No dia 7 de novembro, estreia nos cinemas brasileiros “Ainda Estou Aqui”, do diretor Walter Salles. Com roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, o filme é inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva sobre sua família. O relato começa no início dos anos 70, quando um ato de violência muda a história dos Paiva para sempre. Com distribuição da Sony Pictures, o longa é uma coprodução entre Brasil e França. É um filme Original Globoplay, produzido por VideoFilmes, RT Features e Mact Productions, em coprodução com ARTE France e Conspiração. Estão no elenco Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, entre outros.
“Ainda Estou Aqui” será o representante brasileiro na corrida pelo Oscar 2025. O filme tem feito uma trajetória internacional de destaque, com veículos de imprensa internacionais apostando no potencial do título de estar na grande premiação do cinema mundial, em categorias como Melhor Filme Estrangeiro ou ainda Melhor Atriz, para Fernanda Torres. Entre os prêmios que ele já conquistou, estão Melhor Roteiro e Green Drop Award no Festival de Veneza e o Audience Award – Special Presentation, que é o prêmio do público do Vancouver International Film Fest.
O impacto da nova obra de Walter Salles é uma realidade. Aplaudido por dez minutos em Veneza, o filme tem causado esse efeito por onde passa. Na manhã desta sexta-feira, dia 18 de outubro, foi exibido em uma sessão exclusiva para a imprensa, em São Paulo, onde causou a mesma comoção. Aqui, vale mencionar que fazia tempo que uma cabine (como são chamadas essas sessões antecipadas para jornalistas) de um longa nacional não lotava tanto. O filme é emocionante e trágico sem precisar apelar para cenas dramáticas. As informações principais não são ditas – tudo está nas entrelinhas. E, coletivamente, o público se comove. É uma trama que fala sobre uma família, mas também sobre um país. E que ressignifica, por meio da arte, um dos episódios mais sombrios da história do Brasil.
Os primeiros 30 minutos apresentam uma família feliz: Eunice, Rubens e seus cinco filhos, que moram juntos em uma casa grande, em frente à praia, que vive de portas e janelas abertas. Apesar do contexto do endurecimento da ditadura militar, o afeto e o humor que compartilham entre si são suas formas sutis de resistência à opressão que paira sobre o país. Eles frequentemente recebem amigos, organizam eventos, dançam, demonstram carinho uns pelos outros. A filha mais velha, Vera, registra esses momentos através de sua câmera. A casa – solar, cheia, barulhenta – é personagem da história. O tom muda quando agentes militares chegam ao local, sem fazer grandes alardes – e de forma até surpreendentemente educada – e levam o pai para “prestar um depoimento”. No dia seguinte, uma das filhas e a mãe também são levadas. Elas retornam mas, o pai, não. Aos poucos, a dinâmica da casa é transformada. Literalmente de portas e janelas fechadas, ela se torna mais escura, vazia e silenciosa. E a família passa a se acostumar com a ausência e com a nova vida.
A protagonista da história é Eunice, interpretada por Fernanda Torres. No livro, por outro lado, o protagonista é Marcelo, o autor, que conta o que aconteceu a partir de seu ponto de vista, trazendo à tona suas memórias de infância. Na coletiva de imprensa realizada nesta sexta, a atriz comentou: “Li o livro do Marcelo antes de o Walter me convidar para o filme. Queria saber o que tinha acontecido. Aí, veio o convite, e a responsabilidade de retratar uma mulher única, que nunca fez questão de aparecer, mas que moveu revoluções de uma maneira sempre digna. Vi muitas entrevistas dela – era o mais paupável que eu tinha para conhecê-la melhor – e percebi que havia sempre um sorriso no seu rosto. Além de uma enorme inteligência. Ela não se movia de sua convicção. E a complexidade e as contradições dessa mulher. O Estado impõe a ela um silêncio, uma não-resposta sobre a morte do marido, e ela acaba fazendo o mesmo com os filhos. Acho que para preservar a inocência deles. Como explicar para as crianças um ato tão arbitrário, tão injusto? Ela deixou que cada um resolvesse a seu tempo – o que, por um lado, é assustador; por outro, é compreensível”.
Torres ainda falou justamente sobre essas coisas não ditas pelo o filme, que ficam subentendidas. “É tudo na subtração. A música não tem empurra, nem a câmera, as cenas não são melodramáticas. O filme não sofre por você. Pelo contrário, ele contem, se restringe. E isso cria no público uma cumplicidade com aquelas pessoas. Você gosta daquela família e, de repente, tiram isso de você. E aí as pessoas sentem – independente de credo ou crença política – que aquilo foi um gesto arbitrário. Aquelas pessoas não mereciam. Qualquer um se identifica e entende que não tem como concordar com aquilo. O filme toca humanamente as pessoas em lugares que não estamos acostumados. É a forma de resistência de uma família através do afeto. Hoje em dia, as pessoas no mundo estão com raiva e com medo de muita coisa. Esse filme convida a gente a lembrar do afeto – e do que um governo autoritário pode fazer com qualquer um”.
O diretor Walter Salles definiu que o que levou toda essa equipe para dentro do filme foi o desejo de reencontrar essa família e contar as relações humanas que ali pulsavam. “Ali havia o desejo, o sonho de um país que ainda vigorava. E que, de alguma forma, foi ceifado. Aquela família é um microcosmo do Brasil – do que foi roubado de um projeto de país possível. Nós estávamos movidos por isso. Cada membro da equipe foi aos poucos percebendo que estávamos falando não só daquele passado remoto, mas também de um momento presente. Não sabíamos por onde aquilo ia ecoar. Se você faz um filme pensando nisso, está fazendo errado. O que nos mobilizou foi a história. A gente não podia deixar de contar aquela história. Por isso o filme está ecoando para além do que a gente podia imaginar. A beleza dele está no agora, quando ele começa a ser complementado pelo olhar o espectador”.
Salles relembrou o início do projeto, que teve como ponto de partida o livro, e também muito de sua vida pessoal: o diretor foi amigo de Nalu, irmã do meio de Marcelo, o que significa que conviveu com aquelas pessoas e, inclusive, frequentou a casa. “O filme é um desejo de tentar reabrir aquela casa e compartilhá-la com as pessoas”, analisou. “Essa história traça não somente a memória pessoal da família, mas também a História do Brasil ao longo de várias décadas. E esse pessoal combinado ao coletivo foi o que sempre me interessou no cinema”, completou. O processo, claro, não foi rápido nem simples, e levou ao todo sete anos. “Os roteiristas nunca cessaram a busca pela forma mais justa de reencontrar essa família. E o trabalho também não teria sido possível se o Marcelo não tivesse retroalimentado esse processo todo nos dando informações, sugerindo coisas, dizendo por exemplo que havia diálogos demais”, contou.
E, pensando nesse encontro que o filme está tendo agora com o público e a excelente repercussão, o diretor também falou sobre a possível indicação ao Oscar e como eles têm se preparado para isso. “A maneira certa de atingir as pessoas é nos festivais – como a Mostra de São Paulo, que está fazendo 48 anos. Hoje, fazer uma campanha para o Oscar é ir acompanhando o filme nos festivais. É a maneira dos votantes assistirem. E esse contato pessoal, de encontrar as pessoas, dar entrevistas, é muito importante. Especialmente para um filme como o nosso – pensado de forma independente, que tem o mesmo pequeno coprodutor da França de ‘Central do Brasil’, com distribuidores independentes no mundo inteiro. É claro que teria sido mais fácil pegar uma grande máquina internacional de streaming. Aí, é um golpe só. Mas essa sequência toda de festivais é maravilhosa. Estamos fazendo com prazer. A gente oferece ao público e ele complementa o filme”.
Selton Mello, por sua vez, celebrou especialmente o momento atual, em que o filme encontra os brasileiros – ele terá algumas sessões na Mostra de São Paulo e, logo depois, em novembro, estreia nos cinemas em circuito nacional. “Falando da nossa aldeia, a gente toca o público. E é isso que vem acontecendo. E, no meio disso tudo, tem uma celebração do cinema mesmo. Na era do streaming, das redes sociais, onde tudo é cortado e fragmentado, contamos uma história no tempo que ela deve ter. E no cinema. É um filme de cinema – de grandeza cinematográfica e também emocional. O cinema brasileiro está fervilhando – com Juliana Rojas, Marcelo Caetano, Karim Aïnouz, Kleber Mendonça Filho, Marianna Brennand – e somos parte desse corpo vibrante. Estamos muito felizes de fazer parte desse movimento”.
O autor, Marcelo Rubens Paiva, claro, está muito feliz com o resultado do trabalho, e define que o que aconteceu em “Ainda Estou Aqui” foi um “encontro mágico” – entre atores, amigos, diretor, roteiristas, equipe. E, além disso, ele está surpreso com os resultados. “O público popular está comentando. É uma coisa rara. Fazia tempo que não víamos o cinema nacional chegar a esse público mais amplo. Estivemos em Londres, Nova York, Veneza, Toronto… As pessoas estão com saudades de ver filmes humanos, sobre famílias. Fazia tempo que não entregávamos algo assim. E fico feliz, acima de tudo, por saber que Eunice Paiva está proporcionando isso”.