A TV Globo inaugurou nesta terça, 29, no Rio de Janeiro, sua primeira estação piloto para transmissões da DTV+, a TV 3.0. O lançamento, parte das comemorações dos 100 anos do Grupo Globo e 60 anos da emissora, ocorreu por meio de uma licença de caráter científico e experimental concedida pelo Ministério das Comunicações e pela Anatel. A iniciativa visa testar a nova arquitetura tecnológica, modelos de negócio e formatos de conteúdo, antecipando-se à publicação de um decreto presidencial que definirá oficialmente o padrão da futura TV digital brasileira. Autoridades do governo e representantes da indústria participaram do evento.
O projeto da DTV+ representa um passo para a inserção da TV aberta na economia digital, buscando combinar os atributos tradicionais do meio – como gratuidade, alcance massivo e qualidade – com funcionalidades do ambiente online, como personalização de conteúdo e publicidade, além de interatividade. "É com muito orgulho que celebramos hoje um marco na história da comunicação brasileira. A nova estação experimental da DTV+ marca o início de uma nova era para a televisão aberta no Brasil, que tem, sem dúvida, uma das TVs abertas mais relevantes do mundo", afirmou Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo. Ele complementou: "A DTV+ vai abrir a possibilidade de levar essa audiência massiva para o ambiente digital. É uma nova experiência de ver TV, com mais oportunidades para o público e para o mercado".
Marinho também ressaltou o histórico de inovação da empresa. "Como disse meu avô, Roberto Marinho, na inauguração da TV Globo, 'uma empresa nunca está pronta, estamos sempre construindo, sempre em movimento'. Ele é feito da nossa capacidade de criar milhares de primeiras vezes: a primeira transmissão ao vivo, a primeira transmissão a cores, o primeiro uso de videotape, da computação gráfica. A Globo foi a primeira emissora aberta a implementar a TV digital em 2007 e a primeira a levar o sinal digital para todas as capitais brasileiras em 2012. A DTV+, é mais um passo rumo ao futuro. Ela fortalece a vocação da TV aberta brasileira, respeita a sua história e amplia o seu papel. Isso só é possível graças à colaboração intensa entre setores do governo, radiodifusores, fabricantes, desenvolvedores, pesquisadores e instituições de ensino".
Apesar do pioneirismo da Globo, a definição formal do padrão DTV+ ainda depende de regulamentação governamental. Wilson Diniz Wellisch, secretário de Comunicação Social Eletrônica do Ministério das Comunicações, confirmou que o processo está avançado: "Estamos em vias de publicar um decreto do Presidente da República, já estabelecendo qual vai ser o padrão da TV brasileira, mas a Globo já tomou a frente, já começou a fazer os testes com essa situação que houve, e hoje a gente está vendo isso tudo explorar a realidade". Ele expressou satisfação em ver o trabalho conjunto tomando forma.
Representantes de órgãos reguladores e do governo presentes no evento destacaram a importância da evolução da TV aberta. Carlos Baigorri, presidente da Anatel, afirmou que a agência segue a política pública para garantir que a radiodifusão "aberta, gratuita, democrática, chegue sempre com melhores padrões de qualidade". Ele argumentou que, em um cenário de desinformação em redes sociais, "uma radiodifusão aberta, gratuita, de qualidade onde o jornalismo sério é a regra, essa certamente é a melhor medida contra a desinformação e contra a mentira".
Sidônio Palmeira, ministro de Estado da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, ressaltou o papel do governo na condução do processo, buscando um consenso entre emissoras públicas e privadas. "Nessa integração permanente entre Internet e televisão aberta, além de ampliar muito a qualidade e o alcance das emissoras públicas e privadas, vamos criar uma plataforma de serviços públicos acessível a todos os televisores que vai beneficiar diretamente os nossos cidadãos", disse. Ele também conectou a DTV+ ao fortalecimento do jornalismo profissional como antídoto à desinformação.
Sônia Faustino, secretária-executiva do Ministério das Comunicações, classificou o início das transmissões como um "novo capítulo" que traz mais qualidade, interatividade e acessibilidade. Ela reiterou o compromisso do ministério em promover a inovação para todos os radiodifusores. Alex Braga Muniz, diretor-presidente da Ancine, viu o lançamento como uma confirmação de que "o audiovisual, a indústria […] do entretenimento é uma indústria de inovação".
Tecnologia e Experiência do Usuário
A estação piloto opera com transmissores em dois locais do Rio de Janeiro: um no Pico do Sumaré, cobrindo parte da Zona Sul e Centro, e outro na Igreja da Pena, na região da Barra da Tijuca e Zona Oeste. Essa configuração, com transmissores de baixa/média potência (3 quilowatts no Sumaré), permite testes de segmentação geográfica de conteúdo e publicidade. A expectativa é que a implementação definitiva no Rio utilize cinco ou seis sites de transmissão.
A recepção do sinal DTV+ exigirá novos equipamentos: ou um televisor compatível ou um conversor (set-top box). Um protótipo do conversor foi desenvolvido em parceria com a empresa brasileira Vivensis. Um dos objetivos é simplificar a recepção, privilegiando o uso de antenas internas, que podem ser pequenas, finas ou até integradas ao próprio conversor ou televisor. Raymundo Barros, diretor de tecnologia da Globo e presidente do Fórum SBTVD, destacou a meta de garantir o acesso direto, com o ícone da DTV+ tendo proeminência na interface dos televisores. A qualidade de imagem prometida é 4K com HDR e 60 quadros por segundo.
Durante a demonstração no evento de lançamento, foram apresentadas funcionalidades focadas na experiência do usuário e em novos modelos de publicidade. Para o público, a DTV+ possibilitará interatividade durante a programação ao vivo. Exemplos exibidos incluíram:
- Futebol: Acesso a estatísticas da partida, votação no "craque do jogo", visualização de replays de lances importantes (como gols) sob demanda sem perder o jogo ao vivo, e personalização do áudio para ouvir apenas o som da torcida.
- Shows: Opção de escolher diferentes mixagens de áudio, como focar em instrumentos específicos (guitarra, baixo, bateria) ou ouvir apenas a voz do artista, além do áudio imersivo padrão.
- E-commerce: Possibilidade de comprar produtos relacionados ao conteúdo exibido na tela, como a camisa de um time, produtos usados em programas ou até mesmo assinaturas de serviços como o Globoplay, diretamente pelo controle remoto.
"A DTV+ une o melhor da sincronicidade, que é o poder de falar com todo mundo, de ter alcance de massa, ao mesmo tempo em que também traz o olhar individual, as ferramentas digitais e a personalização, o pertencimento, que é tão importante quando a gente fala de conexão", explicou Leonora Bardini, diretora da TV Globo. Ela mencionou que pesquisas com consumidores indicaram forte interesse nas funcionalidades de e-commerce e na capacidade de aprofundar informações, mas também a necessidade de não interferir na experiência principal, como assistir a uma novela. "Se você não quiser aquela interatividade, ela está ali disponível, mas ela só é ativada a partir do seu interesse", garantiu Bardini.
A personalização será viabilizada pelo login do usuário via Globo ID, a conta única que já integra os serviços digitais da Globo (G1, GE, Globoplay etc.). Com o login na DTV+, a emissora poderá oferecer conteúdos e publicidade segmentados. A base atual é de 140 milhões de Globo IDs. Barros ressaltou a responsabilidade com a privacidade dos dados gerados.
Novos Modelos de Negócio e Publicidade
Um dos objetivos centrais da DTV+ é modernizar os modelos de negócio da TV aberta, que permaneceram praticamente inalterados desde sua criação. "É a partir também da digitalização da nossa relação com o mercado publicitário, que seremos capazes de capturar receitas adicionais que permitirão que as emissoras de TV aberta façam os investimentos necessários para lançar a sua operação 3.0", afirmou Raymundo Barros.
A plataforma permitirá formatos de publicidade digital, como:
- Segmentação Geográfica: Exibir anúncios diferentes para regiões distintas dentro da mesma área de cobertura (ex: Zona Sul vs. Barra da Tijuca no Rio), sem necessidade de conexão à Internet no domicílio.
- Inserção Dinâmica de Anúncios (DAI – Dynamic Ad Insertion): Entregar publicidade personalizada para cada domicílio conectado à Internet, com base nos dados e preferências associados ao Globo ID do usuário.
Isso abre a TV aberta para verbas publicitárias hoje direcionadas majoritariamente para plataformas digitais. "A TV Aberta entra de vez no jogo do marketing digital, da publicidade digital, sem abrir mão de absolutamente nenhuma dos nossos atributos", disse Barros. Leonora Bardini destacou o valor para o consumidor: "É uma publicidade que fala não só com os meus interesses, mas com aquilo que está tangível e possível de alcançar", citando o exemplo de receber uma oferta de pizzaria que entrega no seu bairro. A expectativa é que pequenos e médios anunciantes também possam anunciar na Globo, associando suas marcas a conteúdos premium de forma direcionada e acessível.
Barros reconheceu o desafio de integrar as métricas de audiência tradicionais da TV, consideradas confiáveis e auditadas, com as métricas do ambiente digital, que descreveu como uma "terra de ninguém". Ele afirmou que a Globo está trabalhando para desenvolver métricas "auditadas, validadas e confiáveis" para as novas ofertas digitais.
Datacasting: Uma Oportunidade Adicional
A DTV+ também habilita o chamado "datacasting", que é a transmissão de dados (arquivos digitais) pelo sinal de radiodifusão, de forma massiva (um para muitos). Isso pode ser usado para atualizações de software, envio de conteúdo para dispositivos conectados ou outros serviços.
Durante a demonstração, foi exibido um teste de datacasting em parceria com a Eletromídia, empresa de mídia out-of-home (OOH) do Grupo Globo. Um conteúdo publicitário foi enviado via DTV+ para um totem digital, que o recebeu e exibiu sem necessidade de conexão à Internet convencional. Barros explicou que nos Estados Unidos, onde a tecnologia similar (ATSC 3.0) está sendo implementada, o datacasting é um foco importante, com aplicações como atualização de software de veículos e envio de dados de correção para GPS automotivo, aumentando sua precisão.
Questionado sobre a importância do datacasting para o modelo de negócio da DTV+ no Brasil, Barros afirmou que o plano de negócios da Globo foi construído para ser sustentável sem depender dessa receita. "O datacasting, pra gente, ele representa uma oportunidade ancilar que a gente vai explorar à medida que as oportunidades surgirem". Ele observou que, nos EUA, a ênfase no datacasting se deve, em parte, a limitações de espectro que restringem a oferta de vídeo em 4K e interatividade mais complexa. Barros acredita que, se o modelo de datacasting for bem-sucedido nos EUA, os mesmos clientes globais (como montadoras) demandarão o serviço no Brasil. "E aí, com isso, eles desbravarão o mercado e nós nos associaremos a ele", concluiu.
Próximos Passos e Futuro
Com a estação piloto no ar – inicialmente com uma grade de seis horas diárias no horário nobre –, a Globo pretende aprofundar os testes de tecnologia, usabilidade e modelos de negócio, em colaboração com parceiros da indústria (fabricantes, desenvolvedores, academia etc.). A empresa planeja disponibilizar receptores para alguns consumidores testarem a experiência em casa.
A expectativa da Globo é lançar as operações comerciais da DTV+ no Rio de Janeiro e em São Paulo a tempo da Copa do Mundo de 2026. O plano de negócios prevê a cobertura das 15 maiores praças do país (o chamado PNT) nos próximos cinco anos (até 2030) e de toda a rede de afiliadas em 10 anos. Barros mencionou que existem discussões com o governo e bancos de fomento, como BNDES e BIC, sobre linhas de financiamento para auxiliar os radiodifusores nos investimentos necessários para a transição.
Encerrando o evento, Raymundo Barros reafirmou o compromisso da emissora: "A TV aberta tem uma janela de oportunidade para digitalizar a forma como ela se relaciona com cada um dos consumidores e com o mercado […] o que a gente agora quer fazer é o contrário, é levar a TV aberta para que ela desempenhe tudo que a Internet tem hoje. E com isso garantir que ela manterá a mesma relevância que ela conquistou ao longo desses anos […] a Globo, reforçando esse compromisso de 60 anos, ela promete, ela se compromete, para que no DTV+, a Globo continue sendo a Globo que vocês todos conhecem, que o Brasil inteiro conhece, apenas mais forte, mais robusta".
O lançamento da estação piloto da DTV+ pela Globo marca um passo concreto na evolução da televisão aberta no Brasil. Ao antecipar-se à regulamentação final e iniciar testes práticos, a emissora busca moldar a integração entre a transmissão tradicional e as possibilidades do ambiente digital, explorando novas formas de interação com o público e o mercado publicitário.
São Paulo também receberá uma emissora de testes do DTV+ em breve. Neste caso, pelas mãos da Record, que também entrou com pedido de licença de transmissão experimental DTV+ em São Paulo.
(Colaborou Fernando Paiva)