmo vindo de lugares tão distintos, alguns temas e problemas ainda são bem parecidos", como a abordagem da experiência feminina em ambientes predominantemente masculinos, tema central de seu curta.

Stella Carneiro, que trabalhou com o português Ary Zara em "A vaqueira, a dançarina e o porco", reconheceu que "juntar duas pessoas muito diferentes como cabeças de projeto vem com muitos desafios". Ela aprendeu com a experiência de Zara em teatro e direção de atores, e acredita que o resultado final seria "muito diferente" se tivessem feito o filme sozinhos. Ary Zara complementou que a dinâmica foi de equilíbrio: "A Stella trouxe uma estrutura que limita minha criatividade, que às vezes precisa de uma tampa. E eu desafio a Stella a tirar um pouco a tampa dela. Dessa forma, a gente foi se enriquecendo".

Sharon Hakim, parceira de Bernardo Ale Abinader em '"Como ler o vento"', relatou o uso intensivo de mensagens de voz para superar a diferença de fuso horário, descobrindo "semelhanças nas sensibilidades e temas" com seu colega de Manaus. Sivan Noam Shimon, codiretora de '"A fera do mangue"', mencionou a dificuldade inicial em compreender a locação do mangue, algo que só se tornou claro ao vivenciar o local. "Eu tentei não saber o que não conhecia e ouvir", afirmou. Marcel Beltrán, por sua vez, viu o convite para trabalhar em um lugar e com pessoas desconhecidas como "maravilhoso para o momento de agora, em que todo o mundo quer estar no lugar do conhecido".

Karim Aïnouz classificou a dinâmica como uma "maluquice maravilhosa" que "desloca um pouco dessa ideia do autor (…) e levanta a bola para a coisa da colaboração". Para ele, o processo "te coloca num lugar que acho que a coisa mais importante de um filme é comunicar (…) você aprende que você não tem que falar na tua língua, você tem que falar em todas as línguas".

Representando o Ceará e o Norte/Nordeste em Cannes

Levar suas regiões para um palco de prestígio como Cannes é motivo de orgulho para os cineastas. Luciana Vieira expressou: "É um sentimento de muito orgulho. Representar o estado, com curtas filmados na nossa paisagem (…) nos apresenta como um lugar potente criativamente". Ela acredita que a experiência pode "reforçar, mais uma vez, nossa capacidade de criação e produção, aumentando a credibilidade dos cearenses no mercado audiovisual".

Wara espera que a visibilidade "possa ajudar um pouco (…) possa ver esse lado do que a gente precisa no Ceará para que essas histórias possam ser contadas". Stella Carneiro sentiu "o peso dessa responsabilidade desde o início" e vê a oportunidade como uma forma de "lembrar ao mundo a riqueza da nossa história", mas também aponta para a "disparidade de gênero e de raça" no cinema, ressaltando a importância de ter feito um curta com protagonista negra. Bernardo Ale Abinader, do Amazonas, falou sobre o isolamento geográfico: "Sendo do Amazonas, me sinto muito isolado até mesmo no Brasil (…) É uma forma de jogar luz em uma região sub-representada dentro do próprio país".

A identidade local e regional transbordando para as telas

Os filmes buscam refletir as particularidades de suas locações e culturas. Em '"Ponto cego"', Luciana Vieira quis "ressaltar um certo aspecto industrial" de Fortaleza, filmando no porto de navios. "Meu objetivo, em particular, era retratar uma Fortaleza que fugisse do estereótipo", explicou. Wara, em '"A fera do mangue"', utilizou o cenário do mangue, que considera "super incrível, um cenário impressionante que raramente eu vejo em alguns filmes". Ela acredita que os quatro curtas "trazem muito do Ceará (…) espaços muito ricos" e representam a diversidade de cenários do estado. Stella Carneiro e Ary Zara buscaram "modernizar um gênero antigo, o faroeste, trazendo protagonismo para personagens que não ocupam esse espaço" em '"A vaqueira, a dançarina e o porco"'.

Políticas públicas e o fomento ao audiovisual

A importância do investimento estatal no setor foi um ponto comum. A secretária da Cultura do Ceará, Luisa Cela, afirmou que a participação em Cannes "é um indicativo de que os investimentos públicos em experiências de formação são estratégicos para a consolidação de nosso mercado audiovisual". Karim Aïnouz corroborou, dizendo que o projeto "vem a reboque de um esforço político em formação no audiovisual". Luciana Vieira observou que o estado tem atuado na formação de novos realizadores e que uma "política com certa continuidade na oferta de editais tem nos permitido realizar esses projetos". Wara, no entanto, salientou a carência de "investimento e equipamentos" no Ceará.

Tiago Santana, diretor-presidente do Instituto Mirante de Cultura e Arte, parceiro do projeto, acentuou a importância de "investimentos públicos em processos que abrem novas perspectivas de cooperação e novos fluxos para os negócios audiovisuais".

Expectativas para Cannes e os próximos passos

Além da exibição dos curtas, os cineastas participarão do Marché du Film, apresentando seus projetos de longa-metragem. Wara confessou ter "expectativas bem altas do que pode acontecer, mas também com os pés no chão". Luciana Vieira espera "causar uma boa impressão com o curta-metragem, provocar conversas sobre o filme e conseguir fazer conexões nacionais e internacionais". Stella Carneiro e o produtor Rafhael Barbosa terão reuniões buscando coproduções para seu longa '"Filhas do mangue"', que pretendem rodar em Alagoas em 2027.

Karim Aïnouz destacou a relevância desta etapa: "É maravilhoso um jovem realizador ou realizadora estar em um lugar central do mercado audiovisual, como Cannes, para poder confrontar, trocar e apresentar um projeto de longa-metragem". Ele aconselha os jovens cineastas a serem "teimosos", "obsessivos" e a terem "paciência", mas acima de tudo, a se divertirem no processo.

A iniciativa Directors' Factory Ceará Brasil, que também integra a programação oficial do Ano Cultural Brasil-França 2025, é uma coprodução entre a Cinema Inflamável (Brasil), de Janaina Bernardes, e a DW (França), de Dominique Welinski, fundadora do programa. Welinski celebrou o retorno à América Latina, elogiando o "apoio apaixonado das instituições locais" e a "energia e criatividade espetaculares da nova geração dessa área específica do Brasil". Janaina Bernardes ressaltou a oportunidade de "criação e desenvolvimento coletivos que dá muito sentido à nossa profissão e que participa na sustentabilidade do nosso mercado".

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