Filmes nacionais com temática política são destaque na Mostra de Cinema de São Paulo

A forte presença de filmes com temática política na programação da 43ª Mostra de Cinema de São Paulo comprova como, cada vez mais, o audiovisual torna-se central para a organização das ideias em momentos de tensão. No segundo dia do Fórum da Mostra, realizado nesta quinta-feira, 24 de outubro, cineastas com longas que trazem questões políticas como assunto principal se reuniram para debater as produções. 

Paulo Caldas promove sessões na próxima semana de "Abismo Tropical", documentário gravado na Avenida Paulista nas 24 horas que antecederam as eleições presidenciais do segundo turno em 2018, que acabaram por eleger o presidente Jair Bolsonaro. "Esse filme nasceu de uma necessidade que eu senti de entender aquele momento e, principalmente, me entender em meio a tudo que estava acontecendo como profissional, cineasta, brasileiro. Pensei que produzir um filme seria uma boa maneira de fazer isso. Queria entender que angústia era aquela que eu e pessoas próximas a mim estávamos sentindo", conta. "A escolha por filmar essas horas de pré-eleição na Paulista me surgiu só dez dias antes daquele domingo. Escolhi a Avenida porque ela centraliza simbolicamente a cultura, a economia e a política em São Paulo", completa.

Com Maria Ribeiro, atriz, escritora e documentarista que exibe na Mostra "Outubro", o processo foi bastante semelhante. "Eu fiz esse filme porque não conseguia dormir. Queria entender, como se fosse numa terapia, o que estava acontecendo, decifrando aquele período de densidade atmosférica pesadíssima. Sabia que era algo sério e grave, mas não tinha certeza ainda de que tipo de filme ia fazer. Fui entendendo na prática", diz. O longa de Ribeiro também foi gravado às vésperas das eleições, em meio às manifestações contra o até então candidato Bolsonaro. Na obra, a diretora faz um paralelo entre política e amor, e aparece, ela mesma, vestida de noiva, com o objetivo de refletir para o que ela queria dizer não (em referência ao slogan "Ele não" usado nos protestos) mas também para o que ela queria dizer sim. "Queria conferir ao filme uma pegada lúdica, para falar de amor. Entendendo nossos ídolos políticos e nossos heróis. Aos poucos, a coisa foi ficando mais real, e comecei a fazer as entrevistas. Conversei com muita gente legal, como Xico Sá, Maria Rita Kehl e Marcelo Paiva", relembra.

Francisco Bosco, por sua vez, apresenta na Mostra "O mês que não terminou", documentário que analisa as manifestações que tomaram o Brasil em junho de 2013 e seus desdobramentos e consequências, passando ainda por momentos recentes e importantes para o cenário político brasileiro, como a Operação Lava Jato, a crise do lulismo, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. "Para falar do meu filme, é importante entender que ele aborda – e talvez isso não fique claro – o colapso das democracias liberais que acontece em diversos países do mundo. Nas décadas recentes, tivemos democracias liberais em diversos países. Elas se revelaram bem sucedidas na agenda liberal comportamental, mas falharam fortemente em relação à soberania popular, isto é, na sensação da população de participar ativamente de suas democracias. O que aconteceu em junho de 2013 foi causado principalmente por isso: uma crise de participação na democracia e uma falta de sentimento de representação. O filme aponta, então, para a necessidade de voltar a buscar esse equilíbrio entre os princípios liberais e a democracia popular mais ativa", explica.

Com objetivo parecido, "O Paradoxo da Democracia", de Belisário Franca, analisa os protestos de rua que tomaram democracias em países como Brasil, Estados Unidos, França, Egito e Ucrânica na última década, que tiveram como elemento unificador a insatisfação com a política tradicional, e busca entender essa crise com ajuda de intelectuais e atores políticos como Steven Levitsky, Jacques Rancière, J.C. Monedero, Angela Alonso e Yascha Mounk. "Nessa última década, além de todos os abalos mais notáveis nas democracias ao redor do mundo, tivemos uma diferença. Por conta da tecnologia, todos se tornaram testemunhas dessas manifestações, participando dos movimentos e registrando com seus próprios celulares. Olhar para esses materiais com visão de pesquisador de imagem é muito interessante", pontua. A questão da imagem é, inclusive, muito presente no filme de Franca. "Elas não são usadas como ilustrações de uma possível fala. Busquei imagens fortes, que trouxessem significado, fossem pungentes e falassem por si só, contando histórias sozinhas. Essa é uma das trilhas do filme. A outra são as entrevistas com pessoas que escreveram a respeito, em livros ou artigos, por exemplo", discorre.

Por fim, Sandra Kogut é a única que produziu uma obra de ficção entre os participantes do painel. Na trama de "Três Verões", a cada verão, entre Natal e Ano-Novo, o casal Edgar e Marta recebe amigos e família na sua mansão à beira-mar. Em 2015, tudo parece ir bem, mas em 2016, a mesma festa é cancelada. "Minha ideia era falar sobre o que estava acontecendo com as pessoas em volta dos ricos e poderosos do país, como seus empregados domésticos, por exemplo. A protagonista é uma caseira que é empregada dos patrões, mas é como se fosse a chefe dos demais empregados. É uma figura muito interessante. O longa foi filmado antes das eleições e a história acaba na reta final de 2017. Assistindo a ele hoje, fica essa sensação de que os sinais estavam todos ali, mas ninguém estava vendo", observa.

Distribuição

"A distribuição tradicional já não funciona para filme nenhum", brada Caldas. "O público não fica sabendo da existência de muitos filmes que são produzidos ou, quando sabe, não descobre onde está passando. O que torna a carreira dessas obras muito traumática às vezes. Precisamos buscar caminhos alternativos e investir cada vez mais em campanhas de impacto, especialmente para documentários, e profissionalizar isso. Nesse sentindo, temos muito a evoluir", completa. Franca não só concorda com ele como também já trabalha com projetos com esse objetivo. "Se eu fosse pensar nesse meu filme só com sua exibição tradicional, ele iria para festivais, salas de arte, uma ou outra comercial, passaria no canal Curta!, que é nosso coprodutor, e depois seria lançado no streaming. Mas, na produtora (Giros Filmes), trabalhamos com uma metodologia que busca o público do filme e faz com que o público encontre esse filme. Temos uma pessoa na equipe que faz só isso, isto é, procura lugares onde o filme pode estar para além da distribuição tradicional. Vamos exibir 'O Paradoxo da Democracia' em um Fórum de Democracia nos Estados Unidos, por exemplo", cita. "Precisa existir um trabalho para que o filme seja, de fato, um ser vivo. Acredito que em breve teremos profissionais de campanhas de impacto, o que vai beneficiar muito esse mercado", acrescenta.

Já Ribeiro é ainda mais ousada: "Eu não domino e nem quero dominar a matemática da distribuição. Esse meu filme de agora, por exemplo, eu tenho vontade de postá-lo no Instagram. Enquanto estamos aqui conversando eu estava ao vivo no Instagram e 1300 pessoas assistiram. É muita gente, mais do que o público no cinema do meu primeiro filme. Eu acho ótimo que filmes estejam à mão, no celular, para todo mundo ver".

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