Nesta quarta-feira, dia 23 de outubro, a programação do SAPI, o mercado audiovisual do Centro-Oeste, que acontece em Goiânia (GO) até sexta, 25, recebeu talentos do audiovisual da região para compartilharem seus processos de trabalho no debate "Linguagem e Gênero – A Autoria no Centro do Brasil", que contou com a moderação de Deivid Rodrigues, curador do evento. Uma mesa que dá espaço a autores-realizadores do território já é uma tradição na programação do Mercado.
Um dos grandes destaques recentes da produção audiovisual do Centro-Oeste é "Oeste Outra Vez" (2024), do diretor e roteirista Erico Rassi, que venceu o prêmio de Melhor Longa-Metragem Brasileiro no último Festival de Cinema de Gramado. O filme, rodado na região da Chapada dos Veadeiros, finaliza sua trajetória de festivais – está, inclusive, na programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – e em breve estreia nos cinemas. Rassi, que nasceu no interior de Goiás, também é montador. Seu primeiro longa foi "Comeback" e, com os seus trabalhos, já ganhou mais de 40 prêmios em festivais nacionais e internacionais.
No painel, ele contou que "Oeste Outra Vez" partiu de uma vontade de ambientar nesse cenário de faroeste, em Goiás, uma história que tratasse da crise da masculinidade. "Depois que entendo o ponto de partida de um filme, faço muita pesquisa, entrevisto muita gente, sem um recorte num primeiro momento, e vou para algum lugar que acredito que tenha a ver com a ambientação da história e fico imerso ali durante um tempo. Começo a construir os personagens a partir dessas conversas com as pessoas. E tem um outro tipo de pesquisa também, que é a literária. No caso desse filme, veio de 'Duelo', um conto de 'Sagarana', de Guimarães Rosa. Tirei de lá um 'fiapo' narrativo, que eram dois homens se matando por uma mulher que não ligava para eles. Depois, ainda fiz uma pesquisa de locação pessoalmente. Incorporo nos roteiros coisas que vejo nessas locações. Por fim, uma pesquisa iconográfica. Na biblioteca do Instituto Moreira Salles, fotografei livros que traziam imagens do sertão brasileiro. Foi uma construção múltipla, mas nunca deixando de lado o coração da história, que era falar desses homens frágeis e violentos sofrendo com a ausência do feminino".
O diretor e roteirista revelou que, apesar de ser bastante rígido com o texto – "eu penso o texto com uma certa métrica, há diálogos que se repetem, por exemplo" – ele permite improvisos nas ações e movimentações de cena. "No ensaio com os atores já incorporo bastante coisa, muito do que eles sugerem. Sinto que a parte do filme que tenho mais controle e consigo ser criativo é no roteiro e na montagem. No meio, tem a filmagem, onde sinto que o controle não está tanto na minha mão. Então tento me preparar ao máximo para essa etapa e controlar as outras".
Já Rafaela Camelo, diretora e roteirista brasiliense, tem entre os destaques de sua trajetória o curta "O Mistério da Carne", que estreou em Sundance 2019 e ganhou os prêmios de melhor filme no Biarritz Amérique Latine e no festival New Directors, New Films. Ela é integrante da Rede Paradiso de Talentos e, em 2023, foi apontada pela Variety como um dos novos talentos do cinema brasileiro.
Atualmente, Camelo finaliza seu primeiro longa-metragem, "Sangue do Meu Sangue", uma coprodução entre Brasil e Chile, ganhador do Prêmio Cabíria de 2019. As protagonistas do filme são duas meninas de dez anos de idade que, de diferentes maneiras, encaram questões relacionadas à vida e à morte. Enquanto uma é filha de enfermeira e passa suas férias no hospital, a outra está com a bisavó em estágio terminal e quer realizar o último desejo dela, que é voltar ao sítio onde morava. Sobre seu processo de criação, ela comentou: "Normalmente começo a criar a partir de uma cena. Depois, vou entendendo quem são os personagens, se aquela cena é o despertar da história ou se estaria no final dela… É um processo de ir preenchendo lacunas. Vou escrevendo e entendendo. E, no caso desse filme, muitas cenas foram geradas nos ensaios, especialmente por conta das crianças, que estavam ali e faziam coisas naturalmente. Cenas super bonitas, que estão nele, surgiram assim. Por isso é importante se manter atento para o que pode vir enquanto o filme está acontecendo. À medida em que as pessoas da equipe vão sendo tomadas pela história, novas possibilidades podem surgir".
Marcas autorais
Os dois refletiram sobre o caminho de encontrar sua voz e entender essa visão autoral. Para Camelo, essa autoria foi sendo desenvolvida aos poucos, a partir dos seus primeiros curtas-metragens, e ainda segue em desenvolvimento. "Com esse novo filme, começo a compreender melhor onde estão minhas obsessões e preferências, que passam por contar histórias que coloquem as mulheres em primeiro plano, histórias de mulheres sob uma perspectiva amorosa. De amizade, de mãe e filha. E me influencia muito o lugar onde estamos vivendo. Também sou fã de literatura latino-americana, especialmente essa coisa fantástica e gótica do continente. É um ponto de vista que faz sentido pra mim. Minhas próximas histórias têm um pouco dessa relação de poderes que se estabelece sobre os eixos. Gosto de um terror que não é de zumbi, vampiro, e sim da realidade". Ela acrescentou que, mesmo quando não se trata de um projeto próprio – de um outro roteirista ou diretor, por exemplo – é importante que o autor entenda o porquê dele estar ali. Por que foi chamado? E por que aceitou? "A partir daí, você reflete de que forma pode agregar, entendendo que a voz final não é sua, mas que existe um interesse na sua personalidade".
Para Rassi, a construção da autoria nem sempre vem de um jeito consciente. "A gente não busca ser um autor ou um artista", observa. "É uma construção que vai sendo feita quase que naturalmente, à medida em que lutamos para que a nossa visão prevaleça. A produção cinematográfica brasileira tem vários problemas, mas uma coisa boa é que nesse tipo de filme que fazemos, com dinheiro público, incentivado, o diretor tem controle e autoridade sobre ele, sobre o corte final. E isso não é comum em alguns outros mercados. Eu não fui perseguindo esse caminho de autor, mas brigo obsessivamente para manter minha visão final do filme", afirma. Sobre os temas de seus projetos, ele enxerga que a masculinidade é algo presente – não necessariamente como ponto central das histórias, mas sempre as permeando de alguma forma.
Além disso, ambos concordam que essa busca autoral é muito interna, e que não deve partir de análises de tendências. "Não tento identificar qual é a moda, o que as pessoas estão querendo. Essa deve ser uma resposta interna, sobre o que você quer contar naquele momento", disse Rassi. Camelo completou: "O processo de um longa, por exemplo, é demorado e leva anos. Então se não for uma coisa que te importe a ponto de você se dedicar por muito tempo, o projeto não vai ter fôlego. Não dá pra fazer filme do tema que todo mundo está fazendo. Quero entender o que está me mobilizando".