Novas regras de publicidade infantil no Youtube impactam todo o mercado

As novas regras de publicidade em conteúdo infantil do Youtube, que entram em vigor no início do próximo ano, terão impacto em toda a cadeia audiovisual. As programadoras de TV por assinatura veem na mudança uma prática mais próxima à adotada pelo mercado, o que as coloca em melhores condições de competição. Para os produtores de conteúdo, no entanto, as mudanças podem impactar negativamente, minando as chances de viabilizar conteúdos que dependam da plataforma como principal fonte de remuneração.

No início de setembro, veio à tona a informação de que o YouTube teria concordado em pagar uma multa no valor de US$170 milhões por usar dados de crianças para direcionamento de anúncios publicitários. Na mesma data, a empresa de vídeos, que tem no Brasil o seu terceiro maior mercado mundial, anunciou algumas mudanças nas regras relacionadas à publicidade nos vídeos voltados ao público infantil.

As novas regras visam limitar a coleta e o uso de dados no conteúdo infantil. Em comunicado publicado no blog oficial do YouTube, a presidente global da plataforma, Susan Wokcicki, afirmou que a companhia passará a tratar dados de qualquer pessoa vendo conteúdo infantil no YouTube como se fossem dados de uma criança, independente da idade do usuário. Vale lembrar que, em tese, o YouTube é uma plataforma para maiores de 18 anos mas, ao contrário do Instagram, Facebook e Twitter, por exemplo, funciona de forma aberta, sem necessidade de cadastro ou login. Na prática, a medida garante que vídeos infantis marcados como tal deixem de receber anúncios target, que são entregues de acordo com o comportamento do usuário – obtido a partir de dados – mas outros modelos de publicidade continuarão liberados.

Outra mudança bloqueia funcionalidades hoje disponíveis, como comentários e notificações, nesse tipo de vídeo. A partir do ano que vem, o único tipo de publicidade que poderá ser exibido em vídeos do YouTube que tenham algum tipo de audiência infantil é publicidade de contexto, isto é, o modelo no qual as propagandas são associadas ao vídeo em que são exibidas, e não direcionadas de acordo com o comportamento e demais informações pessoais do usuário que está assistindo.

Por fim, a nova conduta prevê ainda que todo conteúdo feito para crianças seja identificado em parceria com os próprios criadores e os YouTubers que, a partir da data estabelecida, devem declarar se produzem algum tipo de vídeo que se enquadre nessa categoria. Ainda segundo o comunicado publicado na página da empresa, eles afirmam que também usarão aprendizado de máquina para encontrar esses conteúdos que claramente são direcionados para audiências mais jovens, como aqueles que têm ênfase em personagens infantis ou ainda em jogos e brinquedos.

A medida de tratamento desses dados deve impactar no faturamento publicitário do YouTube – sendo ainda imprevisível em qual porcentagem – uma vez que interfere diretamente na forma de monetização dos vídeos exibidos na plataforma.

Produção

Juliano Prado, um dos criadores da "Galinha Pintadinha", se coloca como favorável às mudanças, mas reconhece que está numa posição privilegiada quando comparado a outros produtores de conteúdo infantil de menor tamanho. "A maior parte da publicidade é de target, então o impacto para quem produz será bem grande. A gente apoia esse movimento, mas sabemos que não seremos tão impactados. Ao longo dos anos, desenvolvemos linhas de receita para além do YouTube, que nem nos dava dinheiro no início. Hoje em dia temos diversos produtos licenciados, peças de teatro, série em exibição em janelas da TV paga etc. Mas quem produz especificamente para YouTube precisará repensar seu modelo de negócio", afirma. "Para o produtor, o YouTube é uma janela ótima, extremamente democrática. Conteúdos mais inovadores, que ainda não encontram espaço na TV, por exemplo, têm seu lugar ali. São eles que sofrerão com as mudanças. Produções maiores também sentirão o impacto porque, hoje, todas as estratégias são feitas com base nesse tipo de receita", completa.

"Galinha Pintadinha" está entre os conteúdos que encontraram outras fontes de remuneração. Aqueles que dependem da plataforma podem ter dificuldade em se viabilizar.

O criador de um dos conteúdos infantis de maior sucesso da história da plataforma avalia o momento com cautela: "Como todo mercado, como todo setor, existem fases. Precisaremos esperar acontecer na prática para entender o real efeito. É hora de questionar, principalmente por parte de quem produz, quais seriam outras formas de monetizar a produção". Prado aproveita para fazer um alerta: "Precisamos de estímulos para quem produz conteúdo infantil. Acredito que publicitários, marcas e meios vão se adequar, mas pode ser que haja um apagão na quantidade de conteúdo infantil e uma diminuição na inovação do mesmo. Quem queria começar na área e já tinha desenvolvido seu plano de negócios precisará recomeçar e pensar em outros caminhos de financiamento".

Competição

"A missão da Nick é tornar o mundo um lugar mais divertido, e não há diversão em ambientes não seguros", declara Ari Martire, Diretor Sênior de Ad Sales e Branded Content da Viacom Brasil, responsável por marcas como Nickelodeon e Nick Jr. "Somos um ecossistema que inclui, além da TV, produtos, eventos, parques e conteúdos em diversas plataformas, inclusive no YouTube. A sociedade está mudando bastante e acompanhamos bem de perto essas mudanças para sempre garantir diversão segura para as crianças. E, nesse contexto, temos a atenção e responsabilidade dobradas, para entregar as mensagens publicitárias adequadas para as famílias e sobretudo para as crianças", analisa.

"Sempre que desenvolvemos formatos publicitários para crianças, pensamos no propósito daquela mensagem, respeitando a legislação vigente e as regras de comunicação de marcas e produtos para crianças", diz Ari Martire, Diretor Sênior de Ad Sales e Branded Content da Viacom Brasil.

Martire afirma que a Nickelodeon sempre respeitou as regras de publicidade infantil e buscou desenvolver soluções criativas para que crianças e famílias possam interagir com marcas de maneira segura e divertida. Como exemplo, ele cita o "Master Slime", reality show do canal que tem como mote buscar o grande mestre do slime no Brasil. "É um conteúdo de grande audiência na TV e nas plataformas de streaming, com mais de 20 milhões de views apenas no YouTube. A princípio, seria um canal com enorme potencial de product placement e merchandising, mas não temos formatos desta natureza no programa. Utilizamos produtos de uma marca patrocinadora, mas todos sem rótulo de identificação. Sempre que desenvolvemos formatos publicitários para crianças, pensamos no propósito daquela mensagem, respeitando a legislação vigente e as regras de comunicação de marcas e produtos para crianças", explica.

Luciane Neno, gerente de marketing e plataformas digitais dos canais Gloob e Gloobinho, se posiciona no mesmo sentido: "As novidades estão de acordo com os valores nos quais acreditamos e julgamos como importante todas as medidas que tenham como objetivo a segurança das crianças. Proteger as crianças é um dever das marcas que falam com esse público, com a consciência sobre a vulnerabilidade da criança e dos impactos que a publicidade pode exercer nelas, visto que o consumo de vídeos online cresce cada vez mais. As tecnologias trouxeram um novo comportamento frente às telas. Hoje, existe uma grande oferta de produções nas mais diversas plataformas, além da facilidade de poder ver repetidas vezes um determinado conteúdo, onde e como quisermos. Assim como nosso público, que transita com facilidade dos nativos digitais dentro dessa dinâmica de consumo, nós somos um canal jovem e já nascemos dentro desse universo. Como já demonstrou o nosso estudo 'Era um vez…', de 2018, 71% das crianças entrevistadas enxergam o celular e o tablet como brinquedos favoritos. Porém, na nossa visão, o equilíbrio é fundamental. E, para isso, é importantíssima uma atuação ativa dos pais, limitando o tempo de acesso, fazendo a curadoria, e o acompanhamento desse consumo levando em conta cada fase da criança".

A afirmação de Luciane vai ao encontro de um dado recém-divulgado pela edição de 2018 da TIC Kids Online, em pesquisa apresentada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) no último dia 17. Entre outros dados, a pesquisa informou que, dentre as cerca de 24,3 milhões de crianças e adolescentes brasileiras usuárias de Internet, 83% consomem vídeos, programas e séries online. Vale mencionar ainda outro dado obtido pelo estudo que fala especificamente sobre essa questão da publicidade. Segundo a pesquisa, 67% das crianças afirmaram ter tido contato com conteúdo publicitário em sites de vídeos, enquanto 64% garantiu reconhecer esse conteúdo em televisão e 52% nas redes sociais.

O diretor geral do ZooMoo para a América Latina, Julio Sobral, reforça o posicionamento do canal em relação à limitação da quantidade de publicidade: "Na TV, atuamos com pouquíssimos comerciais. Isso até afeta a saúde financeira, mas temos que 'rebolar' para gerar outro tipo de receita que não seja basicamente via publicidade tradicional". O executivo cita ainda a necessidade de que as próprias marcas entendam seu papel na história, falando especialmente do ambiente digital: "A publicidade na plataforma deve sempre ser revista para estabelecer uma cultura de educação e cuidados com as crianças, sem ser meramente consumismo. Deve haver equilíbrio. As marcas anunciantes precisam ser criativas a ponto de agregar não só o produto em si, mas uma mensagem positiva para a sociedade e para as futuras gerações".

Procurados por este noticiário, os canais Discovery Kids e Cartoon Network deram as seguintes declarações: "O Discovery Kids tem por política adotar as regras padrão do mercado. Nossa política comercial é aderente às normas do CENP e demais entidades. Continuaremos com o posicionamento que fez do Discovery Kids o canal seguro no qual os pais confiam."; e "O Cartoon Network leva muito a sério seu compromisso de oferecer conteúdo adequado e seguro para crianças e cumprir todas as leis aplicáveis.".

"É um caminho, mas ainda há muito a ser feito.".

Livia Cattaruzzi, advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, acredita que o principal problema dos anúncios comerciais na internet seja o fato de que a maioria deles não é passível de identificação como mensagem publicitária, isto é, a criança não tem o discernimento necessário para entender que um vídeo de "recebidos", por exemplo, seja publicidade. Sobre as mudanças, Livia afirma que elas trazem avanços positivos, sim, mas aponta que ainda existem muitos problemas dentro da plataforma e que as novas regras não encerram a discussão.

"Existe uma lei americana de proteção de dados de criança na internet. Então o YouTube anunciar que não irá mais coletar esse tipo de dado para fins publicitários significa apenas que ele finalmente estará respeitando a lei. Se antes ele coletava esses dados, que só podem ser obtidos se houver consentimento expresso dos pais, estava violando a medida", explica. 

Para Livia, um ponto de atenção ainda relevante é a publicidade dentro do conteúdo: "As crianças são expostas a anúncios diversos – antes, durante e depois dos vídeos que assistem. Então elas seguem correndo o risco de se deparar com conteúdos impróprios para a idade. Já recebemos, no próprio Alana, denúncias sobre canais (da Internet) infantis que, entre um vídeo e outro, exibiram comerciais de bebidas alcoólicas. E isso dentro de um perfil de conteúdo infantil. Existe ainda a problemática da publicidade velada, isto é, por meio de canais patrocinados por marcas ou vídeos de unboxing".

Por fim, a advogada especializada fala ainda sobre as crianças que, hoje, trabalham como youtubers. "O trabalho infantil no Brasil é proibido – há exceções, como jovem aprendiz e trabalho artístico, mas ambos dependem de autorização da Vara da Infância e da Juventude, que vai levar em consideração tópicos como horas e turno de trabalho e acompanhamento psicológico. Como esses youtubers mirins normalmente trabalham das próprias casas, não passam por essa questão. É um assunto que também está em discussão", explica. "Achamos positivo que as crianças tenham a liberdade de expressão que a internet proporciona e que, como criadoras de conteúdo, se tornem sujeitos ativos na sociedade. Mas precisamos garantir a proteção e a segurança delas dentro dessa plataforma", completa. Livia menciona ainda que os vídeos produzidos pelas próprias crianças que mostram, entre outras coisas, suas rotinas, hobbies e hábitos, acabam por incentivar o consumismo e o desperdício, por exemplo, o que por si só já é problemático.

Para finalizar, a advogada cita um levantamento da ESPM Media Lab de 2017 que concluiu que dos 100 canais de maior audiência do YouTube no Brasil, 52 apresentam conteúdos feitos por ou para crianças. "Ou seja, é fato que elas estão totalmente inseridas nesse ambiente. Isso não pode ser ignorado e também não podemos achar que será mudado. As mudanças são positivas, mas ainda há muito a ser feito nesse sentido. Esperamos que, mais pra frente, após a adoção das novas regras, o Google divulgue dados de cumprimento e monitoramento da sua nova legislação, de forma a impedir futuras irregularidades", conclui.

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