A Spcine e a "refundação" da política audiovisual

(Imagem: Divulgação)

No texto Refundação da Spcine, publicado em 24 de janeiro de 2025, os autores Ricardo Rihan e André Gatti sugerem refundar a Empresa Municipal de Cinema e Audiovisual de São Paulo, a Spcine, que acaba de completar 10 anos. A partir de críticas às sucessivas gestões que por lá passaram – uma das quais integrada inclusive por um dos autores citados –, avaliam que a Spcine "nunca esteve à altura da grandeza de São Paulo". Para além de uma opinião subjetiva, a ocasião deste primeiro decênio da empresa talvez mereça uma avaliação melhor fundamentada, com vistas a apoiar proposições responsáveis quanto ao futuro da política audiovisual na cidade.

* Ana Louback é gestora e pesquisadora de políticas culturais, foi Gerente de Políticas Operacionais da Spcine e coordenou a implantação do Circuito Spcine de Cinema. (Foto: Divulgação)

Embora o artigo apoie sua argumentação em um suposto fracasso da empresa no cumprimento dos objetivos inicialmente propostos, ações estruturantes implementadas ainda em sua primeira gestão demonstram que a Spcine obteve resultados não só expressivos, como duradouros. Este é o caso da São Paulo Film Commission, que, desde 2016, já atendeu e viabilizou filmagens de 7.604 produções, nacionais e internacionais, e do Circuito Spcine, que, mediante ampla aceitação na cidade, foi recentemente ampliado de 20 para 32 salas e acumula mais de 2,2 milhões de espectadores.

Portanto, já em sua criação, a Spcine foi ela mesma uma refundação de alguns conceitos e formas de pensar a política audiovisual, que deu lugar à construção de uma política sistêmica como estratégia central para o fortalecimento do setor. Neste momento em que completa 10 anos, é preciso sim atentar para novos e antigos desafios do cinema nacional, contudo sem perder de vista tal perspectiva.

Embora passível de críticas e ajustes, é preciso reconhecer que a criação e a trajetória da Spcine são hoje uma referência para a política audiovisual no país, que tem inspirado tanto a criação de experiências similares, como a recém-criada Bahia Filmes, quanto a implementação de film commissions em outras cidades, que têm utilizado o decreto da Spcine como seu ponto de partida. Importa também mencionar que, mesmo criadas numa gestão do PT, tanto a Spcine quanto as políticas do Circuito Spcine e da SP Film Commission, foram mantidas – e inclusive ampliadas – por gestões do PSDB e do PMDB, o que denota a consolidação do papel da empresa na cidade.

A afirmação pelos autores de que a SP Film Commission possui finalidades distintas daquelas atribuídas à Spcine e que consumiria recursos que poderiam ser direcionados para o fomento, não só parte de uma suposição não fundamentada quanto à possibilidade de mobilização de uma nova fonte orçamentária para financiamento de uma estrutura autônoma, como ignora o papel da política de incentivo às filmagens como ação estruturante da política audiovisual. É inegável que a cidade de São Paulo está hoje mais presente no cinema e no audiovisual do Brasil, por meio de séries como "Manhãs de Setembro" ou filmes como "Baby", que fazem uso de locações na cidade antes difíceis de acessar. Desenvolver e potencializar o audiovisual paulistano passa tanto por movimentar a economia do setor, com a contratação de equipes locais, quanto por ampliar a presença da cidade como polo audiovisual no cenário internacional.

Para além de facilitar as filmagens na cidade, em 2021, a Spcine mostrou-se pioneira no país ao lançar o programa Cash Rebate, que fez de São Paulo um destino ainda mais atrativo para filmagens. O sucesso da iniciativa levou à ampliação dos recursos em sua segunda edição, em 2022, que contou com R$40 milhões investidos, em parceria com o Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas. 

Já no que toca ao Circuito Spcine e à alegação de alto custo da infraestrutura instalada, uma contextualização faz-se necessária. Antes de mais, é preciso enfatizar que o programa atende a territórios alheios às redes comerciais, que, apesar de desinteressantes a investimentos privados dados os perfis socioeconômicos de seus moradores, abrigam públicos potenciais então negligenciados. Em 2014, quando da criação da Spcine, 30% da população das classes D e E da cidade nunca tinha ido ao cinema, segundo pesquisa elaborada pela JLeiva. A Spcine não poderia nascer ignorando tal realidade.

Frente a um histórico de acentuada centralização do investimento em cultura na cidade de São Paulo, o Circuito Spcine propôs-se a rever a desigualdade na distribuição do recurso público, com vistas não só à democratização do investimento, como também à ampliação do acesso ao cinema e do público cinéfilo. Em julho de 2018, um ano e meio após a completa instalação da rede, o projeto registrou 1 milhão de espectadores e uma taxa de ocupação média de 16,7%, o que representava um público médio de 50 espectadores por sessão, dado o porte elevado de parte significativa das salas.

Portanto, é preciso reconhecer o Circuito Spcine como uma política de acesso e formação de público para o cinema nacional, estratégia essencial especialmente num momento em que nos deparamos com uma farta oferta de filmes nacionais – cerca de duas centenas de títulos no último ano –, muitos dos quais enfrentam dificuldade para acessar o mercado exibidor. Em uma perspectiva mais ampliada, ao levar o cinema a cidadãos alheios às redes culturais, o Circuito Spcine afirmou a importância da política audiovisual para o restante da cidade, enfatizando o acesso ao cinema como um direito a ser garantido a todos os munícipes.

Em relação à programação, objeto de críticas que defendem a proteção do cinema autoral pela política pública, cabe destacar que o perfil curatorial do Circuito Spcine é territorial e leva em conta públicos que, muitas vezes, nunca estiveram em uma sala de cinema. Por isso, enquanto salas situadas nos bairros centrais, onde há uma maior diversidade de oferta, priorizam conteúdos de perfil independente, salas localizadas em territórios periféricos contam com uma programação mais diversa, que mescla conteúdos com distintos perfis e voltados a distintas faixas etárias, com vistas a conectar-se com a multiplicidade de públicos que as circundam. Nesse sentido, a exibição de títulos com maior potencial comercial visa constituir um chamariz para a apresentação de outros perfis de conteúdo. Não seria razoável, no momento em que se permite um primeiro acesso à experiencia do cinema, excluir filmes que são grandes lançamentos, restringindo seu acesso ao público frequentador dos cinemas dos shoppings.

Tal opção curatorial não exclui, no entanto, a priorização dada ao cinema nacional, em suas diversas vertentes. Ao final de sua primeira gestão, o Circuito Spcine contava com um market share de 40% de filmes nacionais, enquanto o market share médio aferido no país naquele momento era de 16,5%, segundo a Ancine. Vale dizer ainda que, para além de uma programação regular diversa, o Circuito Spcine abriga um número significativo de sessões e ações de formação em parceria com as mais variadas mostras e festivais que acontecem na capital. Tais ações são articuladas enquanto contrapartidas aos investimentos da Spcine a esses eventos. Nesses 10 anos de atuação, foram mais de R$ 44,3 milhões investidos pela empresa em 360 eventos, mostras e festivais audiovisuais.

Embora as ações mencionadas representem sim políticas estruturais implementadas pela Spcine desde sua criação, é falsa a afirmação de que representem uma "excessiva alocação de recursos orçamentários nas atividades-meio e uma grave falta de eficiência administrativa na execução dos editais de fomento". Em termos absolutos, o investimento na primeira fase de implantação do Circuito Spcine, que foi de R$ 7,5 milhões (em número atuais, o valor de uma produção de um longa-metragem de médio porte), correspondeu a cerca de 20% dos R$ 36 milhões investidos ao longo dos dois primeiros anos de gestão, no desenvolvimento, produção e distribuição de mais de 100 obras audiovisuais. O custeio da rede, por sua vez, é viabilizado, em parte, pela Secretaria Municipal de Educação, a partir de uma prestação de serviços da Spcine, enquanto empresa, para execução da política. Em 2016, os custos de operação do Circuito Spcine, se divididos pelo número de assentos disponibilizados, representavam um valor de R$ 2,00 por ingresso.

No que toca à atração de recursos, vale apontar que, nesses 10 anos de atuação, a Spcine investiu R$ 106 milhões no apoio a 718 projetos audiovisuais, tendo somado a recursos próprios, recursos oriundos de parcerias com outros entes governativos. Segundo a gestão atual, em 2024, a Spcine executou 100% dos recursos dos editais da Lei Paulo Gustavo direcionados ao audiovisual paulistano, dentre os quais estavam linhas de apoio à produção, à capacitação, à pesquisa, a eventos, dentre outras.

Embora o artigo aqui referido questione a qualidade dos conteúdos investidos, por conseguirem "destaque apenas em festivais internacionais e nacionais, mas praticamente não apresentam repercussão nas bilheteiras" ou por não serem executados por "produtoras que se demonstram vencedoras no mercado", vale dizer que a repercussão internacional de conteúdos como os citados "Baby" e "Hotel Destino" não só amplia o investimento no cinema nacional, a partir do aumento de interesse em coproduções e do acesso dos conteúdos brasileiros a mercados internacionais, como também impacta na presença do Brasil, e do cinema paulistano, no mundo – a ver pela movimentação internacional gerada a partir do sucesso de "Ainda Estou Aqui".

Por fim, vale uma última nota acerca da afirmação de que a atuação da Spcine nesse primeiro decênio teria "se mostrado como uma vanguarda do atraso, ao excluir a maioria e priorizar a inclusão da minoria". Primeiro, caberia compreender de que minorias estariam os autores a falar. Em uma política ampla e democrática, o critério social deve conviver em equilíbrio com critérios culturais, artísticos e econômicos. Esse é um debate importante, que não deve ser feito com simplificações de lado a lado. Políticas afirmativas precisam ter seu espaço, assim como políticas de desenvolvimento econômico e criativo, tal qual previsto na criação da empresa.

Frente aos resultados dos 10 primeiros anos de atuação da Spcine, vemos, portanto, que, sim, ajustes podem ser efetuados e muito mais pode ser feito, mas também que pilares importantes foram consolidados. Ao longo de distintas gestões, uma política de governo gradualmente tem se convertido em uma política de Estado, com a estabilidade dos programas de fomento, a ampliação da presença da SP Film Commission, a ampliação do Circuito Spcine para outras regiões da cidade, dentre outras ações continuadas. Uma possível parceria com o governo estadual seria sim muito bem-vinda, como sempre foi, desde o projeto de criação da empresa, não tendo infelizmente se viabilizado pelos infortúnios da disputa política. Para concluir, fica a pergunta: refundar a Spcine para quê? Em alternativa à demolição das paredes erguidas, fica o convite ao fortalecimento de uma construção coletiva e perene, em prol do nosso audiovisual.

Fontes utilizadas:

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