A cegueira do Congresso e o silêncio do Governo na (tardia) regulação do streaming

(Foto: Pixabay)

No início de outubro, o Ministério da Cultura (MinC) firmou um acordo de cooperação entre Brasil e França, tendo entre os objetivos o "aprimoramento de políticas públicas" para o audiovisual, num diálogo com o Centre National du Cinéma et de L'image Animée (CNC). O momento não poderia ser mais propício para os nossos legisladores e o próprio governo voltarem seus olhos para a evolução da legislação francesa sobre o mercado do streaming, um tema que tardiamente começa a ser tratado no Congresso brasileiro.

Na França, um decreto aprovado em 2021 — relatório publicado pelo Senado francês neste link — elevou de 5% (o mínimo estabelecido desde 2018 para todos os Estados membros do Parlamento Europeu) para 20% dos faturamentos de Netflix, Disney e demais plataformas globais a contribuição destas para o desenvolvimento da indústria audiovisual local, sendo, no mínimo, 5,15% direcionados ao CNC, que executa ações de fomento ao setor (de forma correlata ao brasileiro Fundo Setorial do Audiovisual – FSA).

Diante do crescimento vertical das plataformas de streaming, o decreto francês determinou que contribuição fixada em 20% do faturamento é aumentada para 25% para as plataformas que oferecem filmes com menos de doze meses de seu lançamento em salas de cinema (proteção ao setor de exibição de cinema, também sob ameaça no Brasil).

Ainda, 80% das contribuições dos streamings são direcionadas para produção e exibição de conteúdos independentes (de propriedade majoritária de produtoras nacionais). No mínimo 20% das contribuições devem ser obrigatoriamente investidas em obras destinadas ao lançamento em salas de cinema e outro mínimo de 20% em obras que estrearão na TV. Por fim há obrigações de inclusão de elevado percentual de obras europeias e francesas nos catálogos das plataformas.

Lembremos que o mercado francês tem 63 milhões de habitantes e as plataformas globais seguem felizes atuando e cumprindo todas as regras deste país desde 2021. Imaginem o valor que representa o mercado brasileiro, de 210 milhões de habitantes, com uma cultura na qual a televisão é a maior mania nacional?

A França não é o único país a proteger e fomentar a sua indústria cultural, diante de novos desafios. Os EUA, à época do advento da televisão, nos idos da década de 1940, estabeleceu a primeira e, até hoje, a maior cota de conteúdo nacional e independente da TV mundial: somente 15% dos horários das emissoras poderiam ser de produção própria (jornalismo, basicamente), e os 85% restantes teriam de ser preenchidos por conteúdos independentes contratados pelas emissoras de TV junto aos estúdios (produtoras) independentes – e, assim, asseguraram o desenvolvimento da maior indústria de produção audiovisual do planeta.

No sentido inverso, no Brasil de 2024, não há ainda qualquer regulação do streaming. Há dois projetos de lei tramitando para regular o setor, um do Senado e outro da Câmara, ambos muito tímidos em comparação à regulação francesa e, ao que parece, influenciados em grande parte pelo lobby das plataformas globais no Congresso Nacional, assim como já vimos, em décadas anteriores, com o lobby dos estúdios norte-americanos contra a expansão do cinema brasileiro, buscando o fim da cota de tela e outras ações. Há dezenas de propostas de emendas e muitas delas buscam ainda reduzir a contribuição a míseros 2%. E o governo brasileiro não deu, ainda, sinais claros da sua posição sobre o tema e o que, afinal, pretende apoiar para o desenvolvimento da indústria audiovisual nacional.

O mercado brasileiro, claramente, merece e tem porte para uma indústria audiovisual independente e potente. Cabe uma comparação do cenário audiovisual brasileiro atual com o que se passou na nossa indústria fonográfica: nos anos 1970, as rádios FM transmitiam uma programação na maior parte ditada por gravadoras internacionais. Era a época do "jabá". Surgiu a regulação impondo 30% de conteúdo nacional em todas as rádios, e a "Lei Disco é Cultura", assegurando às gravadoras incentivos para a produção de fonogramas brasileiros. Em pouco tempo, a indústria brasileira de música tornou-se hegemônica nas rádios, com balança comercial positiva, um orgulho de todos nós.

Já o setor audiovisual começou a ganhar nova tração no Brasil a partir de 2012, com a Lei da TV Paga, que introduziu um tripé regulatório bem-sucedido: i. obrigou todos os canais de TV por assinatura a incluir conteúdos brasileiros independentes; ii. todos os pacotes de canais por assinatura passaram a incluir 30% de canais brasileiros, até 12 canais; e iii. o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) passou a receber a contribuição anual das empresas de telecomunicação, operadoras de TV Paga, para o desenvolvimento do audiovisual, na ordem de R$ 900 milhões por ano — passando a financiar a produção de obras audiovisuais para atender à nova demanda criada.

Os canais brasileiros na TV paga ganharam, assim, competitividade tecnológica, sendo distribuídos pelas operadoras de TV lado a lado com canais de programadoras globais como Warner, Sony e HBO

Um dos resultados consolidados: seis dos novos canais, focados em programação de nicho cultural — Canal Brasil, canal Curta!, Arte1, Futura, Prime Box e TV Ratimbum —, somam uma audiência média mensal acima de seis milhões de horas nas caixinhas das operadoras (sem contar conexões piratas) -, assistidas por uma média de 1,8 pessoas em cada residência assinante, ou seja, 11 milhões de horas por mês que correspondem a 88 milhões de sessões de 90 minutos (tempo médio de um filme no cinema) por ano.

Esses seis canais de nicho responderam, entre 2015 e 2023, por mais de 50% de todos os conteúdos brasileiros independentes exibidos na TV, produzidos por centenas de novas produtoras estabelecidas em todas as regiões do país.

É evidente que a Lei da TV Paga resultou em progressos importantes, mas ambos os projetos de lei que tratam da regulação do streaming, em tramitação congressual, sequer tratam da continuidade desses avanços no ambiente do streaming, prenunciando um retrocesso.

A indústria do audiovisual no Brasil está longe do amadurecimento. Enquanto isso, as plataformas de streaming globais (um negócio semelhante à TV por assinatura, que entrega conteúdos mediante assinatura mensal) seguem sem simetria tributária no Brasil, pagando apenas ISS de 2%, enquanto as operadoras tradicionais de TV por assinatura recolhem pelo menos 23% de ICMS, além dos R$ 900 milhões para o FSA — um flagrante desequilibro tributário.

Temos, portanto, fartas referências positivas — na Europa, historicamente nos EUA e mesmo no Brasil — nas quais governo e parlamentares podem se apoiar para garantir, com a regulação do streaming, a continuidade dos avanços obtidos através da Lei da TV Paga (que sofreu declínio, também pelo crescimento do streaming) e assegurar um ciclo sustentável de desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira.

* Mauro Garcia é presidente executivo da BRAVI – Brasil Audiovisual Independente, que reúne 675 produtoras independentes de todo o Brasil.
** Julio Worcman é fundador e diretor do canal Curta! e das marcas S-VOD PortaCurtas, CurtaOn, BrasilianaTV e CurtaEdu.

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