Produtores e players especializados em conteúdo infantil e infanto-juvenil se reuniram em um debate nesta quinta-feira, dia 24 de outubro, no Mercado SAPI, em Goiânia, para falar sobre as particularidades do audiovisual produzido para crianças.
Representante do Centro-Oeste à mesa, Paulo Miranda, da Mandra Filmes, trouxe um pouco da trajetória da produtora, que já tem 20 anos de mercado no Brasil. A empresa começou a produzir curtas em 2003 – o primeiro deles foi "Carne Seca" – e, de lá pra cá, foram mais de dez. Simultaneamente, fazia vídeos institucionais e publicidade como forma de equilibrar as contas. Os curtas serviram como laboratório. "Foram um espaço de experimentação e testes, tanto estéticos quanto de narrativas, antes de começarmos a produzir longas e séries", contou o produtor. Mas ainda antes de entrarem no universo da animação, eles fizeram longas em live-action, como "A Grande Amazônia", um documentário em coprodução com a NHK, e "Atrás da Sombra", um terror com o Telecine.
A produção de animação teve início em 2016 e, já em 2017, foram lançadas duas séries, nas quais a Mandra Filmes trabalhou ao mesmo tempo: "Muralzinho" e "Julio e Verne". Em 2018, veio mais uma, "Ada e Rói". Em 2022, estrearam "O Parque de Adelin", sua quarta série, na TV Cultura, e sentiram uma repercussão bastante positiva. Até que no ano passado a produtora lançou seu primeiro longa-metragem para os cinemas, "A Ilha dos Ilus". No momento, a Mandra produz uma série infanto-juvenil intitulada "Gnaks!", que se passa em Goiânia, além de uma série para a TV Rá-Tim-Bum, a segunda temporada de "Muralzinho", uma nova série pré-escolar e ainda outros dois longas.
Trabalhando com produtos e formatos variados, Miranda destacou que uma das prioridades no processo de produzir para as crianças é definir bem o target. "Ao criar um projeto, para além do formato, é importante saber para qual idade ele é destinado. Isso faz o player entender o que está sendo proposto". Nesse sentido, ele deu alguns exemplos: o conteúdo para o chamado público pré-escolar, que tem em média três anos, deve ser multissensorial, isto é, trabalhar o som, ter imagens que chamem a atenção nas formas e propor algo que crie conexão. "Nessa idade, a conexão é sensorial. É a sensação que passa, e não exatamente o gostar ou não gostar", pontuou. Já o conteúdo que mira a criança de até seis anos continua sensorial, mas traz um outro nível de conexão, no qual a criança já gosta mais de um ou de outro personagem. Nesse período, também é interessante, segundo o produtor, apostar em vozes com timbres alternados – se um personagem fala muito pra fora, o outro fala mais pra dentro, e assim por diante. Na sequência, quando a audiência pretendida tem de seis a 12 anos, já vale acrescentar um personagem antagonista e apostar ainda mais no contraste entre personagens.
Amanda Vieira, da Viu Cine, o principal estúdio de animação de Pernambuco, produtora de séries como "Musicália" e "Além da Lenda", que ganhou um desdobramento e se tornou o primeiro longa-metragem de animação do estado, concorda que o target é realmente muito importante. Para ela, o conteúdo pré-escolar não pode essencialmente ter excesso de informação. Já as séries para o público na fase seguinte precisam de "um ritmo a mais", como um conflito. "Muitas vezes, é algo que está atrelado à própria vida da criança, que acontece no dia a dia dela. É uma forma da criança se enxergar e entender que aquilo que ela vive também acontece com outras pessoas", analisou. Vieira ressaltou que, acima de tudo, a produção infantil tem que ter a criança como protagonista – e lembrar ainda que existem diversos tipos de criança no Brasil, que é um país gigantesco. "Por isso os personagens devem ter diferentes características, personalidades e rostos, e viverem em lugares diferentes, passarem por situações diferentes. Essa diversidade é muito importante. O conteúdo deve buscar uma conexão para que ele seja lembrado pela vida toda daquela criança".
Nesse sentido, Miranda acrescentou: "Produzir para criança é uma baita responsabilidade porque estamos falando em construção de memória afetiva. Tem que ser sincero. Quem faz precisa gostar do projeto, e não trabalhar só pensando 'coloca isso na série porque criança gosta'. Nossos projetos precisam basicamente de boas histórias e bons personagens. A série que estamos produzindo que se passa em Goiânia, por exemplo, não cita o nome da cidade em nenhum momento – mas a cultura aparece por meio da história e dos personagens. É assim que criamos aderência".
O coordenador de conteúdo infantil da Globo, Gabriel Ferraz, que cuida dos projetos que vão para os canais Gloob e Gloobinho, além do Globoplay, pontua que falar com crianças por meio do audiovisual é falar com diferentes tipos de crianças: "É um conteúdo que precisa sempre se atualizar porque novas gerações estão chegando. O público infantil muda sempre". Ferraz também destacou que, hoje, os produtores devem pensar nessa criança pós-pandemia, que talvez tenha questões de saúde mental e ansiedade e que também tem um poder de decisão muito maior do que quem é adulto hoje tinha quando era criança, no sentido de escolher o que quer ver, já que muitas delas têm fácil acesso ao YouTube e às plataformas de streaming. "A criança ainda está nas mídias tradicionais, mas cada vez mais está no digital. Precisamos ter isso em mente".
Para Ferraz, também é essencial tratar as crianças nas suas singularidades, isto é, como pessoas que fazem parte da sociedade e não como "pré-pessoas". Ele questiona, inclusive, o uso do termo pré-escolar: "Seria melhor dizer primeira infância. Caso contrário, parece que a criança só 'vale' quando chega na escola". E por fim, ele fala na importância das referências brasileiras. "A concorrência entre os conteúdos infantis é muito grande. Devemos sempre pensar em estratégias para atrair o interesse das crianças por conteúdos brasileiros, para que elas cresçam com referências. Da mesma forma que nós gostamos de nos identificar com os conteúdos e com os personagens das séries que assistimos, para as crianças isso também é importante".
Desenvolvimento da indústria
Tanto a Mandra Filmes quanto a Viu Cine produzem majoritariamente com recursos públicos – como o Fundo Setorial do Audiovisual e os editais para as TVs públicas. No caso da Viu, ela ainda fez algumas parcerias com empresas – para dois curtas e um média – mas, segundo Vieira, não foi fácil: "Conseguimos esses acordos com empresas privadas somente para os conteúdos mais curtos. Produções maiores só fizemos com edital e leis de incentivo. Até porque nossos projetos passam mais na TV pública, então não temos retorno. De 'Além da Lenda', que foi nosso maior case, ainda fizemos livros dos personagens, que têm feito sucesso. Isso incentiva nosso trabalho e ajuda a fomentar nossas produções".
Ferraz, da Globo, reforça que a estratégia do conteúdo infantil passa por esse pensamento multiplataforma, buscando projetos com potencial de desdobramento – como produtos, jogos e multiplicação em outras áreas. O canal Gloob tem um grande case nesse sentido que é "D.P.A. – Detetives do Prédio Azul", que tem centenas de itens licenciados, licenciamento internacional, longas para os cinemas, peças de teatro, ativações em shopping center e até navio temático. "Coisas assim ajudam a viabilizar o projeto e sua continuidade. Não tem muito como fugir do caminho da venda de produtos", observou.
Por fim, o produtor da Mandra Filmes, que também produziu a partir de recursos do FSA, salientou a importância das políticas públicas: "É papel do governo fomentar a indústria. Não se desenvolve uma indústria sem recursos públicos. Até o agronegócio utiliza. Para um mercado virar indústria, tem que colocar dinheiro. Temos uma tragédia silenciosa no Brasil que são nossos talentos indo embora porque o trabalho não tem continuidade. Essa continuidade é fundamental para formar carreiras e, assim, desenvolver uma indústria".