As roteiristas Camila Brugés e Socorro Acioli, com mediação de Rita Lemgruber, debateram os desafios da transposição de obras literárias para o audiovisual em um painel no Rio2C. Durante a conversa, foram abordados os processos de adaptação de projetos como a série "Cem Anos de Solidão" e o futuro filme de "A Cabeça do Santo", levantando questões sobre fidelidade à obra original, a relação do autor com a nova criação e as particularidades do mercado.
Um dos pontos centrais da discussão foi o processo de perda e ganho inerente a qualquer adaptação. Ao falar sobre "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, a roteirista Camila Brugés descreveu o trabalho como um "processo de perdas e de deixar ir". Segundo ela, a prosa do autor é tão rica que seria impossível traduzi-la literalmente sem o uso de um narrador, uma decisão que a equipe de roteiro tomou após perceber que, sem ele, "não se sente a voz do Gabo". Brugés afirmou que, embora muitas imagens e histórias tenham ficado de fora, todas as decisões buscaram traduzir "o espírito e o tom da novela". O processo também envolveu debates sobre como tratar temas sensíveis da obra para uma audiência contemporânea, como a relação entre o coronel Aureliano Buendía e sua esposa criança. "Tivemos muitas conversas sobre o que queria dizer o Gabo, sobre se corrigíamos politicamente o Gabo em 2025", explicou Brugés.
A relação do autor literário com a adaptação de sua obra apresentou duas visões distintas. Socorro Acioli, autora de "A Cabeça do Santo", defendeu uma postura de distanciamento. "Eu quero vender e não quero acompanhar nada. Eu quero vender tudo o que eu escrever pro resto da minha vida", declarou. Para ela, a história que queria contar já foi contada no livro, e a adaptação é uma nova obra sob a responsabilidade de outros profissionais. "Eu preciso confiar em quem eu vou entregar", disse, referindo-se às diretoras Joana Mariani e Diane Maia, responsáveis pelas adaptações de "A Cabeça do Santo" e "Oração para Desaparecer", respectivamente.
Em contraste, o processo de "Cem Anos de Solidão" foi marcado por um diálogo constante entre roteiristas e diretores, que se estendeu até a pós-produção. A família de García Márquez estabeleceu como condição que a série fosse produzida na Colômbia, com talentos locais e falada em espanhol, para "honrar a novela".
As escritoras também abordaram a crescente pressão do mercado sobre a literatura. Brugés manifestou preocupação com a tendência de editoras perguntarem a autores, antes mesmo de lerem um manuscrito, se a obra pode ser adaptada para uma série. "Esse não pode ser o caminho. Eu acho que sempre encontramos histórias incríveis na literatura, porque os autores literários têm uma liberdade para fazer o que lhes der na vontade", afirmou.
O realismo mágico, presente na obra de ambas, foi outro tema explorado. Brugés explicou que na adaptação de "Cem Anos de Solidão", a equipe buscou evitar uma estética fantástica ao estilo "Harry Potter", entendendo que o gênero, para autores como García Márquez, era uma forma de "descrever da melhor forma o delirante que é a realidade na América Latina". Socorro Acioli complementou, afirmando que o termo "realismo mágico" foi, em parte, uma criação do mercado para vender livros. "Esse negócio de 'boom' latino-americano foi um nome que a gente inventou pra vender livro", citou, referindo-se à agente literária Carmen Balcells.
Questionadas sobre conselhos para profissionais que desejam adaptar uma obra, as painelistas ofereceram diferentes perspectivas. Acioli sugeriu uma busca por histórias em editoras menores e em regiões do Brasil com menor visibilidade, como o Norte. Brugés, por sua vez, ressaltou a importância da paixão pela obra. "Você tem que estar, de alguma forma, enamorado da obra. Porque eu acho que tem que partir de uma obsessão absoluta por tentar desentranhá-la", disse, acrescentando que o maior conselho é "ter muita resistência".
Ao final, o painel destacou as diferentes liberdades criativas entre o audiovisual e outras artes, como o teatro. Camila Brugés citou o exemplo de uma peça argentina sobre uma mulher cujo trabalho é masturbar pacientes terminais, uma comédia que, segundo ela, dificilmente seria produzida para as telas devido à correção política. "Que maravilha que existe o teatro para que esse seja o caminho", concluiu, deixando a reflexão sobre as fronteiras e possibilidades de cada linguagem narrativa.