Produtores veem no pós-pandemia oportunidade de repensar financiamento, produção e distribuição

Nesta quarta-feira, 28 de outubro, primeiro dia do IV Fórum Mostra, parte das programações da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, os produtores Claudia da Natividade, da Zencrane Filmes; Caio Gullane, da Gullane Entretenimento; e Mayra Lucas, da Glaz Entretenimento, se reuníram de forma virtual para conversar sobre a volta aos sets de filmagens e partilhar os desafios envolvidos nessa retomada. Das adaptações no roteiro à inclusão de profissionais de saúde nas equipes, conclui-se que muita coisa mudou. Apesar de diferente, o "novo set" vai se revelando possível. No entanto, mais do que se adaptar ao trabalho no dia a dia, o contexto do pós-pandemia deixa ainda mais clara a necessidade de mudança nos modelos de negócio do audiovisual.

A Zencrane Filmes estava no meio de uma filmagem de longa-metragem quando a pandemia chegou ao Brasil e as produções foram interrompidas. Agora, o trabalho recomeçou. Entre as principais adaptações feitas no set, Natividade elenca a presença de profissionais da saúde o tempo todo; um cronograma de testagem para equipe, elenco, dublês e figurantes; uso constante de EPIs, bem como higienização das mãos; distanciamento social; protocolo de alimentação rigoroso, com as refeições realizadas em silêncio, em baias individuais e fechadas; proibição do uso de celular dentro do ambiente de filmagem e sanitização de figurinos, tecidos e objetos. "Com ajuda de uma equipe médica, criamos um protocolo especial para esse projeto, considerando todas as suas especificidades. Os primeiros dois dias foram os mais difíceis, pois ainda estávamos em processo de adaptação. Mas depois, acho que todos já internalizamos essas questões e tudo fluiu absolutamente bem, até fiquei surpresa. Esse sistema quase que militar trouxe foco para a equipe e deixou o set mais rápido e ágil. Trabalhamos com foco, precisão e velocidade", relatou a produtora. Sobre as adaptações do roteiro, ela afirma que foi feita apenas uma alteração da cena final, que envolveria uma reunião muito grande de pessoas.

A Gullane Entretenimento, por sua vez, estava envolvida em diversos projetos quando a pandemia começou – especialmente com duas séries às vésperas do início das filmagens. Isso significa que os elencos já estavam ensaiando, as equipes já estavam contratadas, os cenários já estavam montados, as locações já estavam escolhidas e por aí vai. Uma delas seria filmada por 12 semanas e, a outra, por 20. "Foi um choque muito grande para adaptar a situação e entender como conduzir esses dois projetos. Vale ressaltar que é muito diferente quando estamos falando de um projeto em parceria com um grande player, no qual você trabalha diretamente com um canal ou plataforma, porque aí você divide as responsabilidades e decisões. No caso de trabalhos desse tipo, os players foram muito participativos, e assim conseguimos dar suporte às equipes e criar novas relações a partir do que estava acontecendo", contou Caio Gullane.

No período, a empresa adotou o home office e uma política de redução de salário e de carga horária, mas não precisou demitir ninguém. "Estabelecemos um modelo de trabalho remoto que funcionou bem a partir do momento em que entendemos que a situação duraria meses. Além disso, investimentos muito no departamento de desenvolvimento, na criação de histórias mesmo. Depois, fizemos um estudo do que precisaria voltar logo – e como voltaria. Esse processo passou por adaptações de roteiro, identificação dos maiores grupos de risco, criação de estratégias de filmagem… E fomos entendendo também o que isso geraria de custos. Voltar a filmar em um momento de pandemia, fazendo valer os protocolos, aumenta de 20 a 40% os custos. E quando se trata de um projeto independente, ainda mais com as dificuldades de fomento hoje em dia, é ainda mais difícil", explicou. Sendo assim, o plano de retomada da Gullane naturalmente priorizou os projetos em parceria com grandes players, e a produtora se prepara para voltar aos sets agora no mês de novembro. "Estamos organizando os outros projetos, que são independentes e que utilizam incentivos, para retomar mais pra frente. Hoje, não temos muita clareza sobre como vamos buscar recursos complementares para eles", ressaltou o produtor. Após a retomada das séries, a Gullane vai trabalhar em um longa de animação – que é mais viável – da "Arca de Noé", inspirado nas músicas de Vinicius de Moraes, em coprodução com a Índia.

"Para esse retorno, precisamos de um olhar global, não existe uma ação só. Cada projeto terá suas especificidades e, por isso, seus protocolos. Precisamos da colaboração de todos e, principalmente, da consciência de todos os envolvidos nos trabalhos", alertou Gullane. Como tendência das produções desse pós-pandemia, o produtor apontou o uso de efeitos especiais, que já é comum nos projetos da empresa: "Estamos aprofundando técnicas. Nós sempre usamos os efeitos especiais, nunca tivemos receio disso. Agora, são eles que viabilizarão uma das nossas séries, por exemplo. Não é algo típico do repertório básico do audiovisual brasileiro, mas acho que é uma área que vai crescer, como aprendizado da pandemia. E teremos muitas dificuldades, óbvio. Cenas de beijo na boca, em grandes shows… Elas ainda são desafios".

Mayra Lucas, da Glaz Entretenimento, estava com dois longas para entrar em filmagem antes da chegada da pandemia – um deles foi adiado para o momento em que houver vacinação, por uma decisão que partiu do distribuidor, que ficou com receio de começar o processo de pré-produção e ter que parar. Existe o medo de uma segunda onda de Covid-19, tal como está acontecendo na Europa, por exemplo. "Esse filme, por enquanto, está guardado. O que é uma pena, porque depois de tantos meses de trabalho queremos voltar para o set e gerar empregos – é uma questão humanitária mesmo. Mas é claro que queremos fazer isso devagar e com segurança", declarou Lucas. Já o outro projeto – "Bem-vindo a Quixeramobim", que é o próximo longa de Halder Gomes (de "Cine Holliúdy") – será rodado em breve. Para isso, a produtora está num processo de "quarentenar a cidade", como define Lucas, em um acordo que envolveu todos os moradores da cidade, que é bem pequena. "Temos essa responsabilidade. Afinal, estamos indo com profissionais de grandes capitais para uma cidade que não foi atingida pela pandemia. Entre outras medidas, separamos hotéis em três níveis, de acordo com a proximidade que cada grupo de pessoas tem com os atores no dia a dia de filmagem, além do crongrama de testes, uso de EPIs e etc", explicou. Lucas ainda disse que, quem conhece o trabalho do diretor sabe que ele filma muitas cenas de festas, com grandes multidões mesmo, e que por isso o roteiro – que já estava sendo trabalhado há três anos – precisou de uma série de adaptações, que envolveram cortes de locações e número de pessoas nas cenas, por exemplo.

A produtora acrescentou que no período de pandemia, não só a produção de conteúdos foi afetada, mas o lançamento também – a própria Glaz tinha cinco lançamentos previstos para o cinema para este ano e que serão adiados. "Estamos bem preocupados com a volta do cinema. Não sabemos quantas cadeias vão resistir depois de tanto tempo fechadas. A gente sabe que os custos de manutenção dos cinemas são muito altos. Principalmente nas cidades manores, que com certeza sofreram mais com essa situação. Nessa retomada, uma sala com 20, 30 pessoas, talvez nem compense a operação. E sabemos ainda de um represamento gigantesco de blockbusters para serem lançados – nosso conteúdo nacional vai sofrer nessa fila. É um momento do cinema se juntar e olhar pra dentro, pensando em outras soluções para nossos planos de negócio, assim como a indústria no mundo todo está fazendo", refletiu.

Necessidade de mudança impulsionada pelo contexto da pandemia

Como Lucas ressaltou, o cenário de crise – que vale reforçar que o audiovisual já vinha enfrentando desde antes da chegada da pandemia ao Brasil – impulsionou o mercado a pensar ainda mais em novas formas de financiamento, produção e distribuição, uma vez que, além dos problemas com a Ancine, veio o fechamento das salas de cinema e a interrupção dos trabalhos nos sets de filmagem, por exemplo. "Na pandemia, percebemos que existe flexibilização em sistemas que antes acreditávamos serem estanques. O mundo ficou menor, agora sabemos que podemos fazer muita coisa remota, agregando gente do mundo inteiro. Por isso, faz muito sentido agregarmos novos modelos de negócio – e precisamos urgente criá-los, pois o que estamos passando com a Ancine não tende a melhorar", opinou a produtora da Glaz.

Nesse sentido, Gullane pontuou que as políticas públicas continuadas que o Brasil vinha fazendo eram extremamente estratégicas para o país – uma vez que estão ligadas ao contar histórias em português, ver o Brasil representado na tela – mas que hoje em dia o Governo parece não entender essa relação de importância. O que ele tem notado – e o que tem sido muito relatado por grandes produtoras do mercado audiovisual brasileiro – é que a alternativa mais viável tem sido produzir para grandes players, como canais de plataformas – o que é uma bom caminho, claro, mas que esbarra na questão da independência do conteúdo e da liberdade de produção: "A gente sabe contar boas histórias, mas eu não quero fazer isso só para um grupo internacional. A autoralidade que muitas vezes um filme quer trazer está na cabeça do autor e do artista, e não do executivo do canal ou do streaming. Não é comum que alguém que esteja te pagando para produzir te dê 100% de liberdade. Essa produção a quatro mãos é boa, gera bons projetos. Mas precisamos criar bons projetos totalmente autorais e brasileiros, protegendo nossa cadeia produtiva de forma saudável".

Para Lucas, "o negócio não será mais como era antes e não só por causa da Ancine, e sim por uma questão do todo". A produtora diz que os canais da Pay TV, por exemplo, sempre foram muito parceiros com os projetos de animação do Copa (o estúdio de animação da Glaz), mas as receitas vem caindo e, por isso, eles estão em uma encruzilhada. Mesma coisa com as majors de cinema – com as salas fechadas por tanto tempo, não tem recurso. "Nesse sentido, é muito bem-vinda a chegada de novos players. Estamos vendo o novo surgir e ainda bem que a demanda vem para a nossa produção independente também. Estamos aqui para contar nossas histórias, mas é importante deter algumas propriedades para poder explorá-las. Agência e Governo precisam entender a importância do capital ir pra fora e retornar. Nós distribuímos séries de animação pelos cinco continentes – é um dinheiro que retorna. Nossa relação com os players é ótima, mas queremos ter nossas propriedades", salientou.

Por fim, Lucas completa: "Entendo a aflição dos exibidores vendo os filmes indo direto para VoD, mas eles também precisam entender que a gente tem que vender nossos conteúdos. Precisamos juntos, de cabeça e coração aberto, criar nossas alternativas. Não é uma guerra entre janelas. Temos que nos reorganizar para todo mundo ganhar". Gullane finaliza: "O que a gente sempre buscou é o diálogo, para conseguir encontrar a melhor opção para todos. O audiovisual brasileiro não é inimigo de ninguém, a não ser da destruição do nosso setor. Para fortalecê-lo, vamos lutar até o final".

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui