Nesta quarta, 19 de março, teve início a segunda edição do Lanterna Film Market, que é o braço de mercado do Lanterna Mágica – Festival Internacional de Animação. O painel de abertura teve como tema "Mulheres na Indústria de Animação" e se propôs a apresentar um panorama latino-americano, passando pelos desafios e oportunidades do setor de animação com foco nas questões de gênero dentro da indústria. A mediação foi de Camila Nunes, fundadora da CSNR Produções e head do Lanterna Mágica.
Para trazer uma visão para além das fronteiras do Brasil, uma das convidadas foi Mariana Loterszil, da MIA – Mujeres en la Industria de Animación. Ela é natural da Espanha, mas mora na Argentina. A MIA é uma associação aberta e multidisciplinar fundada em março de 2018 e com mais de 300 associadas entre mulheres da indústria de animação ibero-americana. Ela foi concebida como um ponto de encontro, debate, reflexão e diálogo entre profissionais, associações, meios de comunicação, empresas, outros agentes sociais e organismos públicos. A associação parte dessa ideia de criação de comunidade. "Acreditamos que trabalhar em comunidade, ajudando umas às outras, é muito importante", destacou. Na MIA, são produzidos informes bianuais sobre o espaço das mulheres nessa indústria com o objetivo também de entender possíveis pontos de avanço. Outro ponto importante de sua dinâmica é o MIANIMA, realizado em novembro. Trata-se de uma convocatória para mulheres com foco em autoras e diretoras. O comitê seleciona nove projetos – sendo três curtas, três longas e três séries – que receberão capacitação e mentoria especial para chegarem à bíblia final. O evento ainda tem apresentação de pitching a jurados, reuniões e espaço de mercado. Inclusive, o filme exibido nesta terça, 18, na abertura do Lanterna Mágica – o longa-metragem espanhol "Rock Bottom", dirigido por María Trénor – passou por esse evento.
Em sua fala, Loterszil abordou alguns dos principais problemas enfrentados pelas mulheres no mercado da animação. Um dos pontos mais sensíveis é a falta de profissionais em cargos de responsabilidade, como criação e direção. A maioria ainda trabalha com roteiro e, principalmente, produção. Foi justamente pensando nessa demanda que o MIANIMA definiu seu escopo de atuação com foco nesses cargos mais centrais. Para ela, muitas das questões da luta das mulheres têm como base as tarefas de cuidado. "Temos que trabalhar cuidando de tudo: trabalho, filhos, pais, parentes. É necessário refletirmos sobre como isso se reflete". Nesse sentido, a argentina Paola Becco, diretora e programadora de mostras, laboratórios e festivais de cinema de animação, como o Festival Internacional de Animación SMOF (Stop Motion Our Fest), também participante da mesa, acrescentou: "Precisamos analisar as tarefas de cuidado de personagens femininas dentro dos projetos também. O que queremos passar com os personagens que trazemos. Queremos mudanças, mas temos que questionar como projetamos isso em nossas próprias produções".
Cargos e dinâmica de produção
Becco aproveitou para chamar a atenção para a situação da cultura de modo geral, mas também do audiovisual, na Argentina. Segundo ela, o país passa por uma das piores crises de sua história socioeconômica e cultural. Em relação especificamente à animação, ela contou que não há patrocínio nacional ou mecanismos de aporte para projetos há mais de dois anos. "Hoje, estamos procurando outro tipo de colaboração. Pensando em maneiras de produzir, apesar de não termos patrocínio e vivermos num cenário de perseguição constante aos trabalhadores de cultura. Meu trabalho passa por pensar em como nós nos mantemos unidas para superar essa situação. Para as animadoras, o momento é difícil. Mas é justamente nesses momentos de gravidade que devemos nos fortalecer para, juntas, continuarmos produzindo". Os caminhos possíveis são, por exemplo, colaboração com outros estúdios e projetos em coprodução com outros países. "Mas não podemos deixar que a situação sucateie nossos direitos. E também precisamos ter cuidado para manter nossa cultura presente nos projetos em coprodução, e com nossos devidos créditos. Estamos atentos a muitas questões".
Outro ponto que ela destacou – e que já foi motivo de debate entre produtoras brasileiras – são os projetos que contam com diretor, roteirista e produtor, todos homens, e uma mulher como assistente de produção ou direção como uma espécie de maneira de lidar com a "culpa", isto é, como se a presença feminina no time fosse apenas para cumprir uma "cota". O lugar das mulheres – inclusive, claro, as mulheres da animação – conforme apontou Becco, também precisa ser reservado nas instituições, nos comitês dos eventos e nas curadorias de seleção de projetos.
Dani Fiuza, produtora executiva que é uma das fundadoras do Gabinete de Curiosidades Macaco Hábil, produtora audiovisual independente de Goiânia/GO com foco em animação, também abordou a falta de mulheres em posições de liderança dentro dos projetos e acrescentou: "Infelizmente, vemos acontecendo muito de projetos inscritos em iniciativas de políticas afirmativas serem trazidos à tona por uma mulher e, na prática do dia a dia, essa mulher não ter voz de decisão. Quando as mulheres estão envolvidas nos processos, sobretudo em animação, numa posição de liderança, aí, sim, podemos falar que é um projeto de mulher. É comum ainda o formato de duo entre diretor e produtora. Na nossa empresa, tentamos escapar um pouco disso e pensar com equidade de decisões e proporções. Esse modelo é um ponto importante para pensarmos também".
Políticas públicas
Falando em políticas públicas, o cenário é um pouco diferente entre os países. Loterszil, que é espanhola, destacou os fundos de investimento disponíveis no país, em especial as políticas estaduais e municipais. Madri, por exemplo, tem trabalhado fortemente para fortalecer o turismo, então tem atuado nessa relação entre a cultura e o audiovisual e seu potencial de atração de turistas. Já Tenerife também tem um programa atraente de cash rebate. Ela citou ainda o Programa Ibermedia, espaço audiovisual ibero-americano que está com uma série de convocatórias abertas, como distribuição e circulação de filmes ibero-americanos, co-desenvolvimento de longas-metragens e co-desenvolvimento de séries, entre outros. Todos têm como foco esses projetos de equipes multidisciplinares, com talentos de diferentes países.
Na Argentina, o cenário é mais crítico. Para Becco, a palavra é desafio. "Como produzimos e realizamos num estado inimigo da cultura?", questionou. "O último chamado que tivemos para projetos de animações tinha um orçamento de US$ 1 mil para um curta. O INCAA pretendia que realizássemos um curta com esse valor. Por isso digo que é o momento de nos agruparmos para pensar em outras maneiras de produzir e colaborar entre nós".
Camila Nunes, diretora do Lanterna Mágica e moderadora da mesa, complementou que, no Brasil, o momento é dos produtores realizarem tudo o que for possível para tentar ter um fôlego na próxima mudança de governo, que acontecerá em breve. "Temos medo do que pode vir nos próximos anos, por isso esse é o pensamento agora".