Nunca fui bom em desenho, fazia, no máximo, uma casinha básica com árvore e montanha com sol. Às vezes, na escola, desenhava cachorrinho também, daqueles que surgiam de um desafio em que o coleguinha escrevia as letras maiúsculas C e U, pedindo que você fizesse da palavra o animal: o C se tornava o focinho e o U, a orelha, coisa infantil, tinha um quê de ilícito nisso. Sempre fui das palavras, escrevia bastante, lia muito mais. Mas sonhava ser ator, fazer filmes. Foi então, dessas coisas rápidas da vida, que me peguei adulto e esses universos se uniram: caí, fui colocado no cinema de animação e roteirizei meu primeiro curta, a poesia “Guida”, que escrevi com minhas parceiras Tiago Minamisawa e – minha primeira mestra – Rosana Urbes, bruxinha que dirigiu o filme. Depois foi “Sangro”, que escrevi e dirigi com o Tiago, com codireção do Guto Br. Aí veio “Pela Vida Inteira”, com Daniel Munduruku como protagonista e Lili Fialho como codiretora. Esse ano tem “Kabuki”, dirigido pelo mesmo Tiago, que faço produção executiva e consultoria de roteiro. E ano que vem deve estrear “Tubaroa”, amém, que escrevi e vou dirigir – adivinha com quem – também com o Tiago, meu grande parceiro artístico (buscamos patrocinadores, por sinal). A Marisa Orth será a personagem-título e o Kelner Macêdo será o Pescador. Tudo isso para dizer que me descobri na animação: escrever filme de desenho animado é libertador. A gente pode tudo. Literalmente. Se gosta de escrever, quer ser roteirista, indico que comece por aí.
Não sei se você sabe da nossa grandeza, mas o cinema de animação brasileiro é um dos melhores do mundo. Grande exemplo desse sucesso foi a indicação de “O Menino e o Mundo” ao Oscar de melhor filme de animação em 2016, competindo com “Divertida Mente” (Disney/Pixar), que levou o prêmio. E essa foi a última indicação do Brasil na premiação. Antes disso, Carlos Saldanha já se destacava na direção de “Rio” e da trilogia “A era do gelo”. Outro ponto importante foi a homenagem que os nossos profissionais receberam em 2018 no Festival Internacional do Cinema de Animação de Annecy, uma espécie de “Oscar francês da animação”: o Brasil foi o foco da edição. “Queremos mostrar como o país é uma poderosa fonte de criatividade, mostrar como os animadores brasileiros beberam fundo nessas águas para estabelecer uma expressão inusitada e marcante”, lê-se no texto “Honor to Brazilian animation” em que a organização anunciou as homenagens. E os longas “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi, “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, e “Bob Cuspe”, de Cesar Cabral, também foram premiados nos últimos anos do festival. Estive em Annecy em 2015 com “Guida”, ganhamos o Prêmio Jean-Luc Xiberras de Primeiro Filme e o Prêmio do Júri Fipresci. Foi um sonho, posso contar dessa viagem em outra oportunidade: festa no palácio, autoridades francesas, os maiores ídolos do animação, champanhe e um comprimido de THC. Mas voltando. Estive de novo em Annecy com “Sangro” em 2019.
O fato é que a nossa mão de obra criativa, o fator humano é o que qualifica o cinema feito por nós. Nosso diferencial é o poder artístico de cada pessoa que trabalha nessa indústria pouco valorizada, mas resistente. E longe de romantizar a dificuldade que é produzir um filme no Brasil: é muito difícil! Muito mesmo! Mas não deveria ser: falo de uma arte que nos orgulha tanto, que emprega tanto e que poderia crescer muito mais se tivéssemos apoio. Prova disso era o Anima Mundi. É um absurdo uma das maiores referências do planeta ter deixado de existir devido à falta de patrocínio desde 2019. O festival é o maior fomentador da arte da animação no Brasil (e nosso “Sangro” foi – salvo engano – o último brasileiro premiado como melhor curta nacional em São Paulo, uma honra). Boatos de que voltaria. E torço para isso. Continuando. A animação brasileira é feita de gente: Rosana Urbes, Alê Abreu, Carlos Saldanha, Rosária Moreira, Marão, Camila Kater, Luiz Bolognesi, Valentina Homem, Otto Guerra, Cesar Cabral, Nara Normande, Binho Feffer, Gustavo Kurlat, Quiá Rodrigues, Aída Queiroz, César Coelho, Marcos Magalhães, Léa Zagury, a lista é grande e inclui Tiago Minamisawa e Bruno H Castro. Quis reforçar pois sempre me sentia (não mais) peixe fora d’água nesse mar de criatividade. Pudera. Um questionamento que me trouxeram quando entrei nesse universo foi: você não desenha, não é animador, como vai dirigir? Outra pauta interessante que também já me rodeou foi: animação é técnica ou é gênero? Eu não tenho respostas. Mas sigo pesquisando. Sou devoto da arte, faço cinema, escrevo e dirijo filmes, logo animação é meu instrumento perfeito de realização artística. Estou me alongando, sensação de querer abraçar o mundo nesse primeiro texto. Por isso, pra fechar, vou ao que interessa: volta, Anima Mundi! Por favor. Saudade.