Refundação da Spcine

(Foto: Pixabay)

O mercado cinematográfico paulistano é o foco central da Spcine, cuja principal missão é impulsionar e potencializar o audiovisual paulista, tanto do ponto de vista econômico quanto criativo. No entanto, a produção no interior do estado historicamente tem sido bastante limitada, mesmo apresentando o potencial para se estabelecer como o terceiro maior polo audiovisual do Brasil.

O interior paulista ganhou destaque, inicialmente, com Amácio Mazzaropi nas décadas de 1960 e 1970 e, mais tarde, entre 2007 e 2014, com o Polo de Paulínia. Durante esse período, esse polo atraiu e apoiou a realização de 44 filmes de relevância nacional e internacional, resultado de uma iniciativa visionária de um prefeito da região metropolitana de Campinas. Se essa estratégia tivesse sido promovida pelo governo estadual, certamente poderia ter conseguido consolidar-se como um grande polo do audiovisual brasileiro.

O primeiro marco significativo da produção audiovisual paulistana, apesar de certo desconhecimento, ocorreu no final do século passado, conforme destaca Maria Rita Galvão em seu clássico "Crônica do Cinema Paulistano". Mesmo com as controvérsias de José Medina, que, junto a Gilberto Rossi, produziu alguns clássicos do cinema mudo, o ressurgimento do cinema de ficção só aconteceria em 1949, com a fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, seguida por Maristela e Multifilmes.

Embora tenhamos visto alguns filmes muito bem-sucedidos nas bilheteiras, como "Caiçara", "Sai da frente" e "Cangaceiro", outro período importante foi a produção da Boca do Lixo, que, nos anos 1970 e 1980, chegou a representar 40% da produção brasileira e uma fatia semelhante da receita de bilheteira. Foi uma época marcada pela produção de conteúdos de baixo custo e qualidade acessível. No entanto, a crise da década de 1990 foi severa, e a prevalência do filme pornográfico desfez os sonhos de muitos cineastas.

A Retomada do Cinema Brasileiro buscou inaugurar uma nova fase, trazendo alguns exemplos significativos que, entretanto, não foram suficientes para elevar o cinema paulistano a uma posição de destaque no cenário nacional e internacional.

Nesse contexto, surgiram no Rio de Janeiro a RioFilme, em 1991, e a Ancine, criada em 2001 pela Medida Provisória 2228-1. Ambas eram extensões da extinta Embrafilme. No que se refere às relações entre o Estado e o cinema no território bandeirante, o cenário estava atrelado às leis de incentivo, aos editais das estatais locais e aos recursos das Secretarias de Cultura (municipal e estadual). É importante ressaltar que a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo inaugurou este segmento estatal em 1970, marcando o início de seus 55 anos de atuação. A criação de uma empresa municipal remonta a 1994, quando cineastas pleitearam a fundação da São Paulo Filmes, em moldes similares à RioFilme, que, naquele momento, era a grande válvula de escape do cinema brasileiro de maneira geral. No entanto, esse projeto nunca avançou nos âmbitos legais necessários para sua legitimação. Como resultado desse panorama, entre 2013 e 2014, as produtoras cariocas detinham 94% do mercado brasileiro de venda de ingressos em salas de cinema.

Esse pleito só se concretizou com a promulgação da lei nº 15.929, de 20 de dezembro de 2013, que estabeleceu a empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo, a Spcine. Durante o ano de 2014, foram implementadas as ações necessárias para que a Spcine iniciasse suas atividades em 2015; portanto, este ano marca o cumprimento do seu primeiro decênio. De acordo com seu diploma legal, os principais objetivos da Spcine são:

  • a) Impulsionar e potencializar econômica e criativamente o audiovisual paulista; 
  • b) Promover seu desenvolvimento e o ambiente cultural e social; 
  • c) Firmar parcerias com o Estado de São Paulo; 
  • d) Outros objetivos complementares.

No período de 2014 a 2025, a empresa foi administrada por cinco presidentes diferentes. Pode-se afirmar que a Spcine não conseguiu alcançar seus objetivos originais passados dez anos de sua fundação. A empresa nunca esteve à altura da grandeza de São Paulo, a maior metrópole da América Latina, seja por seu tímido orçamento, por sua modesta ambição, ou pela falta de visão de alguns de seus gestores e/ou dos governantes da metrópole.

A gestão de Alfredo Manevy (2015-2016), que foi responsável pela implementação da Spcine, trouxe à tona um problema que permanece sem solução: a internalização da São Paulo Film Commission. Esse órgão deveria ser uma autarquia municipal, com orçamento e poderes legais próprios, em uma situação análoga à da Ancine, porém invertida. A Film Commission, assim, possui finalidades distintas das da Spcine e consome recursos que poderiam ser direcionados para o fomento.

Há uma excessiva alocação de recursos orçamentários nas atividades-meio e uma grave falta de eficiência administrativa na execução dos editais de fomento. Em 2024, a Spcine deixou de executar R$ 11 milhões em recursos federais, possivelmente porque os gestores estavam demasiado ocupados realizando inúmeras viagens ao exterior.

Outra atividade bastante questionável foi a criação e expansão do circuito Spcine, que possui uma infraestrutura de alto custo, atualmente contando com 32 salas de exibição de filmes. A proposta de programação visa aproximar o público geral dos padrões de consumo do cinema comercial, ou seja, dos filmes exibidos em shopping centers, que são dominados pelos grandes blockbusters.

Isso ocorre sem qualquer preocupação em traçar um perfil histórico do cinema brasileiro, o que poderia contribuir para a formação de espectadores mais sintonizados com o nosso cinema e com o cinema independente internacional. Além disso, as taxas de ocupação das salas, desde sua inauguração, têm sido baixas. Ademais, é necessário questionar quem são os espectadores dessas salas e como eles têm acesso a essa programação. Isso resulta em um alto custo de implantação e manutenção, cujos efeitos são praticamente imperceptíveis. Na Argentina, o circuito INCAA, corresponde a 10% do publico de cinema em seu território. 

Diante da ineficácia na formação de espectadores mais críticos, houve recentemente uma tentativa de implementar um perfil cineclubista, que foi conduzida por jovens identitários sem o devido conhecimento das realidades que envolvem a atividade. Quantos cineclubes surgiram e qual foi o investimento feito nessa iniciativa sem resultados significativos? A falta de profissionalismo e o mau uso dos recursos públicos precisam ser urgentemente reavaliados.

Os recursos de investimento do capital original da Spcine não são a fundo perdido, mesmo que seu orçamento total seja insuficiente para alavancar uma atividade com amplo escopo comercial e econômico.  Contudo, o que temos observado são ações que geram recorrentes prejuízos em seus balanços. Isso ocorre porque os filmes apoiados pela empresa, na maioria das vezes, conseguem destaque apenas em festivais internacionais e nacionais, mas praticamente não apresentam repercussão nas bilheteiras, o que agrava ainda mais o problema, pois a Spcine entra nas campanhas de distribuição e divulgação dessas obras. Além disso, há um dado histórico que permanece como um tabu: os filmes paulistanos têm melhor audiência no Rio de Janeiro do que na própria cidade de São Paulo, com algumas exceções.

Identitarismo e políticas estatais audiovisuais: o caso Spcine (2021-24)

A Spcine, somando todos os elementos citados acima, conseguiu diminuição de sua política original, tornando-se um órgão quase inócuo na gestão dos investimentos da produção audiovisual paulista. Atualmente, a empresa se encontra em uma encruzilhada, devido à adoção de uma política excludente, embasada em uma ideologia que restringe sua atuação em busca de suas prerrogativas originais. A armadura ideológica do wokismo ou identirarismo inibe a inserção de elementos que originalmente ofereciam uma abordagem mais ampla e mercadológica do mercado audiovisual em sua totalidade e diversidade. Na realidade, a Spcine tem se mostrado como uma vanguarda do atraso, ao excluir a maioria e priorizar a inclusão da minoria.

O valor de um projeto deve ser avaliado por suas qualidades intrínsecas, sejam artísticas ou comerciais, sendo o ideal que ambas estejam presentes. Editais voltados para políticas wokistas ou identitárias não podem se tornar regra; devem ser exceções, para que não caiamos na "tiradentização" do cinema paulista. São Paulo possui uma diversidade e amplitude que refletem a de um país, tanto em sua cidade quanto em seu estado. Não podemos nos deixar levar por essa armadilha.

Por exemplo, a cinematografia mais celebrada da América Latina não possui esse perfil; refiro-me ao cinema argentino. Para ilustrar, tomemos dois filmes recentes que receberam apoio da Spcine: "Baby" e "Hotel Destino". Embora tenham conquistado visibilidade em Cannes, não obtiveram repercussão digna de nota em suas respectivas trajetórias nas salas de cinema, mesmo sendo obras de alta qualidade. O incensamento em torno dessas produções, impulsionado por uma crítica alinhada a essa perspectiva identitária, não ressoa junto ao espectador comum, que, na realidade, compõe a maior parte do público pagante nas salas de cinema.       

A pergunta que não quer calar é: por que não vemos a logomarca da Spcine em filmes relevantes e populares? Por que a Spcine não cria linhas de apoio direto para produtoras que se demonstram vencedoras no mercado? Isso ocorre em nome de um republicanismo que se fundamenta em políticas implementadas pelo lulismo, que, em 20 anos de poder, não mudaram as condições de um país subdesenvolvido. É válido lembrar que a Embrafilme nunca teve editais e chegou a ser a segunda maior distribuidora em atividade no mercado cinematográfico, dedicando-se exclusivamente à distribuição de filmes brasileiros.   

Para não nos alongarmos, faremos uma análise da plataforma de streaming Spcine Play, cujos números de audiência beiram o ridículo, apesar de ser gratuita. Sua programação tem um caráter claramente wokista/identitária, com a única exceção sendo os filmes do comediante Mazzaropi, que é a maior bilheteira do cinema paulista. Faz sentido continuar investindo nessa plataforma?

Se a Spcine realmente deseja afirmar sua relevância, deve repactuar sua relação com o meio cinematográfico e audiovisual paulistano e se tornar uma verdadeira representante do estado. A parceria com o governo estadual é fundamental; se bem-sucedida, São Paulo poderá contar com a segunda maior agência de fomento do país, o que seria a verdadeira vocação da Spcine. Isso engrandeceria imensamente sua atuação. Para consolidar essa união entre estado e capital, não seria o caso de considerar a refundação da empresa, dando-lhe o nome de São Paulo Filmes?

São Paulo tem uma população, um PIB e um circuito de exibição do tamanho da Argentina. Contamos com dezenas de escolas de cinema e audiovisual, grande infraestrutura instalada, muitos especialistas de mercado, abundantes quadros técnicos capacitados e artistas de primeira linha. É necessário ampliar as tendências, tornando-se mais generosa com aqueles que construíram e continuam a construir uma arte que valoriza a pluralidade, a diversidade e a capacidade de dialogar com o público em seus mais variados segmentos.

* Ricardo Fadel Rihan é produtor e ex-secretário do audiovisual
** André Gatti é professor universitário, pesquisador, ator e diretor

5 COMENTÁRIOS

  1. O Tela Viva já foi melhor. Publicar em sua página um texto que acusa uma estatal (bem sucedida, diga de passagem) de atuação ideológica mas usando vários outros argumentos também ideológicos mostra que seu conselho editorial precisa melhorar em termos jornalísticos ao invés de ajudar amigos com espaço para destilar inveja. Decepcionante

    • Agradeço sua opinião e a oportunidade de esclarecer alguns pontos sobre esta e qualquer publicação na área de opinião deste portal. A Tela Viva preza pelo debate plural e democrático, e por isso abre espaço para diferentes vozes e perspectivas, mesmo quando não concordamos com elas. Todo saber, toda ação e toda opinião são ideológicas.

      O texto em questão foi assinado por dois profissionais com vasta experiência no setor audiovisual e que se declaram de campos ideológicos opostos. Isso demonstra justamente a nossa busca por apresentar diferentes visões sobre temas pertinentes ao audiovisual.

      Acreditamos que o contraditório é fundamental para a construção de um debate qualificado. O espaço está aberto a análises e opiniões que enriqueçam qualquer discussão, de forma franca e respeitosa.

      Atenciosamente,

      Fernando Lauterjung, editor adjunto de Tela Viva

  2. Esse texto é um desserviço! Os dados e as informações contidas possuem várias imprecisões, como tratar a Sp Cine como Agencia ou sobre a Embrafilme ter sido apenas uma distribuidora. Poderia ficar horas apontando-os, erros que vao desde e história e natureza da SP CINE, até manifestações que distorcem os fatos com clara vontade política, retrograda, que desconhece as necessidade do Audiovisual Brasileiro: "Diante da ineficácia na formação de espectadores mais críticos, houve recentemente uma tentativa de implementar um perfil cineclubista, que foi conduzida por jovens identitários sem o devido conhecimento das realidades que envolvem a atividade (…)" Identitarios??? "Na realidade, a Spcine tem se mostrado como uma vanguarda do atraso, ao excluir a maioria e priorizar a inclusão da minoria." Maioria? Que maioria? Mulheres não são maioria? Pessoas negras não são maioria? Onde estão os dados para embasar essas afirmativas? Os autores se consideram "maioria"? Onde homens brancos, como os autores, foram excluídos do fomento da SpCine? Se minimamente tivessem um compromisso com a "verdade" veriam que os dados publicados por fontes confiáveis de pesquisa demonstram que o mercado cinematográfico ainda exclui mulheres, pessoas não brancas, e pessoas não cis. O que estamos vendo neste pretenso "artigo" é um flagrante caso da adoção
    de um discurso trumpista, disfarçado de defesa da democracia, o que não é , e que se encontra na contramão das necessidades do cinema brasileiro.

    • Agradeço sua opinião e a oportunidade de esclarecer alguns pontos sobre esta e qualquer publicação na área de opinião deste portal. A Tela Viva preza pelo debate plural e democrático, e por isso abre espaço para diferentes vozes e perspectivas, mesmo quando não concordamos com elas. Todo saber, toda ação e toda opinião são ideológicas.

      O texto em questão foi assinado por dois profissionais com vasta experiência no setor audiovisual e que se declaram de campos ideológicos opostos. Isso demonstra justamente a nossa busca por apresentar diferentes visões sobre temas pertinentes ao audiovisual.

      Acreditamos que o contraditório é fundamental para a construção de um debate qualificado. O espaço está aberto a análises e opiniões que enriqueçam qualquer discussão, de forma franca e respeitosa.

      Atenciosamente,

      Fernando Lauterjung, editor adjunto de Tela Viva

  3. Ótimo posicionamento dos dois autores! Chega de FARRA com o Nosso $$$. Chega de "Woke": invenção da CIA-EUA que nada tem a ver com a nossa Brasilidade. É Lula 2026 contra o imperialismo made in USA e seus capangas tupiniquins como Ricardo Nunes, transformando nosso cinema em uma lixeira ideológica. Chega de vassalagem, o futuro é o Brics!

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui