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A avalanche de Projetos de Leis “urgentes” nas mídias e audiovisual entre “jabutis” e “elefantes”

Existe uma crise de segurança jurídica no Brasil, que começa na formação das Leis. O processo legislativo, particularmente nas iniciativas voltadas às mídias sociais, comunicação audiovisual e direitos autorais, está sofrendo atropelos que interferem com a necessidade do debate democrático. Se antes se usava de Medidas Provisórias (como a que criou a Ancine, por exemplo), atualmente o expediente de “democracia artificial” se chama “pedido de urgência”, sem urgência. Vários projetos de lei que tratam de “grão a avião” ou “alfinete a foguete” são protocolados por congressistas e ficam gravitando pelas galerias do Congresso Nacional, anos a fio. De repente, por um fato externo (como aconteceu no caso do Marco Civil da Internet ou no PL da Fake News) ou por um interesse particular ou setorial, vota-se uma “urgência” para a propositura de lei. Tecnicamente a urgência dispensa interstícios, prazos e formalidades regimentais, e pode ser requerida quando se trata de matéria que envolva perigo para a segurança nacional ou providência para atender calamidade pública; para apreciar a matéria na segunda sessão deliberativa ordinária subsequente à aprovação do requerimento; e para incluir matéria pendente de parecer na ordem do dia. Ocorre que uma proposição também pode tramitar com urgência, quando houver apresentação de requerimento nesse sentido, simples assim.

Marcos Alberto S. Bitelli é doutor e mestre em Direito da PUC-SP. (Foto: Divulgação)

A aprovação de “urgência” é feita muitas vezes sem que haja um texto de projeto de lei definitivo conhecido. Dá-se a conhecer do texto no plenário, elimina-se debates e abandona-se a produção técnica anteriormente ocorrida até então, nas casas. Relatórios são apresentados diretamente em plenário, pareceres e emendas, idem. Temas complexos são votados no afogadilho. A discussão do texto é feita por pequenos grupos interessados, minutas circulam, minuto a minuto, extraoficialmente, entre alguns apenas, fora da plataforma oficial do Congresso. Reuniões são ditas feitas entre “as partes interessadas”, que devem chegar a um “consenso”. Com o “consenso”, seja lá entre que “partes”, é colocado em pauta a votação no plenário. Trata-se da nova prática de processo legislativo que muda o modelo do uso desenfreado que se tinha de medidas provisórias com a colocação de “jabutis carona” para incluir um dispositivo estranho à matéria, no texto. Agora, evoluiu porque se substitui um projeto de lei inteiro, num dia, por outro e se vota. O mais grave, quando votado e aprovado, o discurso público é de que a matéria “estava madura, porque estava na casa há vários anos”. Realmente quando se vê o ano que o projeto de lei original foi apresentado ele estava lá há anos, mas quando se lê o conteúdo da lei  votada em urgência, ele é novo, diferente e pouco debatido.

Certamente se dirá que os procedimentos atendem ao devido processo legislativo, porque realizados dentro dos limites do regimento interno das casas. Todavia, se todo poder emana do povo, a sociedade tem direitos relacionados ao processo legislativo através de mecanismos da transparência, debate, participação direta e indireta, que ficam prejudicados quando se usa do expediente da banalização da “urgência” baseado em pura “conveniência” ou pior, quando atingido o consenso entre “partes”. O Congresso não deveria ser um órgão arbitral para dirimir, via criação de leis, conflitos de interesses entre “partes”. Uma sociedade não é feita apenas por duas ou três “partes”. As consequências da criação de direitos e deveres atinge coletiva e difusamente muito mais gente que as “partes”, notadamente o cidadão comum que no final é quem paga sempre a conta dos inúmeros direitos e deveres que são criados sem muita reflexão e acuidade jurídica.

O projeto da chamada “Lei das Fake News (PL 2630/2020), que fez exsurgir o de criação de direitos autorais e direitos de mídias jornalísticas e os projetos de regulação do vídeo sob demanda são exemplos disso. Nessa toada da “urgência” também deverá vir os projetos de cota de tela de cinema e a prorrogação de cota de tela da televisão por assinatura (o SeAC).

Pode-se dizer até que há “fake News” no PL da Fake News. Lembro que no mesmo dia 27 de abril deste ano, enquanto debatia, como acadêmico, a Liberdade de Expressão no Ecossistema Digital na Oficina 3 no trabalho de pesquisa encomendado à UNB, pelo Governo Federal via Anatel, sobre o tema, o Congresso corria para votar a sua urgência, com um novo texto. Naquela oportunidade, quando se ouvia dos jornalistas sobre o PL, parecia que ele resolveria todos os nossos problemas diários como vítimas diretas, indiretas ou potenciais dos efeitos nefastos das notícias falsas e difamações viabilizadas pelo mau uso de plataformas de mídias sociais e mensageria, porque se autoproclama como uma lei que institui liberdade, responsabilidade e transparência na internet. Todavia, isso não parece totalmente correto. Diga-se, de antemão, que liberdade de expressão e comunicação não se estabelece nessa lei, porque ela já está constitucionalmente garantida. Ao restringir a aplicação da futura lei a apenas grandes provedores de aplicação de internet, deixa de fora malfeitos praticados individualmente por qualquer cidadão ou empresa na internet, fora dessa característica de grande provedor de aplicação. O certo seria dizer que essa lei regula a atividade dos grandes provedores de aplicação e não exatamente os deveres das pessoas no uso das plataformas digitais, na proteção dos direitos da personalidade e direitos difusos e coletivos. O foco da responsabilidade do “dever de cuidado” (o “duty of care”) mencionado no PL e aplicável às plataformas é: crimes contra o Estado, atos de terrorismo, induzimento ao suicídio e mutilação, criança e adolescência, racismo, violência contra a mulher e infração sanitária. Em síntese, não parece ser qualquer “fake news” que é o objeto de atenção dessa lei e o que se vê na imprensa é uma comoção enorme como se fosse uma lei redentora dos males que sofrem as pessoas comuns, as empresas e a sociedade civil.

Como um “jabuti” no “PL das Fake New” surgiu a intenção criação do direito de remuneração das empresas jornalísticas pelas “bigtechs”, notadamente como um dever das ferramentas de busca. A ideia é inspirada em novidades ainda não testadas quanto aos efeitos no Canadá (Online News Act) e Austrália (News Media Bargaining Code). As normas noviças do Canadá e Austrália foram o gatilho para se trazer erradamente o tema ao Brasil e acreditando que se estivesse criando “direitos autorais”  jornalísticos a bordo do projeto do Fake News. O objetivo da lei canadense (resultado da Bill C-18) é regular os intermediários de notícias digitais com o objetivo de aumentar a justiça no mercado canadense de notícias digitais e contribuir para sua sustentabilidade, incluindo a dos negócios de notícias no Canadá. Ela não cria direitos intelectuais, mas determina o processo de negociação coletiva entre os dois lados. O conceito Australiano também não é baseado em propriedade intelectual autoral, mas sim em direito da concorrência e desequilíbrio econômico, determinando um código de conduta competitiva. Tratou-se de uma emenda à Lei de Competição e Consumo de 2010 daquele país.

Num ato de oportunidade baseada numa premissa falsa de que tais direitos jornalísticos eram um “jabuti autoral”, e portanto, de que a o PL da Fake News tratava de direitos autorais das empresas jornalísticas,  surge outro “jabuti”, o da criação de direitos autorais de comunicação ao público de artistas, diretores, roteiristas e produtores audiovisuais, na base do “já que” o assunto autoral está lá, faz-se mais um “puxadinho”.  Esse “puxadinho” cujos efeitos financeiros são muito maiores do que os valores do potencial remuneração das empresas jornalísticas (incerto e dependente do interesse de quem usa), acabou criando um entrave enorme que emperrou o processo de aprovação do PL da Fake News.  Pior, as editorias jornalísticas passaram a apoiar, sem maiores avaliações críticas, o conteúdo do projeto principal da tal “Lei das Fake News” até que viram que o “puxadinho filhote do jabuti” dos direitos jornalísticos se tornou na verdade a criação de um “elefante” de direitos autorais em cima da árvore dos meios de comunicação digitais, que não se confundem com mídias digitais ou mensageria. O “jabuti” pariu um “elefante”. 

Não fosse suficiente a falsidade da premissa, a proposta de criação desses direitos autorais para artistas, tinha ainda como outro pano de fundo a greve dos artistas de audiovisual nos Estados Unidos. A discussão norte americana tem a ver com questões trabalhistas sindicais e a cobrança de “resíduos” que são valores acordados em convenções coletivas de trabalho. Aqui no Brasil resolveu-se trazer um assunto trabalhista americano para a alteração da lei dos direitos autorais, criando um privilégio aos autores e artistas de receberem direitos de comunicação ao público sobre as receitas das plataformas de streaming, igual ocorre já com a música, em todos os segmentos, dando ensejo a que mais quatro entidades de gestão coletiva de direitos de execução pública venham a querer pleitear cobranças de direitos, nos modelos do ECAD (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais). As cobranças do setor da música geralmente correspondem a 2,5% das receitas brutas de cinemas, televisões, televisões por assinatura e plataformas. Basta pensar o que significaria mais quatro entidades com objetivos similares. Será que o custo subiria para 12,5% das receitas brutas? Pior, pelas práticas e regras de direito autoral, normalmente estes direitos já estão negociados (cedidos) pelos artistas e autores ao produtor audiovisual (art.81 e 82 da Lei 9610/1998). A alteração pretendida visa tentar afastar até mesmo os efeitos dos contratos, que são atos jurídicos perfeitos. Desconsiderar contratos é o máximo da insegurança do estado de direito. Restringir os direitos de usar, fruir e dispor dos titulares, que são os elementos patrimoniais de direito de autor, beira à inconstitucionalidade. Chegou-se a flertar com a tentativa de que tais direitos fossem criados à margem do “direito de exclusivo”, que caracteriza o direito de autor, em sua essência.  

Para destravar o PL das Fake News foi realizado um transplante legislativo, retirou-se a parte do projeto de direitos jornalísticos e dos direitos autorais e transferiu-se para um projeto em andamento de revisão integral da Lei de Direitos Autorais (PL 2370/2019) que já estava mais rodado no Câmara dos Deputados. Novamente falando das agressões ao devido processo legislativo, jogou-se fora a revisão integral da lei, que por anos tramitou por várias comissões na casa e se substitui pela “costela” tirada do Adão PL das Fake News. Essa “costela” receberá então uma votação de “urgência”, com base num texto substitutivo, que não teve nenhuma discussão oficial com a sociedade, diretamente ao plenário, sob o pretexto de apresentar aperfeiçoamentos no sentido de assegurar o direito à justa remuneração dos titulares de direitos do autor e de direitos conexos sobre os conteúdos audiovisuais utilizados na internet, como se tais direitos não tivessem sido negociados. Mais um exemplo de insegurança jurídica. Nem se sabe a natureza jurídica dos direitos criados em favor das empresas jornalísticas (se autoral ou de proteção à concorrência) e aderiu-se uma remuneração quase “tributária” sobre as receitas das plataformas digitais streaming (que nada tem a ver com as “bigtechs” do PL das Fake News). Os beneficiários não concorrem com o risco do negócio e desconsideram-se os contratos existentes. Se aprovado, é previsível um enorme contencioso para se buscar respeitar contratos e se estabelecer critérios de cobrança proporcionais aos direitos contratados.

Ora, já que se está mexendo com plataformas audiovisuais digitais de streaming, então se aprova mais uma “urgência”, relativa ao PL 8889/2017 (de autoria do Deputado Paulo Teixeira PT/SP) que visa replicar o modelo de regulação da televisão por assinatura, já ultrapassado, para as plataformas de vídeo sob demanda. A votação da “urgência” aconteceu recentemente e foi prometido um novo texto, para substituir o relatório do Deputado André Figueiredo (PDT-CE) de 2021. Vota-se a “urgência”, sem conhecer o texto do projeto que será votado. Por ser uma cópia do modelo da Lei 12.485/2011 (Lei do SeAC) repete todo o receituário intervencionista, controlador e engessado que está causando tantos percalços à competitividade da televisão por assinatura. Repete-se o mesmo erro de travar modelos de negócios, legislar por “tecnologia”, sobrecarregando novamente a ANCINE com atribuições regulatórias desses mercados. A Ancine pagou um preço caro pela sobrecarga que lhe foi acometida pela Lei do SeAC, levando-a a uma crise administrativa sem precedentes, desviando-a do seu foco essencial que é cuidar do fomento do audiovisual brasileiro. O mais grave, a lei (MP 2228-1/2001, art. 3º) diz que compete ao Conselho Superior do Cinema (CSC) definir a política nacional do cinema e aprovar políticas e diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, com vistas a promover sua autossustentabilidade. O CSC no Governo Bolsonaro foi convocado apenas duas ou três vezes (sem poder tomar nenhuma deliberação relevante e sequer votar a revisão do seu regimento interno) e no atual Governo Lula, nenhuma vez foi chamado até agora. As sugestões do CSC sobre o vídeo sob demanda, seja até mesmo as da época do Governo Temer, não foram consideradas. O modelo de atuação positiva, com criação de mecanismos de fomento relevante pelos agentes de streaming e VOD à produção audiovisual brasileira independente já poderia estar implementado há muito tempo. Acaba-se sempre esbarrando na intenção de se replicar padrões já em desuso de regulação baseados no modelo comando-controle.

Essa “urgência” na Câmara do PL 8889/2017, sobre o VOD, ao que parece, é uma disputa contra o tempo, para ganhar tração em relação ao substitutivo do Senador Eduardo Gomes, ao PL 2331/2022 no Senado, que trata da mesma matéria, de autoria do Senador Nelsinho Trad (PSD/MS). No Senado ainda haverá audiências públicas e deveria se ouvir comissões e ter um processo de debates, mas poderá acabar ganhando “urgência” para correr atrás da “urgência” da outra casa em tema semelhante.

Poderia alongar a análise do mérito dos projetos, mas o que sobra é alertar que: (i) o legislativo está utilizando do mecanismo da “urgência” para fazer um by-pass no devido processo democrático de formação das leis; (ii) as urgências são aprovadas sem que os textos sejam conhecidos e debatidos adequadamente; (iii) o cidadão comum e a própria imprensa não tem tido condição de avaliar e discutir o mérito dos textos; (iv) o conteúdo dos projetos tem sido influenciado de forma tecnicamente equivocada, como se tomar direitos competitivos jornalísticos inovadores de outros países, como se fossem direitos autorais; tomar direitos de “resíduos” de natureza trabalhistas de artistas, como se fossem direitos autorais de comunicação ao público; de se dizer que uma lei previne as informações falsas na internet em favor do cidadão comum, quando essa lei que apenas regulará a prática de grandes plataformas relativas a determinados temas, criando uma proteção a agentes políticos, na sua atuação nas redes sociais. Entre “jabutis” e “elefantes” no topo das árvores e “urgências” que são mecanismos de “atalhos”, o sistema jurídico vai sendo alterado sem muita transparência, reflexão e tecnicidade jurídica.

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