Neste exato momento, o pré-júri do 16º Festival comKids, formado por um grupo internacional de profissionais, trabalha na seleção dos finalistas do festival. A partir deste trabalho, iniciamos esta reflexão que vale a pena ser compartilhada para que nos ajude a entender o cenário atual da produção audiovisual para crianças e adolescentes no Brasil e na América Latina. Há o que celebrar, mas nem tudo são flores em um mercado de grandes instabilidades: se não não tivermos posicionamento e propósito para o longo prazo, corremos o risco de ficar à mercê das produções internacionais, vindas dos grandes donos do mercado internacional, influenciando e moldando o olhar do público infantil em formação, tão caro para o futuro do audiovisual regional.
A grande afluência de produções que chegam ao Festival comkids mostra como os criadores estão ávidos por essa janela de visibilidade e por criar para os públicos infantil e juvenil. Pela primeira vez, ultrapassamos o número surpreendente de 440 inscritos. Nos anos anteriores não chegamos aos 300 inscritos por edição. Vale destacar que as produções e coproduções envolveram 20 países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, França, Bolívia, Costa Rica, México, Cabo Verde, Cuba, Equador, Estados Unidos, Itália, Reino Unido, Bulgária, Portugal, Venezuela, Peru e Uruguai) e foram realizadas nos últimos 30 meses, portanto fazem parte da amostra recente do mercado. Pelo regulamento, recebemos produções que foram distribuídas e vistas em telas, seja nos canais de TV, seja pelas vias digitais, incluindo plataformas de streaming e web.
Quando começamos a analisar e a organizar os conteúdos inscritos, percebemos que a alta no número das inscrições revela um cenário de mudança nesse ambiente de criação de conteúdo infantojuvenil e, talvez, até no mercado local. Os festivais que acontecem regularmente costumam ter essa lupa ampliada, conseguimos olhar para o todo, ano a ano, e oferecemos ao público que nos visita, produtores ou crianças, esse olhar mais fresco, mais inventivo e que anuncia tendências e debates.
Em primeiro lugar, e como um dado positivo, vemos um interesse enorme de produtores e criadores querendo se dedicar e produzir para a audiência infantojuvenil. Seria ótimo ver essa especialidade em curva crescente ao longo do tempo de forma sustentável. A retomada de mecanismos de estímulo à arte e à cultura no Brasil, como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc, e poucos editais incentivados, abriram uma chance a criadores de uma nova geração, que querem trabalhar para crianças e não encontram acolhimento em canais estruturados e em muitos editais direcionados para outros caminhos. Infelizmente, são poucas as oportunidades orientadas para a produção infantojuvenil, mas os projetos chegam à casa de centenas: animação, live action, não-ficção, longas, séries, curtas, há para todos os gostos, gêneros e necessidades. As ideias estão aquecidas e são de montão.
Com as novas ideias chegam junto muitas histórias, paisagens, culturas e costumes de outras regiões do país que não costumam ser retratadas no audiovisual infantojuvenil. Essa variedade de cores, formas e temas, que vimos nessa seleção, é excelente para as infâncias em desenvolvimento e para aqueles mediadores que se relacionam com crianças e adolescentes através da linguagem audiovisual e da educação para a mídia. Há um movimento intenso nesta área acontecendo no Brasil e na Ibero América. O mundo fala e se comunica através das imagens e vídeos, essa é a linguagem contemporânea das narrativas que tentam explicar e compreender tudo que se passa ao nosso redor. A alfabetização audiovisual já entrou nas escolas e esse material que chega dos festivais pode ser muito estimulante dentro das salas de aula e dos cineclubes.
Entretanto, percebemos nessa listagem de 441 títulos uma ausência cada vez maior de investimento na produção original dos canais, incluindo TV aberta, TV por assinatura, streaming ou TVs públicas e privadas dedicadas ao infantil de forma massiva. Falta continuidade no que se refere ao campo da Comunicação Pública. Tanto nos canais quanto nas políticas específicas para o setor, tudo é muito lento. No privado, as questões comerciais e econômicas são as que ditam os investimentos. Antes, Brasil, Colômbia, Argentina e até o Chile, que fez belas e boas apostas no infantil, participavam do Festival com um volume e um vigor maior. Houve também uma queda generalizada na produção de séries, uma prática mais ou menos assimilada pelas grades de TV. Hoje há muito mais conteúdos unitários, em projetos de menos fôlego de produção e menos investimento de médio e longo prazo.
Diante desse cenário, há de se celebrar a chegada de novos produtores no ambiente de produção infantojuvenil, mas é importante também reforçar a necessidade de muito investimento em desenvolvimento, formação e atualização profissional. É preciso preparar e capacitar realizadores que querem falar e produzir com e para crianças e adolescentes, para que estejam antenados para as especificidades da comunicação com este público. Na seleção dos filmes do Festival, percebemos às vezes uma falta de maturidade, a necessidade de melhoria das técnicas, seja de roteiro, seja de outros aspectos da realização. Como falar com a criança, o que falar com a criança, como encantar e engajar as crianças? Há uma enorme responsabilidade por trás das histórias e cada decisão do diretor tem uma consequência. Isso podemos constatar pelos relatos que hoje envolvem as crianças e o excesso de telas que são muitos e preocupantes.
Temos abrigado anualmente, no Midiativa e no comKids, um espaço de formação para realizadores e profissionais ligados às infâncias, trazendo um panorama atual do que está sendo produzido na região da Ibero América para crianças e adolescentes, promovendo debates de temas importantes sobre formatos, linguagens e conteúdos. Uma semana de Festival equivale a um curso. Essa é também uma função dos Festivais. A exibição de cada conteúdo envolve debates sobre modo de fazer, faixa etária e decisões de produção. A área infantojuvenil é carente de formação, mereceria muito mais atenção da academia e de preparação para o mercado. Por isso, as masterclass com especialistas do setor, oficinas e apresentações nos festivais são necessárias.
Enfim, vale destacar também, e de forma positiva, que sentimos nessa listagem de títulos uma grande presença de temas sobre criança e natureza, com produtores e canais antenados no desafio da crise climática e na necessidade de falar sobre esses temas. Além de meio ambiente, temas como bullying, emoções e seu controle, inclusão, racismo, autoestima, identidade e autismo se fazem presentes de forma muito espontânea e poética em algumas das produções inscritas. Mas como fazê-las chegar ao grande público ?
Por tudo isso, precisamos de mais incentivo e investimento. Por isso, precisamos dos festivais, e mais editais que convoquem diretamente os produtores infantis. Também precisamos de espaços de formação e fruição para garantir uma audiência mais preparada, que sabe escolher, que percebe a diferença ao ser impactada por uma obra sensível, rica e que promove um aprendizado, que acrescenta e que a faz descobrir o novo. Investir na indústria criativa dedicada ao público infantojuvenil mostra compromisso com a responsabilidade social e a comunicação com as crianças do nosso tempo.
* Beth Carmona, consultora, produtora executiva, diretora do Festival comKids com atuações na direção da TV Cultura de SP, Discovery America Latina e TVERJ, Roquette Pinto.