Conteúdos precisam ter mais profundidade e combinar o que o mercado pede a elementos surpresa

Yana Chang, André Saddy, Clarisse Goulart e Zico Goes (Foto: Divulgação Rio2C)

O painel "Desenvolvendo Histórias: O Papel Estratégico da Direção de Conteúdo" foi um dos destaques da programação do Rio2C no último domingo, dia 9 de junho. A conversa abordou essencialmente as intersecções que acontecem entre a criação de uma obra pelo autor até a entrega para a filmagem – como a troca entre roteiristas e equipes das produtoras e dos players. O bate-papo ainda voltou algumas casas para falar da curadoria de projetos e a visão estratégica necessária para a criação de narrativas relevantes para o público final. A mediação foi de Yana Chang, executiva criativa da South Global. 

Falando desse processo de escolha, Zico Goes, que atualmente é produtor criativo na Kromaki, mas possui uma extensa trajetória na indústria, com passagens pela antiga MTV Brasil e, mais recentemente, pelo Star+, disse que o acolhimento de projetos tem mais objetividade do que subjetividade. "Tem pouco do que eu gostaria de ver e muito daquilo que os criativos nos alimentam e os canais nos demandam", definiu. "Estar antenado com o que se supõe que os clientes querem é um pouco do nosso trabalho. Ao mesmo tempo, nossa função como produtor independente é também ajudar os clientes. Levamos não só o que é demandado, mas que também possa causar alguma surpresa". 

Já Clarisse Goulart, diretora executiva de desenvolvimento de projetos na Conspiração, constatou que é importante se manter permeável, mas sem perder o foco: "O trabalho de escolha de projetos é complexo porque trata da composição de muitos desejos, muitas vezes distintos, mas que precisam coexistir. São desejos estratégicos da produtora e desejos artísticos do corpo criativo, além dos desejos do mercado e, claro, da audiência. Como executivos, precisamos estar abertos a essa maleabilidade, e sempre adaptável às mudanças".

"Do outro lado do balcão", como costuma-se dizer no mercado, estão nomes como André Saddy, sócio e diretor-geral do Canal Brasil. "Do lado de um canal, acho que o processo de seleção começa antes da gente receber um projeto. Criamos uma identidade, nossa cultura e definimos o tipo de conteúdo com o qual vamos trabalhar. Nosso objetivo é fazer com que essa cultura seja tão forte que transpareça para fora e, no nosso caso, todos saibam qual é a cultura do Canal Brasil. Quando você chega nesse lugar, fica mais simples", assumiu. "A partir daí, para os produtores, vale aquilo que já é batido, mas é importante: a velha história da adequação do projeto à tela de exibição. Você tem que conhecer com que tipo de conteúdo aquele canal trabalha. Antigamente, era mais complexo. Precisava assistir à programação completa do canal para entender. Hoje, você entra na plataforma de VOD do canal e está ali tudo o que ele tem produzido. Vai no Instagram, vê os posts e entende o que ele defende, quais são os pilares. O Canal Brasil, por exemplo, é transgressor, e tem um limite mais extendido no sentido de poder falar e tratar de qualquer assunto", explicou. 

"Do lado de cá, sempre que possível, e dentro das condições de mercado, nos permitimos escolher e errar. Ter essa abertura para o risco. No Canal Brasil, isso é simples de enxergar. Trabalhamos com produtoras independentes, então preciso do olhar do outro. Se sinto segurança naquele olhar, aposto. Participamos do processo de desenvolvimento – mas, se escolhemos um projeto autoral, a palavra final é do autor. Senão, vira um projeto que não é nem do autor, nem nosso", pontuou.

Onde fica o espaço para a ousadia 

Nesse equilíbrio entre os projetos criativos e a pressão do mercado, fica a dúvida se sobra espaço para a ousadia. Para Goes, são ciclos, e é fato que, no começo do streaming, havia uma abertura muito maior para diversidade e a tal ousadia. "Quando as plataformas chegaram, era possível contar histórias que não se contavam antes porque tinha um público mais nichado para atingir. Mas eventualmente há um recuo na coragem de ousar porque é um mercado como outro qualquer, que precisa fazer dinheiro. E perder a atenção de uma pessoa é muito fácil. A ousadia, que no começo foi quase uma premissa, talvez não seja mais. Mas essa é a indústria do risco, no fim. Precisamos correr certos riscos. Por melhor que você faça um projeto, com pessoas talentosas, não se tem certeza de nada. Mas ultimamente existe um pouco de pé atrás, sim. Talvez dependa um pouco das produtores forçar um pouco mais", observou. 

Goulart concordou que essa questão do risco variou de uns anos pra cá. "Com o streaming, vimos a oportunidade de contar histórias que estavam engavetadas porque a TV paga não estava dando vazão para elas. 'Dom', por exemplo, foi uma série que estava há oito anos na Conspiração", exemplificou. A executiva destacou duas importantes revoluções que aconteceram no mercado com a chegada das plataformas: o fato de que, a partir daí, os conteúdos começaram a falar com o mundo todo ao mesmo tempo, o que revolucionou toda a cadeia que foi percorrida até aquele momento. "Antes, contávamos histórias para brasileiros, dentro do Brasil. Para o mundo, é outra coisa. Desde a criação da ideia, a escolha do conteúdo, isso passou a ser determinante", analisou. Outra coisa revolucionária, essa um pouco menos tangível, é a precisão dos dados sobre a audiência. "Nós, produtores, não temos acesso a esse detalhamento. Mas os executivos dos players, sim. Essa precisão dos dados direciona os conteúdos que serão feitos. São dados que, até então, não eram componentes de mercado". 

Sucesso medido pela relevância

Nesse novo ambiente, também torna-se mais complicado medir o sucesso de uma produção. Goulart entende que, a grosso modo, são duas estratégias de conteúdo: o comercial, que visa alcançar muita gente, dar retorno de bilheteria, no caso do cinema, e falar com as massas; e o conteúdo que gera prestígio, que vai para os festivais e levanta temáticas que ajudem a avançar determinadas pautas na sociedade. "Tudo isso está sendo chamado de relevância hoje em dia. O sucesso é medido pela relevância – que às vezes não está diretamente relacionada a números, e tem a ver com coisas menos tangíveis. Mas tem os números também, claro. Uma primeira temporada muito assistida gera uma segunda. Esse aspecto específico segue da mesma maneira", avaliou. 

Saddy reitera que não é só sobre audiência – ela é importante, claro, mas no caso do Canal Brasil, por exemplo, existem outros fatores. "Queremos que o maior número de pessoas veja, mas esses outros fatores demandam mais sensibilidade para avaliar, como relevância, repercussão e premiações. O Canal Brasil é o maior coprodutor de filmes do Brasil – são mais de 420. Nosso perfil é de filmes que vão para festival. No Brasil, existe uma conjuntura de falta de salas de cinema, então não dá para saber se um filme é comercial só a partir de seu lançamento nos cinemas, quando ele ocupa só três ou quatro salas, e na parte da tarde. No nosso caso, vale muito mais a repercussão. No último Festival de Cannes, estivemos presentes com duas coproduções, 'Baby' e 'Motel Destino'. É a maior repercussão que podemos ter", garantiu. E acrescentou: "Mas além de atender a audiência, você tem que ter coragem para oferecer o que às vezes as pessoas não estão esperando. Você forma público por esses dois caminhos. Apresentar coisas novas, e não só responder o que o mercado pede. Formar público, mas também oferecer diversidade". 

Conteúdos precisam de mais profundidade

Por fim, os especialistas discutiram possíveis tendências de narrativa – termo que Goes não gosta muito. "Tendência me dá essa sensação de algo que já foi combinado, dado como certo. Então prefiro dizer que as tendências são novas histórias e novas maneiras de contar histórias. O que eu nem sei se configura uma tendência", brincou. 

Saddy, por sua vez, apresentou uma nova forma de se olhar para as tendências. "Séries documentais de true crime, por exemplo, são uma realidade no mundo inteiro. Todo mundo quer, todo mundo faz. Nós recebemos muitos conteúdos assim. Mas o true crime pelo true crime, por mais interessante que a história seja, não nos interessa. Crime tem todo dia. No nosso caso, para selecionarmos um projeto desses, precisa ter uma discussão por trás daquilo, algo mais profundo". Como exemplo, ele citou a série documental "O Caso Escola Base", que começa como uma série de true crime essencialmente, mas se torna uma série sobre os limites e o papel da imprensa, e para onde isso vai. "Espero que a gente caminhe para um lugar assim, onde os projetos evoluem para além do raso que todo mundo está fazendo. Os conteúdos precisam ter características que interfiram na própria sociedade. Nosso interesse é por projetos mais profundos". 

Goulart concordou e acrescentou: "Dentro disso, na mesma medida em que tudo vai avançando – a tecnologia de produzir, de pós-produzir, o amadurecimento nas formas de contar histórias – o público também vai amadurecendo junto. Hoje, o espectador está mais maduro do que no passado. Tem mais capacidade de sinapses, de tomada de conclusão. Ainda falando em true crime: temos um monte de assassinos, mas como nós, como sociedade, geramos menos assassinos? A discussão é por aí. Desejo que o conteúdo avance nesse lugar".  

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