Seis fragmentos culturais que ditam o que está em alta no Brasil

Iara Poppe, especialista em pesquisa da Globo (Foto: Globo/ Manoella Mello)

Nesta terça-feira, dia 27 de maio, teve início da programação do Rio2C, encontro de criatividade da América Latina, que acontece na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, até o próximo domingo, dia 1º de junho. Neste primeiro dia, a Globo ocupou um dos palcos para promover o "Summit Acontece Globo", com uma agenda dedicada a apresentações e debates sobre tendências de mercado, parcerias, jornalismo, dramaturgia e esporte. 

Iara Poppe, especialista em pesquisa da Globo, apresentou o estudo "Ginga Pop: O que está por trás do que hita no Brasil?", que pode ser consultado pela Gente, plataforma de estudos e insights da empresa. A pesquisa reúne seis fragmentos culturais, isto é, pontos da cultura brasileira que refletem e conectam o que está em alta aqui e agora. "Os fragmentos culturais são como pedacinhos do DNA da cultura brasileira que se manifestam na vida real das formas mais criativas possíveis. Mostram quem é o Brasil e o que está por trás dos nossos comportamentos. E são coisas perenes", explicou Poppe. "O que esses seis fragmentos têm em comum é um traço muito forte das culturas brasileiras: a remixagem. Essa mistura. Nossa essência brasileira é de sermos 'misturadores', isso faz parte da nossa cultura. Misturamos na música, na gastronomia, na cultura de forma geral. Por isso a remixagem sempre estará presente nos nossos fragmentos culturais", destacou. 

O primeiro fragmento cultural por trás do que está "bombando" no Brasil é um ponto chamado pelo estudo de "Conheça o meu lugar", e diz respeito sobre como a conexão com o próprio território tem se configurado como um importante marcador de identidade. A noção de brasilidade simplista, que resume os símbolos nacionais ao samba e ao futebol, está em crise. O reconhecimento do território como um marcador de identidade é o resultado de anos de reivindicações por visibilidade e representatividade a partir de suas complexidades, e não apenas delas. Na prática, isso significa que a valorização daquilo que torna o território único, a representação dos sentimentos e das relações que se formam dentro desse território e o uso orgulhoso de símbolos, que muitas vezes são estereotipados por aqueles que estão de fora, são questões que estão por trás do que "hita" no Brasil, e que, portanto, pode nortear a produção de conteúdo. Nesse sentido, o Norte e o Nordeste ganharam foco, e esse foi um dos primeiros movimentos desse fragmento. 

"Temos uma diversidade abundante no Brasil, e o interesse do público por novas territorialidades é refletido nas produções audiovisuais e editoriais", disse a especialista, que citou como exemplos as séries "Cangaço Novo", do Prime Video, e "Pablo e Luisão", recém-lançada no Globoplay. Ela lembrou que, nesse caminho, a periferia também é território. Na série "Arcanjo Renegado", por exemplo, as identidades periféricas são construídas e moldadas pela luta diária e pela resistência. "Isso se manifesta também no público. É sobre o poder que a audiência tem de reconhecer aquilo que está fortemente marcado em suas raízes e validá-lo em suas vivências contemporâneas". 

Outro fragmento foi chamado de "Amizade também é amor", e fala sobre como a celebração das relações e parcerias não românticas está ganhando protagonismo nas representações afetivas – o que faz sentido, uma vez que quase a metade da população brasileira é solteira e que crescem os novos arranjos familiares, impulsionando as pessoas a falarem sobre outros tipos de relações e, principalmente, a buscarem oportunidades de celebrar essas relações. "A família é importante para o brasileiro, mas podem ser várias configurações diferentes de família. E isso tem aparecido nas expressões culturais. Relações pessoais, criativas e profissionais geram negócio e inspiram parcerias que se conectam com o público. As representações têm sido múltiplas – e o público responde bem. Pra o audiovisual, é uma riqueza", pontuou. Como exemplos de produções, ela citou a série "As Five", do Globoplay, e a amizade de Sardinha e Solange explorada no atual remake da novela "Vale Tudo". 

O terceiro fragmento, "Religião fora do armário", reflete o fato de que o Brasil é um país que tem muita fé. Entre os jovens, 78% diz ter alguma religião. "Estamos vivendo uma fase de religião de dentro para fora, isto é, um momento em que se debate esse tema – e isso, claro, se reflete nas produções e na arte", analisou Poppe. No conteúdo, isso pode ser explorado de forma mais didática mesmo. Na novela "Renascer", por exemplo, foi exibida uma cena em que dois personagens de diferentes religiões conversavam sobre suas diferenças e similaridades. "E de um jeito muito brasileiro, com um cafezinho, num papo frente a frente". A religião também pode ser estética: ela se expressa no visual e no estilo de vida e é uma narrativa que tem a capacidade de se conectar com as pessoas. No pop midiático, ela também ganha o grande público. No Brasil, o gospel é o segundo gênero musical mais ouvido, ficando atrás apenas do sertanejo. Além disso, somos o país que mais consome playlist gospel no mundo. E, fora do gênero, muitas músicas do pop têm falado sobre o tema, de artistas como Iza, Mc Tha e Anitta. "As pessoas se posicionam pela fé", enfatizou a especialista. 

Na novela "Vai na Fé", foram retratados personagens evangélicos e cenários em terreiros de forma natural, sem deixar de lado o combate à intolerância religiosa. Em "Dona de Mim", por sua vez, um dos protagonistas é um policial evangélico que segue os ensinamentos do pai. No mercado publicitário, a tendência também já é uma realidade: a Avon apresentou signos de religião como parte de suas campanhas e teve um bom resultado. 

"Realidades alternativas" é um fragmento cultural que entende que, num momento de "policrise", a tentativa de desconexão se manifesta em formas criativas de repensar a realidade. Como a nossa realidade imediata está ligada a grandes questões globais, como conflitos bélicos, polarização política e crise climática, por exemplo, entram em cena a inventividade, o humor e o talento criativo, que criam "delírios" para as pessoas se protegerem daquilo que não dão conta. Esses novos comportamentos aparecem nas redes sociais, com tendências como "recession core", que prega o minimalismo e a redução do consumo, e "hope core", com conteúdos de positividade e inspiração. Há ainda as pessoas que se posicionam propositalmente como delusionais, isto é, quase que vivem alienadas, acreditando que o melhor está por vir, e outras que optam por diferentes estratégias, como romantizar a rotina, minibar os problemas e encarar a vida como ficção. 

"Para falar em realidade alternativa, voltamos para a questão da nostalgia, do conforto familiar. A fuga da realidade também está nostálgica no consumo de aparelhos. Hoje, muita gente voltou a usar câmeras digitais e telefone do tipo 'tijolão', e escolheu não ter redes sociais. Tudo isso se tornou cool. A nostalgia está nesse lugar de criar uma nova realidade a partir desse contexto difícil", detalhou Poppe. 

Na arte e na cultura, isso já chegou ao mainstream. Um exemplo é o filme vencedor do Oscar de 2023, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", que olha para esse lugar de realismo fantástico. O sucesso dos reality shows é outro exemplo: tem a ver com esse desejo do público de acompanhar uma realidade que não é a sua. É parecida, mas é outra. Ainda que controlada. Nessa onda, também surgem as fan fics e o boom dos doramas – um universo cheio de novelas e séries com personagens envolvidos em histórias paralelas e fantasiosas. 

Na sequência está a "Mudança de Ares", um movimento que vem muito como herança da pandemia. Anteriormente, as grandes capitais ocupavam esse lugar de desejo de emprego, moradia, mais acessos. Hoje, as cidades pequenas viraram esse ponto de aspiração. No Brasil, 78% das pessoas vivem fora das 27 capitais. O Brasil contemporâneo se descentraliza na busca por aquilo que é simples – mesmo que isso pareça muito subjetivo. Nesse caminho, o Centro-Oeste se tornou um dos centros das atenções. O estilo cosmopolita de Brasília vive em contraste com o apagamento que acontece no interior do Centro-Oeste. São outras histórias menos noticiadas e não menos brasileiras. De acordo com o Censo, o Centro-Oeste é a região menos populosa do Brasil. A favela de Sol Nascente é um exemplo de contraste social: a capital do país tem a maior renda e a maior favela do Brasil. Na produção cultural, a novela "Terra e Paixão" trouxe obras de artistas populares da região, como Siron Franco e Moacir Sodré, inspirando os cenários da vida interiorana. Outro exemplo de conteúdos que exploram esse Brasil profundo é o programa "Avisa lá que eu vou", da Globo, no qual Paulo Vieira viaja pelo país conversando e conhecendo quem são as pessoas que moram nessas cidades mais afastadas dos grandes centros. 

Por fim, a "IA já é nossa": essa é a ideia central do sexto fragmento cultural que dita o que está em alta no país. Esse ponto reflete sobre como a sagacidade e a remixagem brasileira falam forte na adoção rápida e criativa da inteligência artificial – como exemplo, a especialista citou a onda de memes feitos com IA que mostram como seriam as grandes divas pop se fossem brasileiras. E, para além da adoção das novas ferramentas para o humor, o Brasil tem conseguido usá-las da maneira "séria" também – a própria Globo usa dessas possibilidades para otimizar a criação humana em suas séries, como "Justiça 2", por exemplo, no qual foi possível mostrar um personagem cadeirante andando com a ajuda da IA. Para além da televisão, áreas como a música e o design também já estão apostando bastante na novidade. 

"A ascensão da IA gera também debates para nossa sociedade sobre regulação, possíveis usos e direitos autorais. As ferramentas estão evoluindo de forma cada vez mais acelerada, por isso essas discussões não podem sair do foco", alertou a pesquisadora. 

 

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