"É muito importante que nós, mulheres, criemos nossas narrativas", diz Cíntia Domit Bittar, da Novelo Filmes

Cíntia Domit Bittar é uma das sócias da Novelo Filmes, produtora de Florianópolis (SC), ao lado das suas antigas colegas do curso de cinema da Unisul, Ana Paula Mendes e Maria Augusta V. Nunes. Desde 2010, Bittar dirige, escreve e produz obras audiovisuais que contam, em sua maioria, histórias de mulheres – sendo o curta-metragem "Baile" seu projeto mais recente – ao mesmo tempo em que trabalha ativamente por melhorias no setor, fazendo parte de associações e entidades como a API (Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro), da qual é membra da diretoria; Santacine (Sindicato da Indústria do Audiovisual de Santa Catarina), onde está à frente da vice-presidência; e elaSCine (Mulheres do Audiovisual Catarinense), tendo sido uma das membras-fundadoras do coletivo.

"É muito importante que nós, mulheres, criemos nossas narrativas. Não adianta um projeto ter um monte de mulher na equipe se nenhuma delas estiver no processo de construção da narrativa – e isso tem acontecido muito. Estamos falando de poder de decisão, de quem dá o corte, a palavra final. É aí que a gente começa a mudar as coisas", declara Bittar em entrevista exclusiva para TELA VIVA. "Não é que homens não possam fazer filmes sobre mulheres – podem e devem. Mas elas precisam estar nas equipes de roteiro e pesquisa. Isso porque só mulher experimenta o mundo como mulher – e, para escrever, a gente precisa experimentar o mundo. Precisa ter vivência do assunto", completa. A diretora e produtora se interessa bastante pela questão da narrativa das obras audiovisuais – por isso faz questão de reforçar a importância da presença feminina nessa construção: "É crucial que as mulheres tenham esse poder de registro, registrem suas histórias. Mas é crucial também que a gente detenha postos de decisão nos setores financeiros, porque é daí que sai o dinheiro para fazer os filmes. Precisa haver mudanças no sistema como um todo. E mulheres progressistas, que entendam a relevância econômica, artística e cultural do audiovisual. Não basta ser mulher". 

O posicionamento de Bittar fica mais claro quando assistimos ao seu curta "Baile", de 2019. A obra ficcional acompanha um dia na vida de Andrea, menina que mora na periferia de Florianópolis com sua mãe e sua bisavó, que precisa de cuidados especiais. Neste dia, durante um passeio da escola pelo centro da cidade, ela se dá conta de problemas subjetivos e determinantes, que passam por questões políticas, das mulheres e da finitude da vida. "Queria trabalhar temas feministas, especialmente da ocupação política institucional por mulheres. E queria fazer isso com uma protagonista garota. As outras camadas foram surgindo – é um roteiro que tem muitos desdobramentos, um curta com bastante informação, mas que as apresenta de forma sutil", conta. A obra estreou em agosto de 2019 no Kinoforum, o Festival Internacional de Curtas de São Paulo. E foi um dos melhores segundo escolha do público, ganhando ainda o prêmio de aquisição do Canal Curta!. A partir daí, fez seu circuito em festivais e obteve bastante engajamento. "Por mais que pareça demagogia falar isso, 'Baile' foi um curta feito para ser visto. Cedemos o filme para exibições em escolas e cineclubes, por exemplo, e ele está disponível no canal do YouTube da produtora. Acho que essa decisão foi acertada, porque a resposta do público é muito boa", diz. 

Valorização do curta-metragem  

Curta é um formato com o qual Bittar gosta bastante de trabalhar: "Não o considero apenas um trampolim para os longas ou portfólio, como gostam de falar, e sim como um formato autêntico, genuíno e interessante. Assim como os contos na Literatura. Não quero deixar de fazer curtas nunca – e acredito e torço para que eles tenham cada vez mais espaço no circuito comercial, aproveitando a chegada de janelas novas". 

A diretora aposta em uma mudança de comportamento por parte do público, que ainda não tem o hábito de consumir esse formato da mesma forma que consome longas e séries, por exemplo: "Acho que as pessoas já estão preferindo narrativas mais curtas. Se soubermos aproveitar as oportunidades desse formato, a gente pode alcançar uma melhora de difusão da obra e nos aspectos comerciais, gerando receita com os curtas. Desde o início da produtora tenho isso em mente – explorar o curta como obra mesmo, enquanto produto. Curta pode ser uma obra licenciada, um modelo de negócio". 

"Baile" foi um dos curtas brasileiros qualificados para o Oscar – ao lado de outras produções do formato dirigidas por mulheres, como o brasiliense "Filhas de Lavadeira", de Edileuza Penha de Souza, e o documentário de animação "Carne", de Camila Kater, além do próprio longa selecionado, "Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou", de Bárbara Paz. Apesar das obras estarem fora da disputa oficial, as qualificações já são um marco importante para a direção audiovisual de mulheres brasileiras. "É muito interessante constatar isso – é um fato que não dá para ser menosprezado e que precisa ser visto como um indicador de uma transformação de cenário. É algo bastante relevante", pontua Bittar, que relembra ainda que os cinco curtas finalistas da última edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro também foram dirigidos por mulheres. "E não é uma questão de trazer mulheres para cumprir cota – esse discurso, além de covarde, é muito equivocado. Ao longo de uma série de políticas públicas, nós, mulheres, conseguimos acessar esses recursos. Por isso temos que pegar esses fatos e transformar em indicadores, para mostrar o quanto as políticas públicas impulsionaram", ressalta. 

Retomada da produção audiovisual diante de ampla crise 

Com a chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil no ano passado, a Novelo Filmes deu uma pausa nas atividades por cerca de três meses. "Comecei a pesquisar muito e não foi difícil entender que isso ia demorar para passar. Cancelamos as produções – temos projetos de um curta, três longas e uma série – e paramos tudo. Com o trabalho nas entidades, nos desdobramos para entender isso de forma coletiva. Participei da elaboração dos protocolos do Estado e também em âmbito nacional. Aprendi muita coisa e para mim foi um período bastante intenso", define. "Seria o ano que eu filmaria meu primeiro longa e tive que adiar. Mas perto das outras coisas, que outras produtoras e outras pessoas, de modo geral, passaram, isso não foi nada", acrescenta. 

Bittar diz que, agora, a produtora está tentando entender qual a hora de voltar a filmar. A ideia, por enquanto, é tentar rodar o longa no segundo semestre, sob sua direção: "Estamos nos desdobrando para entender qual a forma mais segura de fazer isso. Existe uma preocupação financeira também, de levantar mais recursos, porque os orçamentos foram muito impactados. Tem edital que desde 2018 não foi pago, em âmbito federal. De lá pra cá, o dólar subiu, houve inflação. Fora os impactos da pandemia. O desafio é entender como viabilizar o que já temos e como arrumar recursos para fomentar os novos projetos, com a Ancine travada e muitos Estados sem recursos ou novos aportes". 

A diretora aponta a regionalização como um caminho de saída dessa crise: "As Prefeituras precisam prestar atenção nos seus editais, os Estados também. Eu acho que, assim, a gente consegue se reestruturar a partir desse travamento federal. Dependemos das iniciativas regionais para que o cinema brasileiro siga caminhando. Estamos lidando com vários problemas. A pandemia veio para agravar uma crise pré-existente criada artificialmente pelo Governo. É um crime o que está acontecendo, não só com o audiovisual, mas com a sociedade como um todo". 

Enfatizando as dificuldades que o setor já vinha enfrentando mesmo antes da chegada da pandemia, Bittar avalia: "Desmontar um setor intencionalmente, que vinha crescendo 8,8% ao ano, é algo que prejudica a economia como um todo. Os números mais que atestam nossa relevância. A gente emprega muita gente, faz o dinheiro circular, movimenta outros setores da cadeia produtiva. Cada vez que a política de financiamento do nosso sistema retrai, acontece uma retração na economia também. É bem grave o que estamos passando, com produtoras grandes demitindo, as pequenas fechando e profissionais se endividando". Ela conclui: "Vivemos hoje numa tremenda insegurança jurídica, com políticas sendo mudadas da noite para o dia, a Ancine pedindo documentos que antes não pedia… Além de termos que lidar com a pandemia, que todo mundo está lidando também". 

Apesar do cenário pessimista, Bittar enxerga pontos positivos. "A reunião do setor foi algo relevante neste momento. A gente vê entidades novas se formando, como é o caso da própria API, que surgiu em 2018 e rapidamente ocupou um lugar de destaque nas discussões do setor, além de muitas outras associações, algumas mais nichadas, de mulheres, de departamentos técnicos. Ou seja: apesar de tudo, estamos em pé e lutando. Sabemos do potencial que temos e quem está lutando faz parte de um grupo muito forte de pessoas, que acredita muito", reflete. 

Planos futuros e o investimento no cinema de gênero 

É de interesse da produtora adentrar cada vez mais o cinema de terror e de gênero. O próximo longa de Bittar, "Gente de Bem", é dentro dessa chave. "A história é ambientada num futuro próximo com ares de retrocesso, onde Germina precisa lidar com a maldade cega de uma vizinhança auto-intitulada 'de bem', cujas ações são pautadas no fundamentalismo religioso e na negação da ciência. E vai ter sangue!", adianta. 

"Vejo como de grande relevância que mulheres ocupem posições de tomada de decisão nas narrativas do cinema fantástico, do horror, um ambiente bastante dominado por homens e povoado por personagens mulheres indefesas e vítimas. É um gênero no qual através de metáforas e analogias nos dá muitas possibilidades para falar da sociedade e instigar sobre as transformações necessárias, sob a ótica feminista. Nós também podemos nos defender, salvar nossas vidas, salvar os demais, derrotar os monstros em nosso caminho – e não precisamos ser super-heroínas, podemos ser, enfim, mulheres", defende. 

A diretora estuda o Terror Feminista e, em breve, dará uma palestra no Fantaspoa sobre o tema no dia 6 de abril, às 19h, com transmissão no YouTube e no Facebook do Festival. 

Ao longo do mês de março, TELA VIVA celebra o Dia Internacional da Mulher e presta uma homenagem às mulheres de destaque no cenário audiovisual nacional. Acompanhe as próximas entrevistas.

3 COMENTÁRIOS

  1. Orgulhosa da minha amiga e sócia. Lúcida demais, preparadíssima. Parabéns, Tela Viva pelo especial. Temos muito a aprender com mulheres incríveis do nosso setor.

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