Pela primeira vez na sua história, o Mercado SAPI, em Goiânia, recebeu convidados internacionais. Na mesa "América Latina, onde nossas histórias podem chegar?", que aconteceu nesta quinta-feira, 24 de outubro, realizadores do Brasil, Chile e Argentina falaram sobre os desafios e oportunidades comuns às indústrias do audiovisual dos três países e como os territórios, junto do restante do continente, podem se unir e pensar em estratégias para ampliar a circulação dos seus filmes e ainda fortalecer as possibilidades de coprodução.
Para Giulia Medeiros, produtora audiovisual do Cuiabá (MT) com passagens pela Escuela Internacional de Cine y Televisión, de Cuba, a pauta é emergente e a questão deve ser olhada de forma a cruzar as realidades e contextos dos diferentes países latino-americanos e compreender como eles podem se conectar por meio do cinema. Ela relembrou que a ideia de construção de redes não é nova – desde a década de 70 os cineastas já se uniam não somente para pensar propostas de produção, exibição e distribuição, mas também para dar conta do cenário político que enfrentavam na época. "Dali veio a proposta de construir um cinema latino-americano não só pensando numa estética unificada, mas também nas questões e desafios do seu tempo histórico. Até hoje, uma das coisas que une o cinema da América Latina é o compromisso em romper com paradigmas estéticos cristalizados e enlatados que chegam dos Estados Unidos e da Europa e que nos foram apresentados como verdade, mas que não nos representam. É momento de pensar de dentro pra fora, em quais linguagens e histórias queremos. Nesse sentido, esses espaços de mercado e laboratórios são importantes para fortalecermos nossas narrativas, mas também as estratégias para enfrentarmos os desafios do cinema e da indústria das regiões", destacou.
Falando nesses desafios, foi consenso entre os debatedores que o principal deles é a distribuição. Medeiros contou, por exemplo, que dos 63 filmes produzidos no Mato Grosso da década de 90 até meados de 2020, 15 não foram catalogados e não têm meios de acesso. "Precisamos pensar em modelos de distribuição que possam servir para a nossa realidade de América Latina", ressaltou. "Muitas vezes, temos a mentalidade de estrear em Cannes, nos festivais europeus. Mas os nossos filmes precisam ser vistos nos nossos territórios sem que a gente dependa da validação dessas grandes e tradicionais indústrias. O cinema é coletivo, então quanto mais pudermos trocar, melhor. Até porque se tivermos um novo desmantelamento de políticas públicas no Brasil, como já ocorreu recentemente, precisaremos dessa rede de contatos para seguirmos trabalhando sem depender do governo. Acordos de coprodução vão além de viabilizar projetos. Eles servem como aliados para não deixarmos a peteca cair".
A cineasta e produtora executiva Valentina Roblero, da Orion Cine, do Chile, concorda que os problemas que existem hoje são consequências de uma hegemonia dos EUA e da Europa que começou lá atrás, e que essas regiões não podem ser os principais espaços de validação do cinema latino-americano. Ela mencionou, por exemplo, os grandes festivais que acontecem no continente, como o Mar del Plata e o Guadalajara, que podem ser meios potentes de distribuição dos filmes. Roblero pontuou ainda que a América Latina é um mercado de mídia e entretenimento gigante – e muito importante para os Estados Unidos: "Pagamos assinaturas de diversas plataformas de streaming. Se nós parássemos de assinar, seria um problema econômico enorme para os players de lá. Isso significa que temos um papel relevante – e, por isso, nossos filmes também poderiam ter resultados de negócios relevantes nos nossos próprios territórios assim como os filmes norte-americanos têm". A produtora lamenta o fato de que os países latino-americanos não miram os mercados uns dos outros na hora de trabalhar suas obras – o Chile, por exemplo, não mira o mercado brasileiro, argentino ou mexicano, que são muito grandes. "Aí está uma oportunidade. Tem muito espaço de colaboração para além das coproduções", garantiu.
Roblero compartilhou que, no Chile, a questão da distribuição também é sensível: "Temos alguns acordos entre associações de produtores e salas de cinema, mas é muito difícil. Cada produtor está sempre com seu filme embaixo do braço levando para os lugares, buscando espaços interessantes para gerar vendas. As estreias nas salas comerciais são especialmente complicadas". Constatando que se trata de um desafio comum entre os países, a cineasta sugeriu algumas soluções – partindo do ponto que, para ela, a etapa da produção está resolvida, sendo a distribuição o grande obstáculo a ser superado. Ela apresenta, por exemplo, a ideia de uma cota de tela de filmes latino-americanos nas salas de cinema e nas plataformas de streaming. Ou ainda de uma logomarca oficial que identifique esses títulos da América Latina de forma a "oficializar" que se trata de um produto do continente. "É um caminho para posicionarmos o nosso cinema como marca perante o mercado global", explicou. Por fim, ela abordou outro ponto interessante: a questão do idioma, que por vezes acaba sendo uma barreira na circulação dessas obras. "Na Itália, por exemplo, todo mundo assiste a filmes dublados em italiano – o que ajudou o país inclusive a construir uma indústria de dublagem gigantesca. No Chile, os filmes comerciais são sempre dublados. Os de arte, assistimos legendados. Se queremos incluir um público mais amplo temos que trabalhar nisso", defendeu.
Lucila Frank é uma experiente cineasta da Argentina. Desde 2020, com o objetivo de promover o cinema independente na região e o consumo de cinema de arte de alta qualidade em plataformas de VoD e televisivas, trabalha com lançamentos de mais de 20 filmes anuais para a renomada distribuidora Cinetren. O trabalho, não por acaso, começou no contexto da pandemia, em que impossibilitada de produzir, Frank se voltou para esse universo de distribuir. "Há quatro anos trabalho com a missão de levar projetos importantes ao público e torná-los mais visíveis. Tento trazer a perspectiva de pensar mais no lugar do espectador, e não só de quem está fazendo", contou. No entanto, ela ressaltou que, desde que um presidente de extrema direita assumiu comando do país, a Argentina enfrenta uma grave crise – bastante semelhante à que o Brasil viveu anteriormente, com o governo Bolsonaro, e que, claro, acabou impactando seriamente a cultura e o audiovisual – inclusive o mercado de festivais do país. "Principalmente nesse momento é muito relevante para nós pensarmos em possibilidades com outros países – e trabalhar com o Brasil nos interessa muito. O Brasil é um universo – sua natureza, a música, as pessoas. Tem as melhores locações do mundo e cada estado tem suas particularidades. Se unirmos todas essas forças, podemos fazer coisas muito grandes", afirmou. Para ela, é hora de firmar alianças construtivas e estabelecer acordos que possam dar ao país uma maior sensação de estabilidade.
Quem moderou o debate foi Clemilson Farias, produtor acreano que é membro do Conselho Superior de Cinema e está também à frente do Matapi, plataforma de articulação audiovisual amazônica que realiza, desde 2018, um evento de mercado com foco na movimentação da economia criativa na região, atuando ainda em constante diálogo com o Centro-Oeste, o Norte e o Nordeste do país. "Lá atrás, começamos a perceber que nos incomodava muito que as histórias da Amazônia fossem contadas a partir do ponto de vista de quem está de fora. Queremos falar da Amazônia em primeira pessoa e viabilizar que nossos narradores possam contar essas histórias", declarou. "Desde a primeira edição do nosso mercado entendemos que não podíamos pensar num evento igual aos que sempre estão postos – na Europa ou mesmo no Brasil. Senão, não conseguiríamos criar nossos próprios espaços de conexão", acrescentou. Um dos objetivos dessa articulação é justamente pensar outras formas de distribuição para além da tradicional, como campanhas de impacto social que, na verdade, começam antes, já na criação de histórias de impacto social, entendendo que, para além do valor econômico e financeiro, os filmes têm um grande valor simbólico, de construção de identidade e de algo que se conecta com a própria soberania dos territórios. "Defendemos nossa identidade nesse lugar", reiterou.
Nesse caminho, existe um projeto de um laboratório de desenvolvimento de longas-metragens de ficção que contem histórias amazônicas feito em conexão com a Colômbia e o Peru, que estão geograficamente tão próximos. Desde o ano passado, o Amazonas também busca fortalecer sua relação com o Bogotá Audiovisual Market (BAM). "Nós demoramos 1h30 de avião para ir para a Colômbia e, para São Paulo ou Rio de Janeiro, cerca de 4h. É fisicamente mais fácil trocarmos com essas pessoas. Podemos, juntos, potencializar nossas histórias. Precisamos compreender novas possibilidades. Os países da América Latina são potências de produção. Fomos criados com a ideia de que a potência está lá fora – quando, na verdade, a potência criadora está aqui dentro. Se não trocarmos uns com os outros não teremos forças para estarmos plenos nos outros mercados", avaliou.
E, por fim, trazendo um pouco da questão política, Farias concluiu: "O fortalecimento das nossas cinematografias passa por incidência política. Porque todas as nossas produções, das pequenas até as grandes, necessitam de verba pública. Por isso os governos também devem estar atentos à necessidade de fortalecer cada vez mais a cadeia de distribuição, que é uma dificuldade para nós, mais do que a produção. É urgente lidarmos com isso".