Parecer sustenta que cautelar contra Fox atenta contra liberdade econômica e neutralidade

Um novo parecer apresentado à Anatel no contexto do caso Claro vs. Fox, em que a agência aplicou uma cautelar contra a Fox pela oferta diretamente ao consumidor, pela Internet, de canais lineares, desenvolve uma nova linha de argumentação no caso: a de que a agência estaria agindo de maneira inconstitucional ao limitar a atividade econômica. O parecer, contratado pela Abert (Associação Brasileira de Rádio e TV) e assinado pelos advogados Caio Mário da Silva Pereira Neto e Ronaldo Lemos, ambos do escritório Pereira Neto & Macedo Advogados, lembra que a agência deve obedecer a Lei 13.655/2018, que exige das autoridades "que a motivação das decisões deverá considerar a contextualização dos fatos, a congruência entre as normas e os fatos, bem como as consequências práticas da decisão que forem possíveis de serem vislumbradas diante dos fatos e fundamentos apresentados no caso concreto".

Para os advogados, ao enquadrar a disponibilização independente de conteúdos audiovisuais lineares na Internet como se fossem SeAC, a agência estaria agindo não apenas em desacordo como a legislação de telecomunicações, como também de maneira "indesejável do ponto de vista econômico, já que tem o potencial de barrar novos arranjos benéficos ao consumidor". Para os pareceristas, "uma interpretação que expandisse a aplicação da Lei do SeAC para todo e qualquer fluxo de conteúdo linear Over The Top implicaria enorme restrição a negócios inovadores, limitando alternativas dos usuários e engessando indevidamente um mercado em franca transformação". Eles lembram que mesmo com a evolução dos serviços de Internet, "a TV por assinatura continua existindo como uma alternativa importante no mercado". Para os pareceristas, "a Anatel não detém competência para interpretar o conceito de serviço de telecomunicações para além daquilo que foi definido pelo legislador, e a  Constituição Federal, o qual estipula ser "assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei". 

O documento relembra ainda que a MP da Liberdade Econômica (MP 881/2019)  reforça a proteção constitucional à livre iniciativa "ao enfatizar a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas e a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício das atividades econômicas, como princípios norteadores da atuação do Estado como agente normativo e regulador". Para os advogados, "tal restrição artificial criada por meio de uma interpretação duvidosa, além de inconstitucional por violar a livre iniciativa, poderia instituir uma barreira artificial à entrada no mercado audiovisual, restringir a pressão competitiva exercida por provedores de SVA e reforçar o poder de mercado dos atuais prestadores de SeAC". Para eles, a MP nº 881/2019 prevê como dever da administração, no exercício da regulamentação normativa, "evitar o abuso do poder regulatório, ao criar de forma indevida reserva de mercado e redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios".

Leis coerentes

Mas a análise dos advogados vai além da questão da liberdade econômica. Na verdade, a premissa da argumentação é de que a Lei Geral de Telecomunicaçòes e o Marco Civil da Internet dão plena sustentação à oferta de conteúdos no modelo OTT, como serviços de valor adicionado, e que existiria um equívoco na interpretação da Anatel de que a Lei do SeAC tra uma neutralidade tecnológica.

Para os pareceristas, a análise da tramitação da Lei do SeAC deixaria claro que o propósito do legislador foi trazer uma neutralidade legal entre as tecnologias de distribuição de TV paga existentes (cabo, MMDS, DTH, IPTV e TVAs), mas não incluir a oferta de serviços via Internet como Serviço de Acesso Condicionado. "O cerne da proposta, no que tange à neutralidade tecnológica, é justamente tratar todas as prestadoras de serviço de telecomunicações, independentemente da tecnologia utilizada para a gestão de suas redes e transmissão dos conteúdos, da mesma forma. Mas sempre partindo da premissa de que as prestadoras reguladas controlam a infraestrutura de transmissão, qualquer que seja a sua tecnologia de suporte".

Este é o ponto central do argumento já trazido pela Abert pela Abratel, reforçado pelo parecer de Caio Mário Pereira Neto e Ronaldo Lemos: um serviço de telecomunicações pressupõe o controle de uma rede no processo de emissão, transmissão e recepção. O uso desta rede, sem o seu controle, é claramente definido pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) como SVA. E, segundo o parecer, não há como dizer que a Lei do SeAC (Lei 12.485/2011), mesmo sendo posterior à LGT, tenha revogado esta definição, ou a substituído,  porque a a legislação de TV paga não redefiniu o que é um serviço de telecom. Ao contrário, deixou claro que o SeAC é uma modalidade de serviço de telecomunicações. 

O parecer afirma que "a prestação de um serviço de telecomunicações depende de uma determinada infraestrutura de rede, sobre a qual o prestador do serviço detenha ingerência, para que haja emissão, transmissão ou recepção de informações", e que "qualquer serviço que use redes de telecomunicações para entregar uma funcionalidade adicional ao usuário (incluindo, mas não se limitando ao conteúdo audiovisual), mas sem controlar redes de transmissão, deve ser considerado um serviço de valor adicionado". Para os pareceristas, a disponibilização de conteúdo audiovisual na Internet, seja ela linear ou não, "mesmo utilizando-se de rede de telecomunicações de terceiros como suporte para o seu o provimento, constitui-se como serviço OTT, i.e., um SVA e, não um serviço de telecomunicações (caso do SeAC), restando afastada a competência reguladora da Anatel".  Segundo esta análise, diferentemente do provimento de conteúdo audiovisual a assinantes do próprio SeAC, que contratam um serviço de telecomunicações associado à entrega de um conteúdo audiovisual, "o usuário da Internet contrata dois serviços distintos e separados: um serviço de disponibilização de conteúdos na Internet (SVA) e um serviço de telecomunicações que torna viável sua conexão à internet (Telecomunicações)".  

Quando se está diante de um serviço que não é prestado na camada da infraestrutura, dizem os advogados, "não pode a Anatel afirmar que se trata de serviço de telecomunicações, contrariando por via administrativa o que o legislador definiu como essencial para ser considerado um serviço de telecomunicações". Para eles, qualquer interpretação ampliativa do conceito de distribuição "que venha a incluir em seu escopo a mera atividade de disponibilizar conteúdo idêntico àquele distribuído nos canais de TV por assinatura, independentemente de se tratar de serviço de telecomunicações ou não (fazendo com que essa atividade configure SeAC em função somente do conteúdo disponibilizado), é, em verdade, teratológica e ilegal. Tal interpretação, na prática, implicaria atribuir à Anatel a competência de regular conteúdo

O regulamento do SeAC prevê que a prestadora deve tornar a sua rede disponível, manter infraestrutura em território nacional e deter gerência na rede do serviço". Neste ponto, os pareceristas parecem querer responder à análise do ex-ministro do Supremo, Ayres Britto, que justamente levanta a tese de que o SeAC é um serviço de telecomunicações dissociado da rede, em parecer apresentado no mesmo processo e encomendado pela Claro.

Eles lembram ainda que se classificado como telecomunicações, os provedores de serviços de TV paga pela Internet teriam que cumprir o regulamento de qualidade da Anatel em relação ao controle da rede e que isso feriria o princípio da neutralidade de rede previsto no Marco Civil da Internet. "O prestador de serviço OTT não possui o poder de escolher a forma como o seu conteúdo será entregue ao usuário, o que compete ao provedor do serviço de conexão à internet em banda larga contratado pelo usuário de forma independente. Veja-se que este último, sendo provedor de conexão à Internet, está submetido à obrigação de neutralidade de rede, prevista no Marco Civil da Internet", afirma o documento. O provedor de conexão é, portanto, para fins da LGT e do Marco Civil da Internet, um prestador de serviços de telecomunicações, enquanto o provedor de aplicações de Internet é um prestador de SVA, concluem.

Evento

O ambiente regulatório da TV por assinatura será discutido no próximo PAYTV Forum, dia 30 e 31 de julho, em São Paulo. Mas informações sobre o evento pelo site www.paytvforum.com.br.

Entenda o caso

As áreas técnicas da Anatel, no dia 13 de junho, emitiram uma cautelar impedindo a Fox de comercializar diretamente ao consumidor os seus canais lineares por meio da plataforma Fox+ (Fox Plus). Trata-se do modelo direct-to-consumer, que tem se mostrado bastante comum na estratégia das programadoras de TV paga tradicional como forma de se adaptarem a uma nova geração de consumidores e novos provedores de conteúdo que priorizam os conteúdos entregues pela Internet. O processo foi iniciado a partir de uma reclamação da Claro no final do ano passado, alegando assimetrias de regras na oferta de canais diretamente ao consumidor em relação àqueles ofertados a partir de operadoras de TV paga. A cautelar da Anatel diz que a programadora Fox deverá utilizar uma empresa outorgada no Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) para autenticar o acesso aos canais, assegurando o cumprimento das obrigações previstas na Lei do SeAC (Lei 12.485). Até o dia 15 de agosto a Anatel tem também uma tomada de subsídios aberta sobre o tema, para então o processo ser levado ao Conselho Diretor para uma decisão de mérito. As superintendências da agência já manifestaram, em entrevistas exclusivas aqui aqui, sobre os conflitos de interpretação entre a Lei do SeAC, Lei Geral de Telecomunicações e Marco Civil da Internet, e sobre os desafios conceituais em torno do caso. Além disso, o debate se insere em um contexto ainda mais complexo, pois em outro front a Anatel ainda analisa a aplicação da Lei do SeAC no caso da fusão entre AT&T e Time Warner (hoje Warner Media), cuja resolução depende agora do conselho diretor.

A agência também já se manifestou, inclusive ao Senado, sobre a necessidade de ajustes na Lei do SeAC. Importante destacar que a decisão cautelar é apenas sobre a Fox (não afetando outros casos similares, apesar do precedente), e tampouco afeta conteúdos sob-demanda (como aqueles oferecidos pela própria Fox, Netflix, Amazon etc), conteúdos ao vivo esporádicos (como jogos de futebol) ou conteúdos ofertados gratuitamente pela Internet. O assunto é polêmico e está dividindo a indústria de TV paga. Do lado da tese apresentada pela Claro e reconhecida, em parte, pela cautelar da Anatel, estão os programadores produtores independentes nacionais, a ouvidoria da agência e a associação NeoTV, que representa pequenas operadoras e TV paga e alguns ISPs de maior porte. Contra a posição da agência estão as gigantes de Internet, os grande grupos de comunicação brasileiros (especialmente os radiodifusores) e as programadoras estrangeiras e grandes produtores de conteúdo internacionais.

No último dia 3 de julho a Fox conseguiu, junto à Justiça Federal de Brasília, a suspensão liminar da cautelar da Anatel. A juíza Flávia de Macedo Nolasco entendeu que a agência não havia conseguido demonstrar os requisitos para a medida cautelar.

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