A Saturnema Filmes é uma produtora audiovisual baiana gerida por mulheres negras, composta por uma equipe 100% negra, e especializada em ficção científica. Sócia fundadora da empresa, a cineasta Ana do Carmo já acumula mais de 20 premiações nacionais e internacionais. Atualmente, está em fase de desenvolvimento para a gravação do seu primeiro longa metragem: "Sol a Pino", um sci-fi afrofuturista. "É revolucionário realizar o sonho dos nossos ancestrais. Entender que o cinema de gênero também é pra pessoas como eu foi essencial para alçar novos voos e prospectar futuros pra minha carreira que eu nunca imaginei possíveis. Além da liberdade criativa, o que mais amo no meu trabalho com o afrofuturismo, a fantasia e o terror é a possibilidade de transformar o ordinário em extraordinário. E foram esses gêneros que me ajudaram a encontrar a minha voz, minha assinatura e minha identidade enquanto artista", afirma.
"O cinema de gênero sempre esteve presente na minha vida e a cultura pop me formou enquanto cinéfila e cineasta. Quando eu entrei na faculdade e tive a oportunidade de fazer meu primeiro filme, de início não tava nos planos fazer cinema de gênero, mas na ilha de edição acabei incorporando de forma muito orgânica elementos do suspense. E desde que o cinema de gênero me encontrou, a gente nunca mais se desgrudou", completa.
Desafios da produção de gênero
Para além do grande público, e muitas vezes o próprio mercado, ainda não associar o audiovisual brasileiro a produtos de gênero, como fantasia, terror e ficção científica, apesar de produções do tipo serem feitas no país há anos, é ainda mais raro pensarem em mulheres produzindo esses conteúdos. A partir dessa ideia, Ana reflete: "Obras audiovisuais, sobretudo de gênero, geralmente têm altos orçamentos e desafios de produção, financiamento e tecnologia no Brasil. Percebo que muitos autores independentes têm optado pela literatura como uma primeira possibilidade de janela para depois tentar adaptar suas obras para o audiovisual. Em projetos audiovisuais de baixo orçamento, geralmente precisamos trazer soluções criativas e metodologias próprias de produção, em meio à precarização, para viabilizar histórias ambiciosas".
Ela explica: "Antes de fazer o longa, às vezes precisamos fazer uma versão teaser ou de curta-metragem para provar que temos domínio do projeto. Antes de fazer uma série, precisamos fazer uma websérie, ou encontrar um jeito de filmar o piloto para tentar chamar a atenção de investidores. Se batemos nas portas dos streamings nos colocando como proponentes e autoras, as portas são fechadas na nossa cara ou sequer abertas". E conclui: "Portanto, estruturalmente, nós pessoas brasileiras, não brancas, mulheres, LGBTQIAPN+, fora do eixo Sul-Sudeste, estamos muito mais distantes de fazer o cinema de gênero ser uma realidade e não uma exceção nos nossos territórios. Nos afirmarmos enquanto Saturnema Filmes, uma produtora negra, jovem, nordestina, que faz cinema de gênero, é não somente uma realização pessoal, mas um posicionamento político".
Afrofuturismo
E falando especificamente sobre os projetos, Ana do Carmo está trabalhando em "Sol a Pino". Trata-se de um longa-metragem de sci-fi que ela desenvolve desde 2020 e que será rodado no ano que vem. "É uma história de amor entre duas mulheres negras da terceira idade, uma narrativa que toca em temas como luto, maternidade e, sobretudo, família. Através do contraste entre as memórias dos que se foram e as tecnologias de amparo do amanhã, o projeto bebe muito do conceito do afrofuturismo", conta.
Ela destaca o afrofuturismo justamente como uma janela da ficção científica que permite acessar a cosmovisão de pessoas negras acerca do futuro, entendendo o passado como parte integrante dele. "Obras como 'Pantera Negra', 'Atlantics', 'Clonaram Tyrone', 'Iwájú' e 'Homem Aranha: Através do Aranhaverso' foram grandes cases de sucesso nesse gênero, mas ainda existe uma grande resistência, sobretudo no Brasil, de apostar em histórias ambiciosas, escritas e produzidas por pessoas negras", alerta.
Profissionalização, qualificação e especialização
Ao lado de Ana do Carmo na sociedade da Saturnema Filmes está a produtora-executiva Rubian Melo. Também em entrevista exclusiva para TELA VIVA, Melo reforça a produção negra de cinema de gênero no Brasil como um "ato de resistência criativa e cultural", e parte de um caminho bastante desafiador, mas também com bastante potencial para transformar e enriquecer o panorama cinematográfico nacional e global. "Eu percebo que existe um movimento de interesse nesses conteúdos de fora para dentro – o mercado internacional tem recebido os filmes e séries brasileiros de gênero e esse reconhecimento fortalece e abre margem para o desenvolvimento de novos projetos nesse segmento. A gente consome o cinema de gênero e acreditamos nas narrativas que estamos criando, que muito se assemelha com a realidade global vezes distópica e vezes fantástica. A tecnologia avança aceleradamente, e isso abre margem para gente imaginar possibilidades futuras ao mesmo tempo que estamos buscando fincar nossas raízes históricas e culturais. O que estamos querendo fazer é criar narrativas em que nos enxerguemos de forma positiva e reflexiva e que essa imagem seja fortalecedora para as próximas gerações que vierem também", define.
Diante dos desafios impostos, a produtora aposta na profissionalização, qualificação e especialização para se fortalecerem enquanto empresa, acreditando no crescimento e expansão de público brasileiro e para além das fronteiras, já que pesquisas, listas e suas experiências no mercado internacional apontam o consumo de filmes e séries de gênero como uma tendência. "E não só fazemos os conteúdos de gênero em si, mas buscamos incorporar elementos da nossa cultura e questões sociais para potencializar as narrativas e tornar os projetos atraentes para o público consumidor. Acredito também na retomada das políticas públicas para ajudar na estruturação de financiamento dessas obras potenciais para levá-las ao público", pontua.
Próximos projetos
Para além do filme "Sol a Pino", a Saturnema tem alguns outros planos e projetos em vista. Atualmente, está em fase de pós-produção de um longa, dirigido por Ana do Carmo ao lado de quatro outras diretoras, em parceria com a Daza Filmes, produtora do Rio de Janeiro. A produtora também está liderando o Núcleo Criativo Películas Negras, onde desenvolve projetos de longas e séries diversos voltados para o cinema de gênero, com protagonismo negro e feminino. "É minha primeira experiência como chefe de roteiro e conseguimos montar uma sala de roteiro toda negra, com profissionais de diversas regiões e backgrounds", celebra Ana. E além disso, em suas redes sociais, a Saturnema cria conteúdo interdisciplinar, com curiosidades de bastidores de filmes e séries, indicações de obras e dicas para quem deseja trabalhar com cinema. "Nosso objetivo maior é aproximar nosso público do universo do cinema, que por muito tempo pareceu distante", resume a cineasta.
Por fim, pensando em futuras histórias que desejam contar, Rubian afirma: "Queremos contar tudo, não queremos nos limitar quanto às possibilidades narrativas. A nossa intenção é justamente dar voz e vez para personagens que por muito tempo só serviam, apanhavam, estavam roubando, sendo presos ou mortos. O que estamos buscando é trazer novas possibilidades de realidade e empoderamento. Mostrar uma família negra feliz nas telas, que mesmo diante de questões sociais problemáticas, elas podem prosperar, porque essa é a nossa sociedade, mas ainda não é o que está à disposição para ser consumido. Queremos trazer narrativas fortes, potenciais e empoderadoras que resgatem a autoestima da sociedade".
Ana acrescenta: "Eu cresci achando que pessoas como eu nunca seriam princesas, heroínas, protagonistas, merecedoras de um final feliz. Precisamos repensar e repaginar nosso repertório cinéfilo e de construção de imagens em todos os gêneros".