Em momento de fragilidade do setor, animação brasileira aposta em prestação de serviço para se sustentar

Uma mesa da Expocine realizada nesta quinta-feira, dia 18 de novembro, reuniu alguns dos principais nomes do mercado de animação nacional para discutir os desafios e oportunidades do "work for hire" nesse setor, isto é, a prestação de serviços de animação para terceiros – em vez de criação de propriedades intelectuais. A ideia era entender se o modelo pode ser uma possibilidade interessante para a sustentabilidade dos estúdios de animação no Brasil. 

Para contextualizar, César Coelho, da Campo4, relembrou como a animação brasileira vinha numa trajetória ascendente, com prêmios importantes no Festival de Annecy, conhecido como o "Oscar da Animação", e uma edição temática do evento em 2018 em homenagem à animação brasileira. "Foram anos de crescimento vertiginoso. Entramos no mercado internacional pela porta da frente, com as nossas próprias criações, cultura e capacidade de produzir e de criar. Agora, a gente vive esse momento de desafios. Esse parque montado ao longo desses anos se vê confrontado, se perguntando como vai manter essa estrutura – estúdios, equipes, equipamentos – que foi duramente conquistada", pontuou. "Nosso potencial é muito claro. Uma pena a gente ter que lutar para manter o que sobrou e recuperar o tempo perdido", acrescentou Kiko Mistrorigo, fundador da TV Pinguim. 

Antes de entrar nos detalhes dos modelos de atuação dos estúdios, é importante falar sobre a relação das políticas públicas com esse momento crítico descrito pelos profissionais. Felipe Tavares, sócio-fundador e atualmente diretor executivo do Copa Studio, conta que a empresa começou em 2008 como uma reação a um programa de fomento e capacitação chamado Anima TV que, segundo ele, foi "uma ótima estrutura montada para patrocinar projetos de propriedade intelectual brasileira. Fomos um dos vencedores, com o projeto 'Tromba Trem'. Nesse crescente, nos beneficiamos muito da Lei 12.485, com captação de recursos. O estúdio foi tomando corpo de produção baseado nessas estruturas", disse. "Se você olhar para o mercado internacional, não existe nenhum estúdio que faça 100% prestação de serviço ou 100% propriedade intelectual. Sempre existe um híbrido, onde uma coisa se beneficia da outra. Mas, nesse momento, corremos muito pro 'work for hire'. Assinamos contratos que nos prejudicam bastante pelo momento de fragilidade. Não conseguimos visar um crescimento estável de forma mais humana e em todos os aspectos que fazem uma empresa se tornar saudável". 

Mistrorigo comentou: "Vínhamos num processo, montando nossa indústria. A produção independente se instalou no Brasil e foi compreendida pela sociedade. Desde a Lei do Cabo viemos bem. Entramos no mercado internacional. Aí todo esse ciclo foi interrompido e, hoje, precisamos 'tirar o bode da sala' antes de mais nada. Tipos de apoio, como do BNDES, têm que voltar. Foi assim que tiramos 'Peixonauta' do papel". Ele levantou ainda outra questão: "Uma vez, vi que os custos pagos por uma grande plataforma para uma produção da Alemanha eram 19 vezes maior do que os pagos para o Brasil, falando de um episódio de mesma metragem. Por isso temos que ter uma regulação, um apoio para a nossa indústria. Queremos desenvolver o mercado, estruturar empresas, gerar empregos. Uma regulação ajudaria nesse sentido. O VoD no Brasil não paga imposto, mesmo sendo um mercado gigante. Mas na França, por exemplo, a Netflix paga 24% sob o lucro da operação, e esse valor vai para as produções francesas. É para coisas assim que temos que lutar". 

Como se comporta o mercado  

Chegando então aos modelos de negócio propriamente ditos, Alessandra Meleiro, pesquisadora da Iniciativa Cultural que tem seu trabalho voltado para o mercado da animação, trouxe para o debate dados relevantes. No Reino Unido, empresas de pequeno porte têm a divisão de receitas em 37% vindo de 'work for hire' e 10% advindos de propriedade intelectual. Já com as empresas de médio e maior porte, ocorre uma inversão completa – 40% de propriedade intelectual e somente 3% de 'work for hire'. "Apesar de serem dados de outro território, o conhecimento que se tira é que criar e explorar propriedades intelectuais está diretamente envolvido com o tamanho da empresa. É algo crítico quando se pensa na adoção de outro modelo de negócio", analisou Meleiro. 

No Brasil, dados de 2019 identificam que 54% das empresas e estúdios de animação tinham até seis funcionários – ou seja, mais da metade é de pequeno porte. E na realidade pré-pandemia, 52% dos recursos para empresas de animação eram advindos das vendas de produtos e serviços e 43% das empresas já exportavam serviços de animação. "Isso significa que nossa vocação naquela época já era o 'work for hire'. A questão é como evoluir, pensando ainda que esse modelo tende a crescer com a entrada das plataformas", observou a pesquisadora. 

O Mapeamento do Mercado de Animação feito no Brasil em 2019 identificou algumas limitações do setor. Os dados identificaram que 48% dos gestores acreditavam que faltava expertise em gestão interna nas empresas e 38% disse que um dos fatores limitantes para o crescimento da indústria seria a necessidade de melhor qualificação profissional. "A capacitação é uma questão recorrente. O que os dados mostram, além das pesquisas e relatos dos estúdios, é que temos que focar em capacitação técnica, artística e também de gestão, para essa harmonização entre os modelos de negócio poder acontecer", concluiu Meleiro. A partir daí, a Iniciativa Cultural, em conjunto com parceiros, como a Campo4 e a Split, criou uma pós graduação de Gestão de Negócios em Artes Digitais. "A ideia é pensar especificamente nessas questões e formar profissionais de diferentes elos da cadeia produtiva", ela explicou.  

Os diferentes modelos de negócio 

"De acordo com os dados, ninguém no mundo chega para um estúdio pequeno e sugere investir em uma propriedade intelectual sua. Existe uma dicotomia que, quando o estúdio é pequeno, ele pega o 'work for hire' porque não tem acesso ou experiência suficiente de gestão, capacitação e produção para pegar projetos maiores", argumentou Tavares. "Único caminho para os pequenos começarem é por 'work for hire' ou, então, incentivos de programas que os governos anteriores vinham oferecendo, que davam oportunidade. Esses programas tinham um papel indutor para os estúdios pequenos criarem seus próprios conteúdos e produzirem cada vez mais. Isso aconteceu com o Copa e com diversos outros estúdios que estão aí. Pra mim, a questão é essa: os estúdios pequenos não crescem porque o desafio é muito grande e porque eles não têm acesso. Tem que girar muitas vezes produções pequenas para tentar pegar uma maior", completou. 

Jonas Brandão é diretor na Split Studio, uma empresa que tem o 'work for hire' como principal atividade e trabalha bastante com prestação de serviço para fora do país. "Isso pra mim tem sido um grande aprendizado, especialmente o trabalho com estúdios do Canadá e dos Estados Unidos, que são mercados longevos e bem estruturados. É legal ver os modelos de organização das empresas. Tudo isso serve de aprendizado para melhorarmos nossa própria organização e estruturas", menciona. No entanto, ele considera que a "chave de sustentabilidade" esteja na propriedade intelectual: "Você produz e entra no mercado de licenciamento, que é onde vai entrar recurso para ser reinvestido na empresa. Gera um ciclo mais saudável do que o da prestação de serviço pura e simplesmente, onde temos que estar sempre buscando o próximo trabalho". 

Fuga de talentos 

Essa é uma questão sensível – depois da pandemia, com a inflação e toda a situação de crise generalizada, é um fenômeno comum em todas as áreas – mas, na animação, já era uma constante. "Passamos anos treinando pessoas e estruturando estúdios. Ultimamente, quem ganhou experiência compara os salários no Brasil com países como Canadá e Irlanda e fica impossível pra gente discutir, argumentar com essas pessoas. Todas as pessoas que vão trabalhar pra fora ganham muito mais. Os estúdios brasileiros não chegam sequer perto dos números em salários", disse Tavares. Brandão acrescentou: "A pandemia foi disruptiva nesse sentido. Os estúdios de fora já atraíam mão de obra brasileira, mas tinha uma questão de barreira geográfica, visto, coisas que às vezes eram impeditivos. Agora, as pessoas trabalham remotamente. As barreiras foram quebradas". 

Tavares ainda acha que existe uma questão de valorização dentro do próprio mercado. Ele explica: "Por não termos muita formação e escola em animação, muitas vezes profissionais brasileiros acreditam que não são bons o bastante para fazer gestão e, aí, escolhem trabalhar com o operacional lá fora. Temos que assumir que somos bons em produção, operação e gestão. O que falta é reconhecimento da gente – tanto financeiro quanto em bem estar social. Precisamos de oportunidades para treinar pessoas em gestão e capacitação e reter os talentos no Brasil para produzirmos nossas propriedades cada vez mais". 

Para Mistrorigo, a situação é que nem no futebol: "Se não conseguimos pagar, eles vão para fora. E agora nem precisam ir fisicamente. Só conseguimos lutar contra isso se pudermos pagar mais. Por isso, temos que aumentar nosso preço. O que é um caminho complicado. Precisamos montar nossa indústria, ter apoio, contar com o Brasil entendendo nossa atividade econômica. É um longo caminho, mas temos que recuperar. A coisa estava acontecendo, estávamos crescendo". E o fundador da TV Pinguim conclui: "Nossa vocação, no Brasil, é ser criador. Se o 'work for hire' for bem pago está ótimo, mas esse é o problema. Antigamente, montávamos orçamentos baixos para logo conseguir financiamento da Ancine. Isso foi um tiro no pé, porque hoje canais e plataformas usam esses valores como base". 

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