O Projeto de Lei Complementar 73/2021 (PLP 73/2021) ganhou um nome incontestável de Lei Paulo Gustavo. Seu objetivo é permitir alterações para não contabilizar na meta de resultado primário do União as transferências federais aos demais entes da Federação para enfrentamento das consequências sociais e econômicas no setor cultural decorrentes de calamidades públicas ou pandemias. Altera ainda a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, para atribuir outras fontes de recursos ao Fundo Nacional da Cultura (FNC). O PLP havia sido aprovado no Senado em setembro de 2011 e foi aprovado na Câmara com modificações em 24 de fevereiro de 2022, pelo que regimentalmente volta para o Senado para apreciação.
O objetivo do projeto original é destinar o montante de R$ 3,862 bilhões extraído do atual superávit financeiro do FNC para os estados, Distrito Federal e municípios para que seja aplicado em ações emergenciais que visem combater e mitigar os efeitos da pandemia de covid-19 sobre o setor cultural. Os recursos destinados ao cumprimento dessa Lei serão executados de forma descentralizada, mediante transferências da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
Desse montante, R$ 2,797 bilhões serão destinados exclusivamente para ações na modalidade de recursos não reembolsáveis no setor audiovisual. Na forma do art. 5º os valores serão pulverizados entre estados, Distrito Federal e municípios, inclusive usando-se a proporcionalidade do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) pouco importando a capacidade do município produzir audiovisual.
Para dar cumprimento ao disposto no caput do art. 5º desta Lei Complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão desenvolver ações emergenciais por meio de editais, chamamentos públicos, prêmios ou outras formas de seleção pública simplificadas para: I – o apoio a produções audiovisuais, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, inclusive aquelas com origem em recursos públicos ou financiamento estrangeiro; a capacitação, a formação e a qualificação no audiovisual, o apoio a cineclubes e à realização de festivais e mostras de produções audiovisuais, preferencialmente por meio digital, bem como a realização de rodadas de negócios para o setor audiovisual, para a memória, a preservação e a digitalização de obras ou acervos audiovisuais, ou ainda o apoio a observatórios, publicações especializadas e pesquisas sobre audiovisual e ao desenvolvimento de cidades de locação; e o apoio às micro e pequenas empresas do setor audiovisual, aos serviços independentes de vídeo por demanda cujo catálogo de obras seja composto por pelo menos 70% (setenta por cento) de produções nacionais, ao licenciamento de produções audiovisuais nacionais para exibição em TVs públicas e à distribuição de produções audiovisuais nacionais.
Ocorre que, conforme diz o art. 30, para as medidas de que trata esta Lei Complementar poderão ser utilizados como fontes de recursos: I – dotações orçamentárias da União; II – o superávit financeiro apurado em balanço das fontes de receita vinculadas ao FNC. III – outras fontes de recursos.
O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é uma parte do FNC e, portanto, grande parte dos recursos que esse projeto de lei complementar está transferindo e pulverizando pelos entes da federação estava destinado à produção das obras audiovisuais em desenvolvimento por meio de fomento direto. Os recursos do FSA são em grande parte arrecadados pelas CONDECINES, notadamente a das empresas de telecomunicação e serão retirados do modelo original de financiamento da produção brasileira independente.
Consta dos informes de transparência da ANCINE de março de 2021 que se encontram em execução 2.100 projetos audiovisuais aprovados.
Os filmes de sucesso de Paulo Gustavo, recordes de bilheteria, certamente foram produzidos num formato mais empresarialmente organizado do que produções que possam ser realizadas com a pulverização dos recursos do FSA. Obras como "Minha Mãe é uma Peça", "Os Homens são de Marte…E é Para Lá Que eu Vou" não serão produzidas com os recursos transferidos para Estados e Municípios, notadamente por critérios de participação federativa.
O projeto avançou nos resultados sobre as aplicações financeiras do FSA e sobre a reversão de saldos financeiros anuais não utilizados no final do exercício, que sempre foi uma necessidade para atender os projetos encaminhados via ANCINE. Todavia, as produtoras audiovisuais brasileiras independentes deveriam verificar se realmente uma Lei que tem bom nome levará a um bom destino, sob pena de prejuízo ao sucesso da produção brasileira, notadamente em tempos pós pandemia onde cinemas estão procurando grandes produtos.
Pode ser que retirar os recursos do FSA que poderiam ser destinados a complementar os projetos aprovados pela ANCINE para que sejam finalizados, bem como cobrir a elevação dos custos dos orçamentos dos filmes decorrentes da explosão inflacionária dos últimos dois anos não seja uma ideia tão boa como parece e os filmes do potencial como os daquele que empresta (sem autorização) seu nome ao projeto não apareçam. Se há uma boa vontade do Congresso para preservar os saldos contingenciados, não aplicados ou de rendimentos financeiros do FSA, por que não destinar os valores a viabilizar a completude de centenas de projetos que estão na boca do forno, com curadoria dos investidores, dos coprodutores, parceiros internacionais e locais, e regência de fomento pela ANCINE? Esses produtos certamente farão a economia se recuperar de uma forma muito mais eficaz do que acreditar, no âmbito do audiovisual, que munícipios, estados e o Distrito Federal, até o final de 2022 conseguirão desenvolver uma política de fomento factível, eficiente e viável do audiovisual brasileiro.
É bem possível e provável que as produtoras ficarão sem recursos importantes do FSA para completude de bons projetos em benefício de se gastar mal tais recursos, sem retorno visível para o audiovisual brasileiro.
Em síntese, pode ser que muitos não tenham percebido que os recursos da CONDECINE, nos termos da Lei 11.437/06 são destinados ao FNC e alocados numa categoria específica denominada FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Os recursos do FSA nos termos da Lei são para apoiar o PRODECINE, PROVAV e PRO-INFRA, conforme mecanismos normatizados pela ANCINE.
O que a Lei Paulo Gustavo faz na prática é recuperar e depois tirar recursos do FSA dos programas originais a que ele se destina, dando um by-pass no modelo vigente de fomento ao audiovisual brasileiro. Retira também do Comitê Gestor do FSA o poder legal de estabelecer as diretrizes e definir o plano anual de investimentos, acompanhar a implementação das ações e avaliar, anualmente, os resultados alcançados.
Não há dinheiro "novo" nesse projeto, mas a utilização dos recursos recuperados do FSA, de forma diversa da qual foi concebido. Os bilhões que parecem que nasceram a favor do audiovisual, são os mesmos bilhões que poderiam há tampos estar irrigando os projetos em andamento no sistema vigente do fomento do audiovisual brasileiro. Se o objetivo é evitar o contingenciamento, o que é excelente, porque praticado por todos os governos de qualquer posição política, o primordial é que os recursos sejam usados para seu objetivo principal e original. Corrigir o erro do contingenciamento não corresponde a alterar o fluxo original para o qual o FSA foi criado, sob pena de enfraquecimento da indústria do audiovisual brasileiro.
Essa constatação é independente de vieses políticos e partidários, pois é uma questão de correta aplicação dos recursos do FSA na forma dos seus objetivos legais.
Se me permite, o seu raciocínio seria correto se os sucessivos Governos desde a criação do FSA não viessem se apropriando, a meu ver ilegalmente, da maior parte dos recursos arrecadados com justificativas e contingenciamentos espúrios sem a devida contestação pelas vias apropriadas, sejam administrativas ou judiciais. Os recursos recuperados pela Lei Paulo Gustavo jamais teriam o devido fim sem esta norma. Obviamente, não é o mecanismo que deve ser a regra. O desejável é os Governos cumprirem a destinação legal dos recursos do FSA e pararem de desviar o que o legislador destinou para a atividade audiovisual.
Gostaria de comentar que não devemos, neste momento quando a maior parte dos criadores e trabalhadores da indústria do audiovisual interrompeu o exercício de seus ofícios, em função do impacto da pandemia de Covid-19 sobre a continuidade da produção, distribuição e exibição de obras cinematográficas no país, e também em virtude da suspensão do fomento público direto, que aliado ao decréscimo do fomento indireto motivado pela estagnação econômica, prejudicando a captação e liberação de recursos para a produção e comercialização de
obras audiovisuais, privilegiar uma única via de acesso à estes mesmos recursos.
Ao meu ver, a adoção de uma estratégia como a apontada no artigo do Dr. Marco Bitelli, no âmbito da Lei Paulo Gustavo, é optar por um posicionamento conservador e limitador dentro de um contexto de crise continuada e nunca antes vista, pois se estaria que estaria concentrando aportes em projetos das produtoras mais robustas e melhor capitalizadas e naquelas que já obtiveram aportes do fomento direto, em detrimento daqueles que necessitam do auxílio emergencial para poder permanecer no mercado e conferir-lhe as marca de diversidade que a cinematografia brasileira tão bem carrega.
Trata-se de uma lei emergencial e opino que será muito bem vinda, e que despertará nos entes federativos, estados e municípios, produtores e empreendedores, a sensibilização para se incentivar a criação de novos negócios em prol do Audiovisual e de seus criadores e trabalhadores, gerando renda, empregos e aumentado a arrecadação de impostos e tributos em todas as esferas, não limitando exclusivamente os investimentos púbicos no âmbito da produção de obras.
Formação e qualificação, memória e preservação, distribuição e difusão, e mesmo simples apoio emergencial a um setor quase falido e asfixiado, são, a meu ver, muito boas destinações a estes recursos.