Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência

Obras baseadas em fatos, eventos e pessoas reais são passíveis de ser produzidas sem autorização das pessoas retratadas? E, em sendo ficcionais, é possível retratar tais fatos, eventos e personagens reais cuja ocorrência ou comportamento sejam passíveis de comprovação, ainda que associadas a contextos, cenas ou diálogos criados para conferir maior dramaticidade à obra? Quais os limites para introdução de elementos dramáticos e ficcionais em obras audiovisuais baseadas em fatos e personagens reais?

A questão não é nova, e foi enfrentada pela primeira vez no caso "Yusupova vs. Metro-Goldwyn-Meyer", de 1934, por uma corte britânica. Refere-se à obra cinematográfica "Rasputin and the Empress", produzida em 1932, pela MGM. O filme retratava a influência do "camponês curandeiro mágico" sobre o czarismo russo e seu assassinato pelo príncipe Felix Yusupov. Na obra, Iriana Yusupova, esposa do príncipe Felix, era retratada como a personagem Natasha, com inclusão de cena que leva ao entendimento de que é violentada sexualmente por Rasputin. Ela obteve sucesso no processo de difamação ("libel") contra o estúdio.

A discussão em Yusupova vs. MGM aborda temas como: é possível identificar a princesa Yusupova como sendo a personagem Natasha? Ou ainda: o fato de que a obra retrata violência sexual (ficcional) contra ela é suficiente para configurar ato de difamação? No caso, a resposta para ambas as questões foi 'sim', resultando em condenação do estúdio. Interessante notar que ao final da obra era inserido o aviso ("disclaimer"): "Isto diz respeito à destruição de um império. Alguns dos personagens ainda estão vivos – os demais encontraram a morte pela violência" (em tradução livre). Segundo diversos analistas, o resultado desfavorável para a MGM neste caso tornou a utilização de disclaimers muito mais criteriosa, praticamente um padrão da indústria: "a presente obra é de natureza ficcional, e qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência".

Mesmo antigo, o tema ressurge atualmente em função do desenvolvimento de uma variada gama de formatos narrativos que misturam elementos ficcionais e factuais, conferindo grande dramaticidade a eventos socialmente relevantes e que atraem grande interesse do público. O lançamento de obras como "The Crown" e, mais recentemente, "Winning Time – The Rise of Lakers Dinasty", nos Estados Unidos, trazem de novo ao debate os desafios envolvidos na produção de obras audiovisuais que, baseados em determinados fatos e certos personagens reais, incluem dramatização e elementos ficcionais em variados níveis – borrando os limites entre o documentário biográfico e a pura obra de ficção. Também no Brasil, o crescimento no número de produções do gênero "true crime" e "docu-drama" tem trazido à luz o mesmo debate, agora sob a ótica do direito brasileiro.

Em outras palavras, quando falamos sobre a produção de obras que transitam entre ficção e realidade, especialmente no atual contexto brasileiro, é indispensável perguntar: como a liberdade de expressão em obras audiovisuais baseadas em fatos reais se manifesta no Brasil? Qual a distinção prática em trabalhar com opiniões, fatos e informações no que diz respeito à produção de obras audiovisuais baseadas na realidade? Até onde podemos ir ao retratar pessoas reais em obras ficcionais: a mera mudança de nome pode proteger juridicamente o projeto? O que podemos aprender com as obras brasileiras pautadas em limitações à luz de "interesse público", "pessoa pública" e "lugar público"? Qual o tratamento a obras do sub-gênero true crime neste contexto?

Neste sentido, é evidente que quaisquer produções audiovisuais implicam riscos jurídicos, relevantes no que tange à expressão dos direitos da personalidade – desde a obtenção de autorizações para uso de imagens em obras ficcionais; o licenciamento de material de arquivo para documentários; ou ainda o enquadramento de obras baseadas em fatos reais no contexto biográfico previsto na ADI 4815 (2015) – verdadeiro norte provido pelo STF a autorizar a elaboração de obras (literárias ou audiovisuais) biográficas sem a autorização do biografado.

Sob uma perspectiva jurídica, os problemas, assim como as respectivas soluções, se dão sempre no nível do caso concreto – isto é, a partir de análise objetiva de cada obra ou, até mesmo, de cada cena. Em última análise, as perguntas feitas no caso Yusupova vs. MGM continuam válidas: é possível comprovar a ocorrência dos fatos descritos em um filme? Estes fatos ou situações são potencialmente difamatórios? Outros direitos de personalidade são violados com a produção da obra? Como ajustar o processo de desenvolvimento criativo às limitações jurídicas existentes?

Sob esta ótica, os riscos apontados podem não apenas ser mitigados por meio de pesquisa e comprovação dos fatos narrados (fact-checking), mas também a partir da categorização dos riscos envolvidos em cada caso. Diferentes categorias de pessoas (como retratadas na obra) e eventos possuem enquadramentos legais distintos, assim como diferentes categorias de conteúdo receberão tratamento jurídico específico. Além disso, todas as análises devem considerar os aspectos da proteção biográfica e direitos inerentes à personalidade (privacidade, honra, entre outros).

Ainda que o direito ao esquecimento tenha sido rechaçado pelo STF em 2021 (RE 1010606), ou ainda que o STF tenha por meio da ADI 4815 reconhecido a prevalência da liberdade de expressão artísticas em detrimento de direitos de personalidade em obras biográficas, isso não significa que cuidados não devam ser adotados em relação à forma como fatos e eventos reais pretéritos sejam retratados, o nível de interesse público relacionado à questão e eventual dramatização acrescida aos fatos efetivamente notórios ou comprovados. Eis portanto um conjunto de temas a serem analisados em sede de clearance of rights em se tratando de obras baseadas em eventos reais, em acréscimo a todas as análises feitas ordinariamente em relação a direitos de natureza autoral ou de personalidade.

Outra forma de mitigar riscos, associada aos demais aspectos acima descritos, diz respeito ao uso de avisos, ou disclaimers: exemplos vão desde o já bastante comum "este programa é baseado em fatos reais, mas alguns eventos foram ficcionalizados para fins dramáticos" até outros mais elaborados, como "entender a dinâmica psicológica que envolveu esse crime de excepcional repercussão pública, bem como o seu julgamento, não o justifica, mas é fundamental para se conhecer aspectos da natureza humana e da própria sociedade". Em Yusupova vs. MGM, é questão bastante discutida o fato de que o disclaimer utilizado levava ao entendimento de que a obra tratava de fatos reais – favorecendo a condenação.

A utilização de disclaimers adequados, em harmonia com a estratégia utilizada para mitigação de riscos durante a produção, é sem dúvida instrumento importante no processo de gestão de riscos jurídicos em qualquer produção, e em especial em produções ficcionais baseadas em fatos reais. Contudo, ao contrário do senso comum, disclaimers são insuficientes para afastamento completo de riscos, e não representam proteção integral de uma produção.

Diferentes formatos narrativos trazem embutidos riscos jurídicos que apenas agora começam a ser enfrentados pelas cortes de justiça em território nacional. Produtores e distribuidores de conteúdo e plataformas de streaming buscam adaptar suas diretrizes globais de clearance de maneira a contemplar as especificidades da legislação brasileira, à medida em que a produção de conteúdo nacional cresce exponencialmente e passa a explorar novos formatos e gêneros.

Ao fim e ao cabo, a produção de obras baseadas em fatos reais apresenta riscos jurídicos específicos, distintos daqueles presentes em obras documentais ou biográficas, de um lado, e puramente ficcionais, de outro. Compreender esta diferenciação e trabalhar de forma diligente na compreensão e mitigação destes riscos, sob a ótica do direito brasileiro, passou a ser das tarefas mais importantes para o desenvolvimento seguro de projetos que exploram os limites entre ficção e realidade.

* Alice Calixto Gonçalves e José Maurício Fittipaldi são da CQS/FV Advogados

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