Modelo de fomento francês tem idéias para reduzir o passivo de análise de contas de projetos perante o TCU

Desde o fim de março, o setor audiovisual aguarda, paralisado, o próximo episódio do imbróglio envolvendo o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Ancine.

Com base em uma auditoria de 2017, o tribunal questionou o sistema de análise de contas de projetos finalizados por amostragem e mandou a agência suspender todos os repasses de verbas do Fundo Setorial do Audiovisual para projetos audiovisuais até que disponha de meios para analisar a prestação de contas de cada projeto.

Na busca por um desfecho menos negativo para esse enredo, vale a pena refletir sobre o modelo de fomento ao audiovisual da França – que em boa parte inspira o sistema em vigente no Brasil. O sistema francês pode oferecer boas idéias ao TCU e à Ancine para desafogar o passivo de prestação de contas de filmes, telefilmes e séries finalizados e, assim, ensejar a retomada da produção.

Na França, como aqui, vigora o entendimento de que quando um canal de televisão pré-licencia os direitos de exibição de um projeto audiovisual, pagando parte de seu orçamento e comprometendo-se com a sua exibição, significa que este audiovisual tornou-se meritório de investimento de recursos públicos pois os mesmos retornarão ao público, aos cidadãos na forma de bem cultural.

Na França, como aqui, a análise prévia dos orçamentos a serem financiados com recursos públicos é a etapa mais importante para prevenir que um filme venha a gastar mais do que deveria.

A segunda etapa, após o filme ser finalizado, serve para determinar se eventualmente foi gasto menos do que o esperado e se possivelmente houve algum desvio. Essa é, aparentemente, a principal preocupação do TCU.

Uma diferença entre a França e aqui é que lá considera-se mais eficiente do que conferir contas, uma a uma, indicadores qualitativos da obra pronta, ou seja, a avaliação se ela reflete o valor projetado ou se deixou a desejar em relação ao financiamento recebido.

Os entes governamentais franceses entendem que os canais de TV e/ou distribuidores audiovisuais, quando pré-licenciados para realizar a primeira exibição ou exploração comercial de um projeto financiado com recursos públicos, tornam-se os melhores "delegados" do erário no controle da qualidade dessas produções.

Isso se explica por esses canais ou distribuidores pré-licenciados terem se comprometido a pagar um percentual do orçamento pré-licenciado quando as produções são concluídas e, sobretudo, pela obrigação de as exibirem em suas grades de programação, que não podem ser maculadas por conteúdos de má qualidade ou aquém da expectativa técnico-artística contratada.

É padrão nos contratos de pré-licença dos canais de TV franceses a exigência da apresentação do último corte antes da mixagem dos áudios, de forma que eventuais sugestões de melhorias pelas equipes dos canais possam ser incorporadas, otimizando da melhor forma o investimento público realizado.

Assim, na França, o aceite técnico-artístico pelo agente pré-licenciado (canal de TV ou distribuidor cinematográfico) assegura ao Estado que o investimento retornará efetivamente ao público, na forma de bem cultural.

A utilização deste crivo parece que ainda não foi cogitada pela Ancine ou pelo TCU para determinar quais projetos podem ser dispensados de análise esmiuçada e quais devem sua prestação de contas examinada em pormenores.

Os contratos de pré-licença do canal Curta!, por exemplo, têm previsões de pré-aprovação de conteúdos semelhantes às do Canal + francês. Além disso, a diretora de programação do Curta!, Bibiana de Sá, instituiu que as produções contratadas não podem dispender mais de 30% dos orçamentos sem apresentar ao canal um "teste de formato". No caso de uma série, a produtora deve entregar pelo menos uma versão inicial de um episódio completo. Se a produção for um filme documental, deve apresentar 10 minutos que contenham todos os elementos previstos: narração, entrevistas, imagens de arquivo, grafismos, etc.

Os produtores, em geral, se desdobram para atender às recomendações de melhorias elaboradas pela equipe de curadoria do canal. Por regra, os produtores manifestam estarem mais satisfeitos com os resultados alcançados nos seus produtos finais e que terão maiores chances de comercialização após a estreia no Curta!.

Efetivamente, os canais de TV pré-licenciantes possuem larga experiência na análise crítica dos projetos que contrata, no acompanhamento de sua produção e no aceite técnico-artístico dos produtos finais – tendendo a assegurar a boa qualidade das obras.

Somente o canal Curta! já teve quase 200 contratos de pré-licença aprovados para financiamento pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), sendo 117 longas documentais e quase 700 episódios de séries, um terço dos quais já com suas entregas aprimoradas e aceitas para exibição.

É natural que os crivos durante as etapas de produção, somado ao aceite técnico-artístico do produto final pelo primeiro licenciado, sejam vistos pelas autoridades como importante baliza para eximir um bom número de projetos da análise pormenorizada de seus gastos pela Ancine, desafogando ao menos uma parte do passivo da agência perante o TCU.

Há ainda outros aspectos tangíveis, considerados pelos reguladores franceses, que podem corroborar na determinação, pela Ancine e TCU, dos projetos que devem ter suas prestações de contas esmiuçadas ou não. Eles se baseiam na premissa de que quanto melhor um conteúdo audiovisual, mais ele será exibido e mais pessoas beneficiará.

A Ancine possui sistemas automatizados que permitem monitorar com precisão o alcance de público de um filme em salas de cinema. No campo da programação dos canais da TV paga, consegue extrair relatórios dos dias e horários de exibição de cada filme ou episódio de série. Assim, a agência reguladora pode verificar, ao longo de um período determinado, a quantidade de pessoas beneficiadas, ou a devolução ao público, na forma de bem cultural, de cada investimento realizado pelo FSA.

Este parâmetro quantitativo, de pessoas beneficiadas por um produto audiovisual – nos cinemas, nas audiências de televisão e no consumo nas plataformas de VOD -, amortizando o investimento de recursos púbicos, é na verdade mais importante do que a métrica do retorno financeiro que a comercialização de um filme pode ou não gerar, para o Fundo Setorial do Audiovisual.

Por este motivo, a quantidade de exibições de um filme ou série, ao longo de um período, pode traduzir o seu retorno ao público como bem cultural e ajudar a determinar a oportunidade ou não de se gastar energia do funcionalismo em esmiuçar suas contas.

O Canal Curta!, segundo pesquisas realizadas junto aos assinantes, possui pelo menos 1,5 milhão de espectadores frequentes que declaram assistir ao canal muito ou sempre. Ao longo do prazo de licença, cada filme financiado pelo FSA é exibido tipicamente quatro vezes por ano, beneficiando quase a totalidade de seus espectadores frequentes, amortizando com bastante eficiência, já na primeira janela de televisão, o investimento realizado pelo fundo.

Cabe lembrar que como pre-licenciante de filme que recebeu investimento pelo FSA, o canal da TV paga não retém direitos em decorrência do pré-licenciamento e, após 30 meses de exibições o filme já não cumprirá cota de conteúdo nacional e seguirá sua carreira beneficiando mais cidadãos e amortizando mais e mais o investimento público através de outras janelas de televisão e plataformas de VOD.

Não parece, assim, haver desperdício de recursos do FSA na área de televisão, se é que o aspecto preocupa o TCU. O investimento pelo FSA, ao menos em documentários, retorna muito à sociedade, na forma de bem cultural, como deve ser avaliado.

Na França, como aqui, os canais de TV e outros pré-licenciados de direitos de exibição de projetos financiados pelo FSA – que analisam o projeto, se comprometem a pagar um valor percentual de seu orçamento, acompanham a produção e entrega e, por fim, promovem e exibem o conteúdo aos seus espectadores, como integrante de sua marca – podem ser grandes aliados da Ancine na avaliação do conteúdo finalizado.

Aliás, na França, como aqui, não só neste quesito os canais podem ser vistos como aliados, mas ao longo de todo o processo de regulação e fomento, permitindo aos mesmos inclusive acompanhar o andamento dos processos desde o pré-licenciamento até a emissão do Certificado de Produto Brasileiro – o que hoje ainda não é possível.

* Julio Worcman é fundador e diretor geral do canal Curta!
Colaborou Eduardo Fradkin

1 COMENTÁRIO

  1. Quanto ao critério quantitativo, 99% da produção para cinema não se justificaria, uma vez que basta verificar os dados do OCA, além do que o passivo da Agência hoje é forte nesse segmento. Para vencer a questão em pauta não se poderá mudar as regras para quem já produziu (uma das questões do TCU é rever TODAS prestações de contas), mas o futuro passa fortemente para foco em produção televisiva. Nem todo filme é feito para ir para a sala de exibição.

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