Futuro da não-ficção pede equilíbrio entre produzir com autenticidade e responder pressões do mercado

Allan Lico, Monica Almeida, Eduardo Gaspar e a moderadora Maria Carolina Telles (Foto: Divulgação Rio2C)

"O futuro da não-ficção – Docs, Formatos e Realities" foi tema de painel no Rio2C nesta sexta-feira, dia 7 de junho. Os painelistas – todos especializados no formato, que engloba uma gama abrangente de possibilidades, como documentários, programas de auditório e reality show, por exemplo – começaram a conversa falando sobre a maneira que essas produções refletem a sociedade. "E, nesse contexto em que as transformações sociais acontecem muito rápido, é essencial que a gente responda a essas mudanças. Todo produto de não-ficção reflete as transformações da sociedade e nós, como criadores, produtores e plataformas, temos que acompanhar essas transformações", apontou Allan Lico, VP de conteúdo e criação da Endemol Shine Brasil. 

Para Eduardo Gaspar, diretor artístico da Box Fish no Brasil, muito por conta dessa necessidade de refletir a sociedade, entre outros fatores, é essencial que se produza com autenticidade: "O futuro da não-ficção é a criação humana. Hoje em dia, fala-se muito sobre inteligência artificial, mas eu acredito em valorizar nossos pensamentos, no sentido de criar bons produtos, e seguirei acreditando nisso". Nesse caminho, ele destacou ainda a diversidade: "Muitos dos nossos produtos de maior sucesso são coisas feitas fora do eixo Rio-São Paulo. São pontos a se pensar – e levantar bandeiras. Quero trazer novas vozes para a criação e estimular esse movimento para termos uma construção de não-ficção diversa de vivências, experiências e corpos. O futuro passa por uma criação humana e diversa". 

Lico reforçou que, independente de qualquer outra questão, as boas histórias e as pessoas prevalecem. Como exemplo, ele citou o "Big Brother", um formato que viajou por diversos países pelo mundo e, no Brasil, virou case – é o único território onde o programa entrou no ar e nunca mais saiu. "Por conta da nossa capacidade de renovação, de trazer problemas e pessoas que refletem e carregam essas questões da sociedade. No fundo, as histórias são mais importante do que a 'embalagem' desses programas", opinou. 

E, se tratando de um formato que envolve vida real, a produção de não-ficção tem um papel importante de responsabilidade social – este é um dos pilares mais importantes para quem o faz. Monica Almeida, diretora do gênero auditório na Globo ("Altas Horas", "Domingão do Huck" e "Caldeirão do Mion") e responsável pela criação do núcleo de documentários Conversa.Doc, também dentro da emissora, contou que esse núcleo documental surgiu como desdobramento do "Conversa com Bial", na época em que denúncias contra João de Deus foram feitas no programa e, a partir daí, o canal começou a receber diversos outros depoimentos com as mesmas acusações. Mais tarde, a história virou um documentário. "A criação do núcleo não foi um processo planejado. Por isso o futuro da não-ficção está na nossa capacidade de criar o que ninguém está criando, contar a história de um jeito que ninguém está contando", disse. Para ela, o Brasil tem vocação e tradição para devolver para o público esse interesse pelo conteúdo brasileiro. "Mesmo quando falamos em formatos estrangeiros, a gente adapta e transforma aquilo. O próprio 'BBB' é um formato consagrado, mas no Brasil virou outra coisa". 

Equilíbrio entre DNA e inovação 

Falar em "futuro" de determinado mercado implica em analisar suas transformações e o cenário atual. O que, no contexto da mídia e do entretenimento, se torna ainda mais complexo, uma vez que as mudanças são constantes e podem aparecer de uma hora para a outra. Para Gaspar, é importante entender quais são os novos lugares, e não buscar o resgate dos antigos. "Novelas que antes davam 40, 50 pontos de audiência, hoje dão 25. Mas se somarmos a audiência no streaming e ainda quem só acompanha pelo Twitter, o número é muito maior. São outras formas de consumo. Não sei se conseguimos resgatar a audiência que está em outra plataforma. Trazer para a TV a pessoa que está no Twitter. Nem sei se devemos. Temos que respeitar o consumidor e deixa-lo consumir aquele conteúdo do jeito que ele quer. A pessoa que está no Twitter não quer ir pra TV passar uma hora assistindo – por mais que a gente tente levar a linguagem do Twitter para a TV. Acho o IBOPE uma ferramenta incrível, mas não podemos nos pautar pelo número de audiência da TV. Se somarmos todas as redes e plataformas, aí sim teremos um número real, e poderemos pensar no futuro" analisou. 

A questão do futuro, que implica nas inovações, muitas vezes esbarra em pressões de mercado. "Trabalhamos para um mercado que pede coisas pra gente. Ouvimos muito que autenticidade é importante, mas nem sempre o mercado está aberto a receber essa autenticidade toda. Tem fórmulas que dão certo, aí você prefere repetir. Por isso acho o case da CazéTV tão interessante. É um ambiente totalmente autoral, autêntico e que fez diferente mesmo. Precisamos criar um ambiente onde haja espaço para sermos autorais, autênticos, verdadeiros e colocarmos nosso potencial criativo na tela. Onde a linguagem está mais se revolucionando hoje talvez seja no TikTok. Lá que estão as edições ousadas. É legal absorver isso sem preconceito. Tem formatos, linguagens e modelos de negócio interessantes surgindo no YouTube, no Instagram e no TikTok, por exemplo", afirmou Lico. 

Almeida, por sua vez, vê um equilíbrio entre o "velho e o novo". À frente do núcleo de programas de auditório da Globo, a executiva reconhece que o digital está aí e que temos que dialogar com ele o tempo todo. Mas, para ela, é importante também essa balança. "O programa de auditório tem que trazer o que há de mais novo – a música do momento, a gíria – mas também o passado, que é o galã, a música romântica. Tem esse DNA. Não é uma coisa ou outra. Temos de estar atentos para buscar inovação e novas linguagens, mas mantendo nosso DNA. Não podemos abandoná-lo", defendeu. 

A diretora destaca ainda que, num mundo em que o algoritmo leva a produção para "isso ou aquilo", a TV aberta tem um papel fundamental, que é tentar fazer com que as pessoas se reúnam de novo, conversem. "Claro que o algoritmo funciona, mas é empobrecedor. A TV tem esse papel de tentar fazer com que a gente saia dos nichos. As pessoas precisam descobrir outros interesses. Até para dizer 'não gosto disso', mas sabendo do que se trata". 

Caminhos e tendências 

Os especialistas mencionaram diversos possíveis caminhos para o tal futuro da não-ficção. Para Gaspar, por exemplo, as pessoas hoje não querem só ver a realidade acontecendo em algum lugar, e sim fazer parte dela. "Fazemos isso trazendo os dilemas morais para os conteúdos. É quebrar a quarta parede, fazer o telespectador se perguntar o que ele faria naquela situação. Não é mais sobre deixar ou não uma pessoa querida continuar no programa. É pensar numa experiência mais imersiva para quem está consumindo", sugeriu. 

Já Lico assumiu que, no passado, interferia-se muito mais nos realities – sugerindo ao jurado manter determinado participante na competição, por exemplo. "Hoje, quanto menos interferirmos, mais legal. Estamos entregando o reality 'Nova Cena' para a Netflix, que é um doc-reality de rap, e absolutamente tudo o que aconteceu nele foi comandado pelos jurados. É um jeito de trazer autenticidade. Já que é para ser, vamos fazer de verdade. Respeitar a expertise das pessoas que trazemos. E o reality show muda a vida dos participantes. Também precisamos respeitar isso. E ser verdadeiro o máximo possível". Nesse sentido, Gaspar acrescentou que, a partir do boom das redes sociais, as pessoas passaram a não aceitar mais o que é muito fake: "Elas se perguntam o porquê de gastar tempo assistindo algo fake na TV se, no celular, elas têm acesso a um monte de conteúdos reais. Ainda mais com as lives, as pessoas mostram tudo ali. É um desafio para nós criar conteúdos tão engajadores quanto esses". 

Almeida ressaltou o interesse do público pelos conteúdos reais, especialmente documentários – que cresceram muito nos últimos anos e, hoje, frequentemente aparecem nos "Top 10" de conteúdos mais vistos das plataformas. "Temos muita história para contar. Nada é fácil, mas temos que tentar por na rua. Sinto que a gente tem essa curva ascendente de interesse. Pela não-ficção, ideias e formatos originais. E histórias brasileiras. Temos que realmente mirar nisso". Para Lico, a demanda realmente é por histórias genuínas e brasileiras, mas tem a questão de mercado. Os investimentos são limitados e reduzidos. "E temos a obrigação de fazer um hit sempre. Essa busca pelo hit – que é justa – tira um pouco do nosso espaço para coisas mais ousadas, diferentes e autorais. Mas temos que propor. Tomaremos muitos 'nãos', mas é um processo. Uma busca diária". 

Por fim, Gaspar complementou: "Precisamos, dentro do Brasil, saber o que estamos fazendo e consumir nossos conteúdos. Se queremos fortalecer nossas ideias, temos que valorizar o que fazemos aqui. Ter orgulho e reverberar o que a gente faz". 

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