Desde que entrou em vigor em 8 de julho, o primeiro lote de obrigações do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor da Anatel (RGC) ainda provoca barulho no setor. O entendimento da ex-procuradora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e diretora do instituto de pesquisa Brasilcon, Suzana Toledo Barros, é que isso é retrato de "um problema muito sério" da Anatel: uma quantidade exagerada de obrigações que culminam em sanções inevitáveis. "A Anatel multa demais, são multas completamente absurdas, é coisa irracional, (o valor) é mais que o prêmio da loteria", declarou ela nesta terça, 9, durante Seminário ABDTIC 2014, em São Paulo. "E são recorrentes, e aí vai todo mundo para Justiça. Esse regulamento não é mais uma justificativa para multa?", indaga.
Ela se diz preocupada com as brechas para poder haver mais processos e recursos justamente pelo fato de haver "mais de cem artigos" no RGC. "Tenho um pouco de dúvida, até por conta da minha experiência na Justiça, porque sabíamos que, quanto mais regras, isso se traduz na judicialização", disse. Na opinião da advogada, é necessário criar um grupo de estudo forte para que as prestadoras possam resolver os problemas com consumidores sem passar por esses processos.
O diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon), Amaury Martins de Oliva, minimiza o problema de excesso de sanções. "O problema não é que o Estado é culpado por multas, e sim o mercado que não respeita as regras", disse. Ele argumenta que a secretaria recebe diariamente dezenas de ofícios do Ministério Público pedindo punições, mas que não as aplica sem fundamento. "Não posso é prevaricar, né? Mas temos trabalhado em outras formas para ser efetivado o direito do consumidor", diz, concluindo também que o modelo de multas é antiquado. "Por isso temos trabalhado em outras formas de prevenção de conflitos, e o RGC é uma forma disso, com regras claras, fluxo claro de como deve ser feito o atendimento."
Oliva declara que é razoável existir norma regulatória. "Cada órgão pode ter sua interpretação, a construção do Brasil foi assim, a Senacon fez sua interpretação", diz. A questão é que, na visão de Suzana Toledo Barros, da Brasilcon, o regulamento está "mal resolvido juridicamente", colocando a Anatel em relação direta com o consumidor, contrário ao entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que diz que ela não tem competência para multas – apenas o Procon possui tal papel. "Acho que é uma coisa mal resolvida e isso se replica, depois vem grande modificações", declara. "Eu não concordo com esse posicionamento que todo mundo pode interpretar. Quando desce ao nível de regras, você tem que dar direção certa", declara.
Suzana Barros conta que já trabalhou em um dos Procons, uma experiência que ela classifica como "horrível" pela composição de funcionários e práticas. "Lá, 80% dos cargos eram cabide político, eram pessoas despreparadas e aplicavam as multas sem nem saber porquê, e elas (as multas) se reproduziam." Isso faz com que ela ponha em xeque a atuação conjunta entre a Anatel e a Senacon no RGC. "A interpretação tem que ser conjunta, porque se for diferente da Anatel, vai dar problema", declara, citando exemplo em que a secretaria considerou haver obrigações a mais do que as estabelecidas no regulamento da agência. "Isso aqui os Procons leem e, para eles, se está aqui e a Senacon disse que tem que estar, eles vão seguir. O Procon não tem esse preparo, tem alguns que não têm estrutura nenhuma".
Justificativa
Para a Anatel, o RGC serviu para dar uma "chacoalhada" nas operadoras, chamando a atenção para o atendimento aos clientes. "Para a gente é até um pouco constrangedor fazer um regulamento que tenha que criar um espaço para o usuário com informações básicas, isso deveria ser a primeira ação de uma prestadora", declara o conselheiro Rodrigo Zerbone. Ele reconhece que o trabalho de coordenação com o Ministério da Justiça é difícil, mas que é fundamental. Ele justifica que a agência não está mais no modelo de simples aplicação de multa, passando a uma atuação mais preventiva. "Com o regulamento, a gente antecipou a vigência para coordenar a implantação, são 120 dispositivos para coordenar o comportamento das empresas", declara. Segundo Zerbone, rebatendo argumentos da representante da Brasilcon, esses dispositivos não são necessariamente pontos de conflito para poderem ser usados para a judicialização.
Para a diretora de regulamentação da Telefônica/Vivo, Kátia Pedroso, o regulamento é "inovador" e a operadora está trabalhando para se adequar, mas já não é mais hora de se tentar mudar o que está estabelecido. "Ninguém tem dúvida da imensa complexidade operacional desse regulamento. Estamos em fase de implantação, e a gente discute agora o 'como', e não mais o 'por que'. Agora não dá para trocar o pneu do carro com ele em movimento", argumenta.
Números
A diretora da Vivo afirma que, de julho até o momento, as novas regras para cancelamento automático já tiveram efeito na empresa.Foram 82 mil sem intervenção humana, tanto no call center quanto na Internet.
Já pelo lado da Senacon, a maioria (51%) dos problemas de telecomunicações é relacionada à cobrança, seguida de produtos e serviços (15%) e oferta e contrato (13%). Com o novo serviço do portal consumidor.gov.br, uma plataforma direta entre consumidor e empresas, a maior parte (47,3%) é da área de telecomunicações. Dentro dessas, 34% se refere a cobranças e contestações.