Carta Aberta ao Conselho Superior de Cinema e ao Comitê Gestor do FSA em defesa do Prodav

Imagem de Evren Ozdemir por Pixabay.

Prezados senhores,

Ecoam nas mais diferentes esferas uma discussão travada no Conselho Superior de Cinema (CSC) e no Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA), sobre a destinação dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) – próximo a R$ 1 bilhão por ano -, entre produtores e distribuidores de obras elaboradas para lançamento em salas de cinema, atendidos pelo Prodecine e os setores ligados à produção e exibição de obras audiovisuais com destinação à primeira exibição TV e/ou VOD, atendidos pelo Prodav.

Alguns representantes do setor beneficiado pelo Prodecine alegam nas reuniões do CGFSA que os investimentos para produção de obras para estreia em televisão não retornam financeiramente ao FSA e defendem uma maior redução da dotação orçamentária do Prodav em favor do Prodecine.

Notamos que algumas informações circulando parecem sofismas, intencionais ou não, que ofuscam a visão da realidade e, por isso, trazemos alguns dados concretos para iluminar a discussão. Vejamos:

  • Segundo o observatório do audiovisual da Ancine, o OCA, em 2023, um ano considerado ruim, o total de ingressos vendidos para filmes brasileiros foi de 3,71 milhões de ingressos. Em 2024, que está sendo considerado bem melhor, nos primeiros seis meses foram vendidos 7,07 milhões de ingressos – talvez possamos estimar 15 milhões de ingressos até o final do ano;
  • Já no setor de exibição de televisão, o número mais exato e inequívoco da audiência aos diferentes canais de TV pode ser registrado através das caixinhas receptoras instaladas nos lares clientes de operadoras de TV por assinatura.

Um número de audiência inédito

A Claro – a maior operadora de TV por assinatura do Brasil, presente, com este serviço, em mais de cinco milhões de lares -, informou a quantidade de minutos totais assistidos mensalmente, por seus clientes de TV, a um punhado reduzido de canais de programação de característica cultural – TV Cultura, Canal Brasil, Canal Curta!, Arte1, Canal Futura, Prime Box e TV Ratimbum –, canais estes que regularmente acessam os recursos do Prodav.  

Estes canais somam uma audiência média mensal (amostra de 10 meses, entre agosto 2022 e maio de 2023) de 345.392.007 minutos por mês, apenas na operadora Claro – que atende perto da metade do mercado atual de TV por assinatura. 

Para um efeito comparativo, se dividirmos a audiência total mensal deste punhado de canais culturais de TV em blocos de 90 minutos – tempo médio de uma sessão cinema –, teremos uma audiência equivalente a 3.837.689 espectadores (ou ingressos) de cinema por mês. Projetando-se para os 12 meses de um ano, o número equivalente eleva-se a mais de 46 milhões de espectadores (ou ingressos) de cinema por ano, mais que o triplo da venda de ingressos para filmes brasileiros projetada para 2024, um ano que vem sendo considerado bom.

Revisão do modo de pensar

Estes números, simples, demonstram comparativamente a extrema relevância da produção e da difusão audiovisual via Prodav e sugerem a reflexão por uma correção radical no rumo e nas tendências hoje em prática na condução das políticas públicas para o desenvolvimento da indústria do audiovisual no Brasil.

A tendência de pensamento e as influências "cinemacentristas" já levaram a uma distribuição bastante desequilibrada dos recursos do FSA em 2023 e 2024, fato que precisa ser urgentemente repensado diante das evidências trazidas pelos dados de audiência de canais culturais na TV:  no período até hoje foram lançados nove editais com recursos exclusivamente para o Prodecine, somando perto de R$ 900 milhões, e somente um edital de produção para TV, com R$ 90 milhões.

Há ainda R$ 400 milhões previstos para o Prodav no Plano Anual de Investimentos de 2023 do CGFSA, contingenciados pela Ancine e cobiçados por grandes agentes tomadores de recursos do FSA via Prodecine.

A realidade cinema x TV na ponta da produção

Ainda segundo o OCA, em 2023, na televisão, foram lançados 634 conteúdos brasileiros distintos, dos quais 153 eram documentários. Enquanto isso, 161 títulos brasileiros foram lançados nos cinemas, sendo que somente 27 alcançaram mais de 10 mil espectadores. Mais da metade, 89 filmes, obtiveram receita inferior a R$ 15 mil, o valor mínimo de pré-licença exigido dos canais de TV tomadores do Prodav (filmes para cinema não têm qualquer receita assegurada). Dos filmes lançados, 57 eram documentários e apenas 17 deles conseguiram atrair mais de mil espectadores.

As discrepâncias geradas pela adubação excessiva da cultura "cinemacentrista" e de alijamento do potencial da TV (desde sempre o principal veículo de comunicação neste país) tem ainda outros indicativo revelador, que precisa ser repensado, por exemplo:

a. A Ancine não pontua diretores por obras realizadas para estreia em televisão ou streaming, apenas para estreias em cinemas. Parece estranho, não?
b. Por outro lado, nos editais de produção para TV, a experiência dos diretores escalados para um projeto não contribui para pontuar (qualificar) o projeto, ao contrário dos editais de produção para cinema. Parece estranho, não?

Mais importante que as desconsiderações acima, a realidade revelada da enorme audiência relativa aos canais de TV culturais e aos conteúdos produzidos com apoio do Prodav difundidos por eles sugerem a urgente revisão de dois aspectos vigentes atualmente na avaliação de projetos e de agentes nos editais do FSA:

  1. os retornos ao FSA devem ser calculados pelo número de cidadãos beneficiados, retornos efetivamente sociais da difusão cultural, e não somente em termos financeiros (há sempre poucos filmes que retornam muito financeiramente e muitos que retornam pouco); e
  2. coerentemente, é preciso revisar as notas atribuídas aos canais culturais para facilitar seu acesso ao financiamento de obras selecionadas por suas curadorias, as quais tendem a impactar muitos cidadãos.

Além das questões aqui colocadas, uma outra situação merece consideração urgente pelos membros do CSC e do CGFSA. Os canais culturais da TV por assinatura, sobretudo os chamados canais "super brasileiros" – que se obrigam a exibir pelo menos 12 horas por dia de conteúdos nacionais de produção independente (e são, portanto, os principais tomadores e exibidores das obras financiadas pelo Prodav) – vivenciam uma grave crise de sustentabilidade por redução da base de assinantes da TV por assinatura tradicional em um período de transição para o ambiente do streaming

Esta situação – detalhada em carta dos canais super brasileiros apresentada na última reunião do CGFSA, com cópia à ministra da Cultura, sua secretária do Audiovisual e aos membros do CSC – precisa ser socorrida, já que os canais super brasileiros são os principais exibidores não apenas de obras inéditas financiadas pelo Prodav, mas também são importantes janelas secundárias de exibição das obras financiadas pelo Prodecine.

Debates de ideias

Estes e outros assuntos relacionados às políticas para o desenvolvimento da indústria nacional do audiovisual serão tratados em três painéis que se realizarão no próximo dois de agosto, no âmbito do II Festival Curta Documentários http://FestivalCurtaDocs.org.br , no complexo de cinemas Estação Net Rio em Botafogo, no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela Internet. Estejam todos os interessados em acompanhar desde já convidados e benvindos.

Painéis de troca de ideias do II Festival Curta Documentários:

  • Sexta 2 Ago – 10h – Os resultados positivos da Lei do SeAC e o asseguramento de sua continuidade no ambiente regulado do streaming através das programadoras de VOD culturais brasileiras e super brasileiras;
  • Sexta 2 Ago – 14h – A importância e o impacto social dos Cabeq super Brasileiros e dos canais culturais de TV (TV Cultura, Futura, Arte1, etc) na curadoria e ampla difusão do conteúdo produzido com financiamento pelo FSA; e
  • Sexta 2 Ago – 16h – A necessária reinclusão da produção para TVs nos editais de Coprodução Internacional do FSA.

*Julio Worcman é diretor do canal Curta! e das marcas de streaming CurtaION, PortaCurtas e BrasilianaTV
**Vanessa de Araújo Souza é diretora da Lascene Produções e professora da pós graduação em produção audiovisual da FACHA/RJ

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