Existe uma crise de segurança jurídica no Brasil, que começa na formação das Leis. O processo legislativo, particularmente nas iniciativas voltadas às mídias sociais, comunicação audiovisual e direitos autorais, está sofrendo atropelos que interferem com a necessidade do debate democrático. Se antes se usava de Medidas Provisórias (como a que criou a Ancine, por exemplo), atualmente o expediente de “democracia artificial” se chama “pedido de urgência”, sem urgência. Vários projetos de lei que tratam de “grão a avião” ou “alfinete a foguete” são protocolados por congressistas e ficam gravitando pelas galerias do Congresso Nacional, anos a fio. De repente, por um fato externo (como aconteceu no caso do Marco Civil da Internet ou no PL da Fake News) ou por um interesse particular ou setorial, vota-se uma “urgência” para a propositura de lei. Tecnicamente a urgência dispensa interstícios, prazos e formalidades regimentais, e pode ser requerida quando se trata de matéria que envolva perigo para a segurança nacional ou providência para atender calamidade pública; para apreciar a matéria na segunda sessão deliberativa ordinária subsequente à aprovação do requerimento; e para incluir matéria pendente de parecer na ordem do dia. Ocorre que uma proposição também pode tramitar com urgência, quando houver apresentação de requerimento nesse sentido, simples assim.
A aprovação de “urgência” é feita muitas vezes sem que haja um texto de projeto de lei definitivo conhecido. Dá-se a conhecer do texto no plenário, elimina-se debates e abandona-se a produção técnica anteriormente ocorrida até então, nas casas. Relatórios são apresentados diretamente em plenário, pareceres e emendas, idem. Temas complexos são votados no afogadilho. A discussão do texto é feita por pequenos grupos interessados, minutas circulam, minuto a minuto, extraoficialmente, entre alguns apenas, fora da plataforma oficial do Congresso. Reuniões são ditas feitas entre “as partes interessadas”, que devem chegar a um “consenso”. Com o “consenso”, seja lá entre que “partes”, é colocado em pauta a votação no plenário. Trata-se da nova prática de processo legislativo que muda o modelo do uso desenfreado que se tinha de medidas provisórias com a colocação de “jabutis carona” para incluir um dispositivo estranho à matéria, no texto. Agora, evoluiu porque se substitui um projeto de lei inteiro, num dia, por outro e se vota. O mais grave, quando votado e aprovado, o discurso público é de que a matéria “estava madura, porque estava na casa há vários anos”. Realmente quando se vê o ano que o projeto de lei original foi apresentado ele estava lá há anos, mas quando se lê o conteúdo da lei votada em urgência, ele é novo, diferente e pouco debatido.
Certamente se dirá que os procedimentos atendem ao devido processo legislativo, porque realizados dentro dos limites do regimento interno das casas. Todavia, se todo poder emana do povo, a sociedade tem direitos relacionados ao processo legislativo através de mecanismos da transparência, debate, participação direta e indireta, que ficam prejudicados quando se usa do expediente da banalização da “urgência” baseado em pura “conveniência” ou pior, quando atingido o consenso entre “partes”. O Congresso não deveria ser um órgão arbitral para dirimir, via criação de leis, conflitos de interesses entre “partes”. Uma sociedade não é feita apenas por duas ou três “partes”. As consequências da criação de direitos e deveres atinge coletiva e difusamente muito mais gente que as “partes”, notadamente o cidadão comum que no final é quem paga sempre a conta dos inúmeros direitos e deveres que são criados sem muita reflexão e acuidade jurídica.
O projeto da chamada “Lei das Fake News (PL 2630/2020), que fez exsurgir o de criação de direitos autorais e direitos de mídias jornalísticas e os projetos de regulação do vídeo sob demanda são exemplos disso. Nessa toada da “urgência” também deverá vir os projetos de cota de tela de cinema e a prorrogação de cota de tela da televisão por assinatura (o SeAC).
Pode-se dizer até que há “fake News” no PL da Fake News. Lembro que no mesmo dia 27 de abril deste ano, enquanto debatia, como acadêmico, a Liberdade de Expressão no Ecossistema Digital na Oficina 3 no trabalho de pesquisa encomendado à UNB, pelo Governo Federal via Anatel, sobre o tema, o Congresso corria para votar a sua urgência, com um novo texto. Naquela oportunidade, quando se ouvia dos jornalistas sobre o PL, parecia que ele resolveria todos os nossos problemas diários como vítimas diretas, indiretas ou potenciais dos efeitos nefastos das notícias falsas e difamações viabilizadas pelo mau uso de plataformas de mídias sociais e mensageria, porque se autoproclama como uma lei que institui liberdade, responsabilidade e transparência na internet. Todavia, isso não parece totalmente correto. Diga-se, de antemão, que liberdade de expressão e comunicação não se estabelece nessa lei, porque ela já está constitucionalmente garantida. Ao restringir a aplicação da futura lei a apenas grandes provedores de aplicação de internet, deixa de fora malfeitos praticados individualmente por qualquer cidadão ou empresa na internet, fora dessa característica de grande provedor de aplicação. O certo seria dizer que essa lei regula a atividade dos grandes provedores de aplicação e não exatamente os deveres das pessoas no uso das plataformas digitais, na proteção dos direitos da personalidade e direitos difusos e coletivos. O foco da responsabilidade do “dever de cuidado” (o “duty of care”) mencionado no PL e aplicável às plataformas é: crimes contra o Estado, atos de terrorismo, induzimento ao suicídio e mutilação, criança e adolescência, racismo, violência contra a mulher e infração sanitária. Em síntese, não parece ser qualquer “fake news” que é o objeto de atenção dessa lei e o que se vê na imprensa é uma comoção enorme como se fosse uma lei redentora dos males que sofrem as pessoas comuns, as empresas e a sociedade civil.
Como um “jabuti” no “PL das Fake New” surgiu a intenção criação do direito de remuneração das empresas jornalísticas pelas “bigtechs”, notadamente como um dever das ferramentas de busca. A ideia é inspirada em novidades ainda não testadas quanto aos efeitos no Canadá (Online News Act) e Austrália (News Media Bargaining Code). As normas noviças do Canadá e Austrália foram o gatilho para se trazer erradamente o tema ao Brasil e acreditando que se estivesse criando “direitos autorais” jornalísticos a bordo do projeto do Fake News. O objetivo da lei canadense (resultado da Bill C-18) é regular os intermediários de notícias digitais com o objetivo de aumentar a justiça no mercado canadense de notícias digitais e contribuir para sua sustentabilidade, incluindo a dos negócios de notícias no Canadá. Ela não cria direitos intelectuais, mas determina o processo de negociação coletiva entre os dois lados. O conceito Australiano também não é baseado em propriedade intelectual autoral, mas sim em direito da concorrência e desequilíbrio econômico, determinando um código de conduta competitiva. Tratou-se de uma emenda à Lei de Competição e Consumo de 2010 daquele país.
Num ato de oportunidade baseada numa premissa falsa de que tais direitos jornalísticos eram um “jabuti autoral”, e portanto, de que a o PL da Fake News tratava de direitos autorais das empresas jornalísticas, surge outro “jabuti”, o da criação de direitos autorais de comunicação ao público de artistas, diretores, roteiristas e produtores audiovisuais, na base do “já que” o assunto autoral está lá, faz-se mais um “puxadinho”. Esse “puxadinho” cujos efeitos financeiros são muito maiores do que os valores do potencial remuneração das empresas jornalísticas (incerto e dependente do interesse de quem usa), acabou criando um entrave enorme que emperrou o processo de aprovação do PL da Fake News. Pior, as editorias jornalísticas passaram a apoiar, sem maiores avaliações críticas, o conteúdo do projeto principal da tal “Lei das Fake News” até que viram que o “puxadinho filhote do jabuti” dos direitos jornalísticos se tornou na verdade a criação de um “elefante” de direitos autorais em cima da árvore dos meios de comunicação digitais, que não se confundem com mídias digitais ou mensageria. O “jabuti” pariu um “elefante”.
Não fosse suficiente a falsidade da premissa, a proposta de criação desses direitos autorais para artistas, tinha ainda como outro pano de fundo a greve dos artistas de audiovisual nos Estados Unidos. A discussão norte americana tem a ver com questões trabalhistas sindicais e a cobrança de “resíduos” que são valores acordados em convenções coletivas de trabalho. Aqui no Brasil resolveu-se trazer um assunto trabalhista americano para a alteração da lei dos direitos autorais, criando um privilégio aos autores e artistas de receberem direitos de comunicação ao público sobre as receitas das plataformas de streaming, igual ocorre já com a música, em todos os segmentos, dando ensejo a que mais quatro entidades de gestão coletiva de direitos de execução pública venham a querer pleitear cobranças de direitos, nos modelos do ECAD (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais). As cobranças do setor da música geralmente correspondem a 2,5% das receitas brutas de cinemas, televisões, televisões por assinatura e plataformas. Basta pensar o que significaria mais quatro entidades com objetivos similares. Será que o custo subiria para 12,5% das receitas brutas? Pior, pelas práticas e regras de direito autoral, normalmente estes direitos já estão negociados (cedidos) pelos artistas e autores ao produtor audiovisual (art.81 e 82 da Lei 9610/1998). A alteração pretendida visa tentar afastar até mesmo os efeitos dos contratos, que são atos jurídicos perfeitos. Desconsiderar contratos é o máximo da insegurança do estado de direito. Restringir os direitos de usar, fruir e dispor dos titulares, que são os elementos patrimoniais de direito de autor, beira à inconstitucionalidade. Chegou-se a flertar com a tentativa de que tais direitos fossem criados à margem do “direito de exclusivo”, que caracteriza o direito de autor, em sua essência.
Para destravar o PL das Fake News foi realizado um transplante legislativo, retirou-se a parte do projeto de direitos jornalísticos e dos direitos autorais e transferiu-se para um projeto em andamento de revisão integral da Lei de Direitos Autorais (PL 2370/2019) que já estava mais rodado no Câmara dos Deputados. Novamente falando das agressões ao devido processo legislativo, jogou-se fora a revisão integral da lei, que por anos tramitou por várias comissões na casa e se substitui pela “costela” tirada do Adão PL das Fake News. Essa “costela” receberá então uma votação de “urgência”, com base num texto substitutivo, que não teve nenhuma discussão oficial com a sociedade, diretamente ao plenário, sob o pretexto de apresentar aperfeiçoamentos no sentido de assegurar o direito à justa remuneração dos titulares de direitos do autor e de direitos conexos sobre os conteúdos audiovisuais utilizados na internet, como se tais direitos não tivessem sido negociados. Mais um exemplo de insegurança jurídica. Nem se sabe a natureza jurídica dos direitos criados em favor das empresas jornalísticas (se autoral ou de proteção à concorrência) e aderiu-se uma remuneração quase “tributária” sobre as receitas das plataformas digitais streaming (que nada tem a ver com as “bigtechs” do PL das Fake News). Os beneficiários não concorrem com o risco do negócio e desconsideram-se os contratos existentes. Se aprovado, é previsível um enorme contencioso para se buscar respeitar contratos e se estabelecer critérios de cobrança proporcionais aos direitos contratados.
Ora, já que se está mexendo com plataformas audiovisuais digitais de streaming, então se aprova mais uma “urgência”, relativa ao PL 8889/2017 (de autoria do Deputado Paulo Teixeira PT/SP) que visa replicar o modelo de regulação da televisão por assinatura, já ultrapassado, para as plataformas de vídeo sob demanda. A votação da “urgência” aconteceu recentemente e foi prometido um novo texto, para substituir o relatório do Deputado André Figueiredo (PDT-CE) de 2021. Vota-se a “urgência”, sem conhecer o texto do projeto que será votado. Por ser uma cópia do modelo da Lei 12.485/2011 (Lei do SeAC) repete todo o receituário intervencionista, controlador e engessado que está causando tantos percalços à competitividade da televisão por assinatura. Repete-se o mesmo erro de travar modelos de negócios, legislar por “tecnologia”, sobrecarregando novamente a ANCINE com atribuições regulatórias desses mercados. A Ancine pagou um preço caro pela sobrecarga que lhe foi acometida pela Lei do SeAC, levando-a a uma crise administrativa sem precedentes, desviando-a do seu foco essencial que é cuidar do fomento do audiovisual brasileiro. O mais grave, a lei (MP 2228-1/2001, art. 3º) diz que compete ao Conselho Superior do Cinema (CSC) definir a política nacional do cinema e aprovar políticas e diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, com vistas a promover sua autossustentabilidade. O CSC no Governo Bolsonaro foi convocado apenas duas ou três vezes (sem poder tomar nenhuma deliberação relevante e sequer votar a revisão do seu regimento interno) e no atual Governo Lula, nenhuma vez foi chamado até agora. As sugestões do CSC sobre o vídeo sob demanda, seja até mesmo as da época do Governo Temer, não foram consideradas. O modelo de atuação positiva, com criação de mecanismos de fomento relevante pelos agentes de streaming e VOD à produção audiovisual brasileira independente já poderia estar implementado há muito tempo. Acaba-se sempre esbarrando na intenção de se replicar padrões já em desuso de regulação baseados no modelo comando-controle.
Essa “urgência” na Câmara do PL 8889/2017, sobre o VOD, ao que parece, é uma disputa contra o tempo, para ganhar tração em relação ao substitutivo do Senador Eduardo Gomes, ao PL 2331/2022 no Senado, que trata da mesma matéria, de autoria do Senador Nelsinho Trad (PSD/MS). No Senado ainda haverá audiências públicas e deveria se ouvir comissões e ter um processo de debates, mas poderá acabar ganhando “urgência” para correr atrás da “urgência” da outra casa em tema semelhante.
Poderia alongar a análise do mérito dos projetos, mas o que sobra é alertar que: (i) o legislativo está utilizando do mecanismo da “urgência” para fazer um by-pass no devido processo democrático de formação das leis; (ii) as urgências são aprovadas sem que os textos sejam conhecidos e debatidos adequadamente; (iii) o cidadão comum e a própria imprensa não tem tido condição de avaliar e discutir o mérito dos textos; (iv) o conteúdo dos projetos tem sido influenciado de forma tecnicamente equivocada, como se tomar direitos competitivos jornalísticos inovadores de outros países, como se fossem direitos autorais; tomar direitos de “resíduos” de natureza trabalhistas de artistas, como se fossem direitos autorais de comunicação ao público; de se dizer que uma lei previne as informações falsas na internet em favor do cidadão comum, quando essa lei que apenas regulará a prática de grandes plataformas relativas a determinados temas, criando uma proteção a agentes políticos, na sua atuação nas redes sociais. Entre “jabutis” e “elefantes” no topo das árvores e “urgências” que são mecanismos de “atalhos”, o sistema jurídico vai sendo alterado sem muita transparência, reflexão e tecnicidade jurídica.