Cinematecas Brasileiras

Público do segundo dia da Semana ABC, na Cinemateca Brasileira

"Arquivos fílmicos são frágeis e precisam ser preservados e protegidos.  Nós precisamos zelar por isso para que futuras gerações possam traçar esse extraordinário desenvolvimento centenário da linguagem visual, desde o seu início."

A citação acima é de Martin Scorsese, aclamado diretor de Hollywood. Muitas das ações, esforços e conquistas da preservação audiovisual nos Estados Unidos e em vários outros países têm sua participação e entusiasmo, inclusive de clássicos do cinema brasileiro. O maior mérito de Scorsese desde o início foi se aconselhar com os profissionais especializados em restauração e criar um trabalho conjunto de arquivos audiovisuais em todo o mundo. E o Cinema Brasileiro foi importante para Martin Scorsese: ele preserva cópias de alguns filmes da terra de Humberto Mauro, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles e Fernando Meirelles. 

Quem conhece um arquivo audiovisual por dentro nunca mais esquece. Não é a toa que os paulistanos têm uma relação de amor com a Cinemateca Brasileira, instituição destinada à conservação, restauro e difusão do nosso patrimônio televiso e cinematográfico. Para mim, foi amor à primeira vista.

O Brasil tem acervos cinematográficos espalhados por todo o território. Pensar só no acervo paulistano, que é o maior e mais importante do país, seria ignorar o rico acervo em outras instituições. No conjunto temos um dos mais importantes acervos do mundo e a obrigação de preservá-lo. Poderíamos estar ao lado dos países que detém as mais importantes redes de cinematecas do mundo, como a Rússia, a Inglaterra e a França.

Se estes acervos estivessem integrados entre si, a uma Escola Nacional de Cinema, com extenso currículo, laboratórios e equipamentos, e os filmes disponíveis para todas as universidades e escolas de cinema do Brasil e do mundo estaríamos dando uma contribuição inestimável para formação dos futuros cineastas.  Isso sem falar nos canais de interação com a sociedade como um todo. O Audiovisual é a arte de maior alcance por sua incomparável infraestrutura de distribuição, que avança em velocidade disruptiva.  

Cabe à Secretaria Especial da Cultura a elaboração das políticas públicas de preservação, mas caberia ao estado também a obrigação de administrar e explorar diretamente esse imenso patrimônio, em larga medida pertencente às empresas de produção audiovisual?  Acho que não. É o que pensam também os técnicos do setor de preservação audiovisual brasileiros, extremamente gabaritados, dedicados, competentes e com reconhecimento mundial.

Bastaria um ano onde o governo abrisse mão da Desvinculação das Receitas da União (DRU), dos contingenciamentos e da não liberação de recursos aprovados pela lei orçamentária da União (LOA) e empenhados, do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), reformulado com um braço exclusivo para a preservação, para disponibilizar os recursos necessários para restauração e digitalização de todo o acervo nacional. Isso colocaria o acervo brasileiro dentre os maiores, mais acessíveis e mais bem qualificados tecnicamente do mundo.

Não faltam recursos, faltam boas políticas públicas e vontade política. Mais uma vez a velha e má alocação de recursos públicos nos condena ao atraso.  Alternativamente um investimento anual de R$50 – 60 milhões durante 10 anos já seriam suficientes. Metade poderia vir do FSA e a outra metade de renúncia fiscal das grandes estatais e grandes empresas privadas brasileiras.

Um Edital de restauração do FSA foi anunciado em fins de 2018 mas acabou sendo suspenso. Lançá-lo sem uma política pública nacional de preservação seria um paliativo e não a solução definitiva. Não faz sentido o estado preservar e/ou restaurar obras cujos direitos não tenham sido cedidos para exploração com fins educacionais e culturais. Os produtores e detentores de direitos deveriam escolher entre pagar pelos serviços prestados ou ceder os direitos ao estado ou às entidades que vierem a assumir a responsabilidade pelos acervos. Também não faz sentido o FSA financiar o restauro de obras que não estejam depositadas em cinematecas públicas ou em entidades sem fins lucrativos.

A experiência da Cinemateca Brasileira de publicização foi muito bem intencionada e visava pôr fim a uma crise que se iniciou na gestão da Ministra Marta Suplicy, no entanto o processo não trouxe os resultados esperados. A vencedora do edital já tinha contrato com o Ministério da Educação e a Cinemateca foi incluída neste contrato tendo o Ministério da Cultura, depois sucedido pelo Ministério da Cidadania, como interveniente. Para piorar a situação, a vencedora do edital tinha disputas judiciais com a União, que levaram à não renovação do contrato com o Ministério da Educação. A Cinemateca se vê mais uma vez envolvida em uma crise que coloca um patrimônio de valor incalculável em risco.

Brasília não pode, não deve e não precisa da transferência da Cinemateca Brasileira para ter uma cinemateca importante, pois já reúne alguns acervos. Além disso, seguindo os passos de Scorsese, uma consulta aos profissionais de preservação, reunidos na Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, indicaria ser um local seco demais em certas épocas do ano para a guarda de materiais audiovisuais, e mais importante do que isso, recomendaria o reconhecimento do conjunto de arquivos, seu fortalecimento pela descentralização dos recursos e pela formação de uma rede nacional. Na era digital não faz mais sentido ter um único local, um único gestor, uma única instituição gigante. Esse tempo já passou no mundo inteiro.

O Rio de Janeiro tem o segundo maior acervo do país, dividido entre Museu de Arte Moderna (MAM), Centro Técnico do Audiovisual (CTAv) da Secretaria do Audiovisual e Arquivo Nacional do Ministério da Justiça. Mas não termina aí, Porto Alegre e Curitiba também possuem cinematecas, e Museus da Imagem e do Som de várias capitais brasileiras também têm acervos muito importantes, assim como universidades e outras instituições culturais, mas muitos desses acervos não estão armazenados em condições técnicas ideais e não há um sistema que unifique e dê a conhecer os dados de todos os acervos.  

No caso do Rio de Janeiro, o MAM está fazendo um trabalho incrível de transferência de grande parte do acervo de sua cinemateca para um local mais adequado, mas não ideal, liberando espaço do chamado Bloco Escola, anexo ao museu.  Imaginem o Bloco Escola do MAM abrigando a sede da Escola Nacional de Cinema. Mas pode-se pensar também na publicização do acervo do CTAv, deixando o Centro Técnico focado na capacitação profissionalizante e talvez, por que não, transformando-o no embrião da sonhada Escola Nacional de Cinema! E o ideal técnico também poderia ser facilmente alcançado.

A união tem um prédio que não utiliza e está parcialmente ocupado pela polícia civil do Rio de Janeiro, que reúne as condições ideais para a guarda desses acervos.  O prédio tem ainda uma localização privilegiada, fica na Lapa, no centro do Rio. Trata-se do antigo IML, que tem câmeras frigoríficas, instalações elétricas e fundações ideais para abrigar acervos fílmicos.  Por que não reformar o prédio com recursos do Proinfra – Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) ou com financiamento do BNDES para preservar esse imenso e riquíssimo patrimônio?  Já pleiteado pelo MAM, poderia abrigar os acervos do CTAv, que faz um trabalho incrível de preservação do seu acervo, e do Ministério da Justiça, com redução dos custos totais de manutenção e administração dos acervos cariocas.

O Ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio e o Secretário Especial da Cultura Mario Frias anunciaram que em breve abrirão um novo chamamento público, o que sem dúvida alguma é uma decisão acertada. Me parece que um modelo híbrido onde o estado mantém a gestão administrativa, mas terceiriza a preservação e restauro das obras, é um modelo que poderia ter um excelente resultado.  As fontes dos recursos para preservação e restauro poderiam vir, repito, do FSA e renúncia fiscal das empresas públicas e privadas, bastando o apoio institucional do Ministério do Turismo. 

O ideal seria futuramente transformar todas as cinematecas numa ou mais fundações integradas em rede e independentes do estado, com autonomia financeira e de gestão, mas governadas por uma política nacional de preservação da nossa memória fílmica, como a sugerida pela Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

O tema não está restrito à capital de São Paulo e à Capital Federal, mas sim a todas as regiões do Brasil.  É um tema de grande interesse nacional.  Está na hora de deixar a guerra cultural de lado e colocar a cultura brasileira no lugar que ela merece.

* Sócio-fundador da LightHouse Produções Cinematográficas Ltda., ex- Secretário do Audiovisual

2 COMENTÁRIOS

  1. Caro Rihan,
    Parabéns! Esta proposta é sensacional, traria a dinâmica e restauraria a relevância de todos os acervos,além do que, geraria milhares de postos de trabalho e formação profissional. Temos acervos em todas as regiões do Pais.
    É fundamental associar utopia, juventude e talento. Tudo isto você demonstra nesta proposta. Lamentavelmente, vemos centenas de outras declarações contrarias ao discurso do Presidente da República : MENOS BRASILIA E MAIS BRASIL.
    Siga em frente e conte com nosso apoio.
    Abs

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