A volta do autor audiovisual, agora no Congresso Nacional

Em 1954, um jovem cinéfilo, muito cioso do estilo dos filmes a que assistia, publicou um artigo numa revista francesa sustentando que o diretor cinematográfico era um autor na medida em que imprimia sua visão estética pessoal à obra, ainda que esta fosse realizada por empresas e numerosas pessoas. Era a defesa teórica de um modelo estético pessoal, em contraposição ao modelo industrial que se consolidou nas décadas anteriores em Hollywood, onde os filmes eram realizados como produtos em unidades horizontais de produção nas quais os executivos de estúdios mandavam – e, não por acaso, os filmes eram reconhecidos pelos estúdios a que pertenciam.

Advogado no Bialer Falsetti Associados (BFA). Doutorando em Direito na Universidade Pompeu Fabra (Espanha). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (FD-USP) e Universidade Lumière Lyon 2 (França). Graduado e Mestre em Audiovisual pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade de São Paulo (ECA-USP), respectivamente. Co-fundador do Nelson 121 (Grupo de Estudos sobre Direito do Audiovisual da FD-USP).

De qualquer maneira, nos anos seguintes, o jovem acabou mesmo se estabelecendo como um autor cinematográfico: François Truffaut se tornou um dos diretores-chave da Nouvelle Vague com filmes que repetiam seus traços estéticos e refletiam sobre sua vida, como o clássico Os Incompreendidos (1959). Do outro lado do Atlântico, a indústria hollywoodiana passava por um momento de transição, em que já não tinha a dominância dos anos 1930 e 1940, o que deu espaço, também devido à proliferação de filmes autorais ao redor do mundo, para a abertura do debate: afinal, quem é o autor de uma obra audiovisual? Seria o diretor ou o estúdio? Ou ainda o roteirista? Quem sabe também o compositor da trilha sonora?

Desde então, o debate teve inúmeras ramificações, quase sempre para definir quem deveria responder (i.e., ser louvado ou defenestrado) pelo conteúdo de um filme, ou ainda a quem caberia o controle criativo da obra em sua produção. Em suma, preocupações de ordem estética. Entretanto, nos últimos dias, atos de políticos e representantes de artistas e empresas do audiovisual trouxeram o debate para um lugar com sofisticação intelectual ligeiramente abaixo da revista de Truffaut: o Congresso Nacional Brasileiro.

A falta da abstração típica da sofisticação intelectual, no entanto, não é um problema – na verdade, é o próprio atrativo. Porque a discussão diz respeito a algo pouco estético, mas muito tangível: afinal, quem teria direito à remuneração proporcional por comunicação ao público das obras audiovisuais?

O PL 2370/2019, embora já tenha não tão sofisticadamente incorporado temas estranhos a direitos autorais, propõe acima de tudo a criação de uma remuneração proporcional pela utilização de obras audiovisuais, principalmente na internet, que funcionaria como uma remuneração adicional àquela contratual inicial e seria paga ao longo do tempo por critérios como a quantidade da utilização das obras em serviços de internet. Segundo o texto ora em jogo, fariam jus a esta remuneração proporcional em obra audiovisual: diretores, roteiristas, argumentistas, compositores de trilha sonora e, na condição de titulares originários sem ser autores, atores/atrizes, demais intérpretes e executantes e produtores audiovisuais (neste último caso, pessoa física ou até mesmo jurídica). A depender do desenrolar do debate, até mesmo empresas de radiodifusão e produtores fonográficos (mais uma vez, pessoas físicas ou jurídicas) poderiam se somar a esta lista

Assim, ecoando indiretamente o clássico debate sobre autoria no cinema, os parlamentares serão levados a em breve fazer uma escolha que, de um modo ou de outro, terá profundas consequências para o financiamento da atividade criativa no Brasil nos próximos anos. Se forem tocados pela defesa do artista pessoa física de Truffaut, colocarão o Brasil ainda mais próximo da França, onde a propriedade sobre obras é exclusivamente atribuída às pessoas de carne e osso que efetivamente produzem arte. Por outro lado, se forem seduzidos pelo argumento econômico da remuneração de empresas, terão assentado mais um pequeno tijolo para criar um ambiente de negócios à maneira dos Estados Unidos, onde as empresas que organizam o processo produtivo podem titularizar obras audiovisuais.

Seja como for, pelo jeito, no final vai ter bolo. O que ainda se discute, para além de pratos, talheres e guardanapos, é quem se sentará à mesa no bistrô ou fast-food que nos espera na próxima esquina.

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