Bubbles Project, de Tatiana Leite, estreia três longas de ficção no cinema

Tatiana Leite, produtora e curadora (Foto: Divulgação)

A Bubbles Project, da produtora e curadora dedicada ao cinema autoral Tatiana Leite, estreia entre outubro e novembro deste ano três filmes nos cinemas: "Malu", que foi lançado em 31 de outubro, e "A Herança" e "Retrato de um Certo Oriente", ambos entrando em cartaz nesta quinta-feira, dia 21 de novembro. Os três longas de ficção estiveram na 48ª Mostra de Cinema de São Paulo, que aconteceu entre 17 e 30 de outubro. 

Premiado no Festival do Rio como Melhor Longa-Metragem de Ficção, Melhor Roteiro, Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante (prêmio duplo), "Malu", do diretor Pedro Freire e produzido com a TvZero e coproduzido com a RioFilme, Telecine e Canal Brasil, exibido em janeiro na première do Festival de Sundance, traz no papel principal Yara de Novaes como uma mulher instável que vive com sua mãe conservadora em uma favela no Rio de Janeiro enquanto tenta lidar com o relacionamento tenso com sua própria filha adulta (Carol Duarte) em meio às lembranças de seu glorioso passado artístico. 

"A Herança" é um filme de terror dirigido por João Cândido Zacharias, com quem Tatiana Leite divide a ideia original, que narra os acontecimentos advindos do retorno ao Brasil de um jovem (Diego Montez) que acaba de perder sua mãe e descobre ser o único herdeiro de uma casa que pertencia a uma avó que não conheceu. Nesta casa, o namorado do jovem desconfia que algo maligno se esconde debaixo da fachada de uma vida tranquila no campo. O filme é uma produção Bubbles Project em coprodução com Kromaki e Sony Pictures e será distribuído no Brasil pela Sony Pictures.

Por fim, "Retrato de um Certo Oriente", dirigido por Marcelo Gomes e coproduzido pela Matizar Filmes, conta a história dos irmãos católicos Emilie (Wafa´a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) que fogem do Líbano pós-guerra rumo à Amazônia em busca de um futuro melhor, mas a relação entre eles se deteriora quando Emile se apaixona por um jovem muçulmano. O longa é uma adaptação do livro "Relato de um Certo Oriente", de Milton Hatoum. As produtoras Kavac Film, Gullane, Muiraquitã, Globo Filmes, Canal Brasil, Misti Filmes, VideoFilmes e Orjouane Productions também estão na equipe. No Brasil, o filme será distribuído pela O2 Play, da O2 Filmes. 

Em comum, "Malu" e "A Herança" são primeiros longas-metragens dos diretores – o que, segundo Leite, vai muito de acordo com a linha que a produtora busca seguir. "Gosto de descobrir novos talentos e investir num processo intenso de desenvolvimento, e os dois filmes tiveram esse caminho. O 'Retrato' já foge um pouco da curva. É de um diretor mais experiente, e chegou até mim por um convite da Matizar Filmes, que é a produtora principal. Minha participação nesse caso foi mais criativa e estratégica. Atuei no desenvolvimento, me envolvi também no roteiro e na montagem, e depois na estratégia de lançamento e posicionamento do filme no mundo", detalhou Tatiana Leite em entrevista exclusiva para TELA VIVA

Nos dois primeiros filmes, apesar de serem coproduzidos com outras empresas, a produtora cuidou de ponta a ponta, estando presente desde o início do roteiro até o lançamento internacional e nacional. E os três tiveram carreiras muito importantes em festivais, cada um dentro do seu estilo. "Malu" passou por Sundance (EUA), Hong Kong International Film Festival (China), San Diego Latino Film Festival (EUA), Sundance CDMX (México) e Mediterranean Film Festival Split (Croácia), entre outros. "A Herança", por sua vez, fez um longo circuito de festivais de gênero. "É um filme que causa uma empatia muito grande na América Latina. Tivemos recorde de convites para festivais latino-americanos. E pra mim esse processo foi uma novidade, porque domino um estilo específico de festivais, que são os de filmes autorais, e estou desbravando agora os festivais de gênero", contou Leite. E "Retrato de um Certo Oriente" começou a carreira em Roterdã, festival com o qual a produtora já está bastante familiarizada. 

"Não são filmes que começaram ao mesmo tempo, mas os três nasceram neste ano e desaguam no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo. É uma forma maravilhosa de pré-apresentá-los ao mundo. Foi uma coincidência bastante intensa para mim, pois eles entram em cartaz numa cascata", disse a produtora. 

Interesse em novos filmes de terror

Ela revelou que os projetos da Bubbles não seguem um gênero específico – e que ela não tem um preferido nem mesmo como cinéfila. "Faço filmes que passam pelo meu próprio crivo pessoal e curatorial, mas sem me agarrar a um estilo específico. Eles têm, em comum, o fato de serem mais autorais, mesmo sendo de gênero, no caso de 'A Herança'. São filmes que buscam artisticamente uma diferenciação. Não estou fechada para trabalhar com diretores mais experientes – produzimos o filme do Marcelo, por exemplo – mas quando busco projetos em mercados de coprodução tenho uma tendência aos novos olhares, uma curiosidade sobre os novos diretores. Mas não faço essa diferenciação de estilo em termos de gênero", ressaltou. No futuro, Leite já se vê trabalhando num novo projeto de terror. "O gênero mexeu muito comigo. Achei o processo de fabricação muito legal. Comecei a me perguntar se não seria interessante continuar fazendo os filmes de ficção que já faço, que misturam gêneros como romance, drama, comédia, até os documentários híbridos eventualmente, mas seguir no terror em paralelo. Hoje, já posso dizer que estou buscando um novo filme de terror", revelou. 

A produtora acrescentou que trata-se de um gênero onde o Brasil ainda não mostrou toda a sua capacidade – "e nós temos capacidade de fazer qualquer gênero de cinema. São muitos talentos, vontade e histórias" – e destacou o trabalho de Marco Dutra e Juliana Rojas, que ela considera "pessoas-chaves" nessa vertente. Para Leite, o país pode fazer uma coisa "mais assumida" dentro do terror, isto é, seguindo os códigos de terror clássicos, mas com características brasileiras. "'A Herança' entra nesse lugar. É uma homenagem ao cinema de terror clássico com elementos especificamente muito brasileiros, como uma brincadeira em relação ao drama da telenovela. E podemos ampliar um pouco essa narrativa de terror, com uma diversificação de linguagens para traduzir o próprio país", analisou. 

O valor do tempo de desenvolvimento dos projetos 

Um ponto muito importante para Leite quando se fala em produção audiovisual de filmes é o tempo de desenvolvimento dos projetos. "Isso é crucial. O tempo da criação do argumento, escrita de roteiro, pensamento de estratégia em cima do que está sendo escrito, a troca entre todos os envolvidos. Com todos os diretores com quem trabalhei até hoje fui muito presente em todos esses processos e valorizando muito esse tempo. Até em coproduções minoritárias, leio todas as versões do roteiro, mando comentários", enfatizou. Paralelamente à Bubbles e aos seus projetos, a produtora e curadora participa também de comissões de diversos fundos internacionais e vê o Brasil aquém nesse sentido. "Temos menos fomento para a parte de desenvolvimento do que deveríamos ter", defende

Leite também é tutora de projetos em alguns laboratórios, tanto dentro do Brasil, como o BrLab, quanto fora, como o Locarno Open Door, e, nessa função, enxerga de forma ainda mais evidente a importância do desenvolvimento. "Não acredito em filmes em que a pessoa tem uma ideia e já vai rodar. É necessário um tempo de desenvolvimento para que se conheça bem quem são os personagens, por exemplo. Isso terá uma importância enorme na hora de filmar. Talvez eu seja muito crítica, mas sempre vejo se tem alguma barriga no texto, algum personagem passando despercebido que seria interessante mostrar mais. Esse tempo é o core do trabalho", reforçou. "Malu", por exemplo, foi um filme que teve somente três semanas de filmagens. "É claro que o Pedro tem um talento natural. Era seu primeiro longa, mas ele já tinha feito vários curtas. Mas a fluidez das filmagens teve muito a ver com o tanto que esse roteiro já estava decantado – para ele e para todas as outras pessoas. Tudo já estava muito visual, então a equipe só embarcou e foi agregando seus próprios trabalhos e talentos. Acho que um roteiro que não está maduro o suficiente e vai para a filmagem acaba tendo isso refletido no próprio filme. E depois, não tem montagem que resolva. Já vi isso acontecer". 

Os ganhos das coproduções internacionais

A coprodução internacional sempre despertou o interesse de Leite, desde o início da Bubbles Project, em 2012. "Acho que boa parte dos filmes que eu mesma consumo são feitos por diferentes países. E o fato de eu ter trabalho como curadora antes – comecei a fazer curadoria há 20 anos – me abriu ainda mais para isso. Circulei em festivais internacionais e vi como era interessante agregar esses diferentes olhares – senão obrigatório", pontuou. Olhando para trás, e considerando especialmente a falta de estabilidade do cinema latino-americano na comparação com o cinema europeu, que é também um reflexo da falta de estabilidade na política, a produtora lembra que a coprodução já chegou a ser a única possibilidade de modelo de negócio, durante períodos mais complicados. E, para ela, as vantagens vão além do financiamento. "Obviamente que ele é super importante, mas tem também a possibilidade de uma troca artística, que acho bastante relevante, e da inserção nos mercados internacionais para os filmes brasileiros. E pessoalmente tenho muita curiosidade do cinema do resto do mundo, e acho maravilhoso poder participar. Tenho esse interesse em descobrir novas vozes, e isso vai muito além do Brasil. Tem amplitude para o mundo". 

Nesse momento, ela está trabalhando com parceiros internacionais inéditos, e lembra de bem-sucedidas experiências com coproduções passadas. "A coprodução enriquece artisticamente os projetos, viabiliza financeiramente e dá visibilidade internacional". Nesse sentido, ela cita "Puan" (2023), uma coprodução Brasil – Argentina – França – Itália e Alemanha e que, na França, foi vista por mais de 75 mil pessoas e, na Argentina, mais de 180 mil. Pelo fato de o longa ser uma coprodução que envolvia, entre outros países, a França, ela tinha a obrigatoriedade de distribuir o filme por lá. "Essa oportunidade de distribuição é muito importante. Vai criando comunidades no mundo para o filme. O que queremos é fazer filmes para que eles sejam descobertos pelas mais diferentes pessoas. As duas coisas me interessam muito – que nos meus filmes eu tenha coprodutores minoritários interacionais, de diferentes partes do mundo, e que eu possa participar de filmes de diferentes partes do mundo e contar outras histórias – que às vezes estão geograficamente longe, mas tão perto da gente". 

Leite vê um atual interesse forte de outros países em coproduzir com o Brasil, mas salienta que isso está diretamente ligado ao que o país tem para oferecer como coprodutor minoritário. "Durante alguns anos tivemos um fundo minoritário para a América Latina – fundo esse que ganhei para fazer meu filme chileno, o 'Nona – Se me molham, eu os queimo', e a gente tinha também fundos bilaterais entre o Brasil e outros países latino-americanos, e depois ibero-americanos, que também possibilitaram muitos projetos. 'Familia Submersa' foi um filme que fiz com a Argentina através desse fundo. E, nesse momento, tenho uma grande coprodução internacional com Portugal, que está em pós-produção, e é um filme já aguardado no mercado internacional com um diretor que foi bastante festejado no último longa dele. E para esse filme eu ganhei um edital Brasil-Portugal. Nos últimos dois anos a Ancine criou um fundo que é mais híbrido, permite todas as possibilidades, e brilha os olhos. Dá a oportunidade de fazer coproduções com todos os países com os quais o Brasil tem acordo, e foi com ele que fiz 'Puan'. Esse foi um filme que eu sonhei muito em fazer e participei do projeto desde o início. Durante um tempo, achei que não ia mais acontecer, porque tivemos um momento catastrófico na história do Brasil. Então quando o fundo foi anunciado, foi uma grande alegria", contou. 

É também com esse fundo que Leite produzirá um primeiro longa-metragem de um diretor da Venezuela, em uma coprodução ainda com França, Alemanha e Chile, chamado "Meninos Banhando-se no Lago". "Fico feliz de dizer que o projeto ficou em primeiro lugar na classificação da Ancine nesse novo edital, entre os 180 inscritos. Ele será filmado no ano que vem, e isso significa muito para o Brasil. Significa que, de fato, as pessoas estão falando do Brasil. Temos cada vez mais interesse de outros países, produtores brasileiros convidados para participar de encontros internacionais – na América Latina e também na Europa, quiçá na Ásia. Temos um potencial enorme de ser um dos países que estão mais à frente dessa cooperação", analisa. 

E, para além de todas essas vantagens que ela citou, como as possibilidades de troca, o valor que isso agrega economicamente por conta da difusão dos filmes, está ainda outro ponto muito importante, que é a imagem do Brasil como um país de cinema. "Se olharmos a seleção de festivais como Cannes e Berlim, por exemplo, a França está inserida em uma porcentagem gigante de filmes porque ela coproduz muito. Tem muitos esquemas – não só o fundo principal, mas os regionais também. Quando você olha para os festivais, eles trazem cerca de 30 filmes franceses muitas vezes. Analisando de perto, podem ser 20 coproduções minoritárias, mas não deixam de ser filmes franceses. Essa estratégia é genial". 

Mas é claro que nem tudo são flores – fazer coproduções também pode ser difícil. São muitos os desafios, sendo a instabilidade da moeda brasileira uma das principais, na opinião de Leite. "O real desvaloriza muito, principalmente em relação ao dólar, que é mais comum a todos os países. Tem o desafio de encontrar parceiros certos também. Nem toda parceria é genial. É importante tentar conhecer bem os parceiros antes, sentir que estão todos na mesma vibe, manter o respeito ao país original e aos produtores delegados, e entender ainda as situações e limitações de cada país. Isso tem que ficar claro para todos, isto é, como é o sistema de cada país. É fundamental chegar a um comum acordo sobre quais técnicos virão de cada parte e respeitar o interesse e proposta artística dos diretores. Da minha parte, em geral busco parceiros internacionais que pensem o cinema de forma parecida comigo, e que entendam, por exemplo, que o desenvolvimento é uma etapa muito importante", aponta. 

Ganhos de 2024 e expectativas para 2025  

A falta de estabilidade ainda é um dos principais problemas do cinema brasileiro, na visão de Leite. "A continuidade das coisas, em todas as áreas, impulsiona o crescimento, assim como constantes rupturas fragilizam muito os setores, e no audiovisual não é diferente", disse. A produtora reconhece que em termos de políticas públicas há ações positivas em andamento atualmente – menciona por exemplo um "gigante fomento regional", que é uma coisa única, no sentido de que em nenhum país do mundo há tantos estados fazendo filmes quanto no Brasil, e que é essencial que isso não seja descontinuado. Mas, ao mesmo tempo, os baixos números de bilheterias nos cinemas do Brasil é algo que a angustia: "Especialmente porque vejo em que outros países as pessoas já voltaram e, agora, os percentuais de público estão ainda maiores. Isso é muito importante. Faço filmes para serem assistidos primeiro nos cinemas. Fico muito feliz que eles tenham uma cauda completa, mas o cinema ainda é também meu lugar preferido para assistir a um filme. E não tem um jeito, que não seja intervenção pública, para que isso se resolva". 

Por fim, ela sente falta de iniciativas de retomada relacionadas à formação e declara: "Não acredito que simplesmente dar dinheiro para a produção especificamente resolva todas as questões que a gente tem. São dois pontos importantes – formação e difusão – que ainda não foram resolvidos. O desenvolvimento faz parte da formação, e toda a política de preservação também, que no Brasil ainda precisa de muito cuidado e investimento. Precisamos também de um parque exibidor maior em todo o país. Dá agonia pensar que temos muitas cidades sem cinema". 

A produtora conclui: "O ano de 2024 teve coisas concretas – bons filmes que foram lançados, estamos rumando para uma campanha de Oscar com chances concretas – mas ao mesmo tempo ainda há muito para ser feito. As medidas precisam ser olhadas com muito cuidado para que não sejam só iniciativas efêmeras, e que não sejam descontinuadas. Espero essencialmente isso para 2025, uma continuidade de iniciativas e que se atentem a tudo aquilo que ainda não deu tempo de pensar e retomar".

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