Por diálogo racional sobre tributação infralegal do VOD pela Ancine

Hoje vive-se a era da pós verdade, que significa dizer que os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Portanto, ainda que a dualidade do ser humano em sua composição nos revista de emoção e paixão de um lado e racionalidade de outro, para a leitura deste texto é necessário que o leitor procure abdicar por um instante de suas paixões e atente para as questões técnicas aqui suscitadas antes de formar suas convicções.

* Professor de Direito Regulatório na pós graduação da FACHA e graduação na FTESM; especialista em regulação da Ancine, atualmente cedido para a Defensoria Pública da União da Baixada Fluminense – RJ; mestrando em Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.

A partir desta premissa passo a análise técnica do conteúdo da Medida Provisória nº. 1.018/2020, especificamente o da Emenda nº. 1 proposta pelo deputado Marcelo Ramos PL/AM que sugere a inclusão do art. 33-A na MP 2.228-1/2001, aduzindo que "a oferta de vídeo por demanda, independente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o artigo 32, inciso I, da mesma Lei, não se inclui na definição de 'outros mercados'".

Para melhor situar o leitor expondo a controvérsia que deu ensejo a sugestão desta emenda legislativa, cumpre rememorar a discussão travada a partir do ano de 2017 quando publiquei um artigo em agosto em uma Revista Jurídica questionando o fato de a Ancine ter decidido estender a tributação da Condecine-Título para as obras publicitárias na Internet e também para o vídeo por demanda utilizando-se do conceito jurídico indeterminado denominado "outros mercados", disposto na alínea "e", inciso I do art. 33 da MP 2.228-1/2001.

Este artigo publicado ainda em 2017, deu ensejo diversas discussões e desdobramentos que culminou com a revogação da Instrução Normativa que havia instituído a tributação pela Publicidade na Internet com a Publicação da IN 147 de 22 de janeiro de 2019, após ter tido a sua vigência suspensa por diversas vezes. Por outro lado, o vídeo por demanda acabou não tendo a mesma sorte, haja vista que apesar de estar em situação idêntica, estava válida no âmbito regulatório (a despeito de eventual inconstitucionalidade que será tratada neste texto e a despeito da ausência de cobrança por parte do órgão regulador).

A respeito do tributo em si, cumpre esclarecer que a Condecine-Título, é uma espécie de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE que, diferentemente da Condecine-Remessa, tem seu espectro de incidência recaindo sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado, disposto no art. 33 da MP 2.228-1/2001, que são: as salas de exibição, o vídeo doméstico, a TV por assinatura, a TV aberta e os "outros mercados".

Assim, quando o art. 33 da MP 2.228-1/01 trata dos segmentos de mercado em relação aos quais a Condecine-Título será devida, ele acaba descrevendo não somente o elemento quantitativo tributário, mas também se referindo ao próprio fato gerador do tributo (hipótese de incidência). Logo, caso haja a ocorrência de qualquer um dos verbos descritos nos incisos do art. 32 da MP 2.228-1/01, caso os mesmos não estejam inseridos em quaisquer dos segmentos de mercado descritos no art. 33 da MP 2.228-1/01, não incidirá o tributo (não ocorre o fato descrito no antecedente da norma tributária).

Dito de outra maneira, a Condecine-Título é eivada de fato gerador composto por dois dispositivos legais, justamente pela necessidade de realizar um cotejo entre os arts. 32 e 33 da MP 2.228-1/01 para aferição da efetiva incidência do tributo, amoldando a hipótese de incidência ao caso concreto mediante a verificação do segmento de mercado em que ocorreu o fato imponível tributário.

Portanto, quando a Instrução Normativa da Ancine – por exemplo, no caso da IN 95/2011, no que tange o dispositivo com redação dada pela IN 101/2012 –, "cria" de modo equivocado um segmento de mercado para ser supostamente enquadrado na alínea "e" do inciso I do art. 33 da MP 2.228-1/2001 que trata de "outros mercados", ela termina construindo artificialmente e, por vias transversas, uma nova hipótese de incidência tributária que não figurava originalmente na lei. Ou seja, a agência "fabrica" um fato gerador abstrato por instrumento infralegal, violando o disposto no art. 149, parágrafo 4º da Constituição.

O estratagema é sutil, pois no caso em tela há uma evasão regulatória oblíqua por fraude à constituição, haja vista que o agente regulador se apoia em uma norma de cobertura, que seria o disposto no art. 33, I, "e" da MP 2.228-1/2001, que lhe dá aparência de legalidade, para violar o art. 149, § 4º e o art. 150, I da Constituição Federal. O que o ordenamento jurídico brasileiro não permite.

Explicando de uma forma ainda mais clara, a agência se ampara em uma suposta norma de cobertura (art. 33, I, "e" da MP 2.228-1/2001) sugerindo que o VOD estaria inserido no conceito de "outros mercados", parecendo estar ancorada na lei. Por outro lado, ao instituir novas hipóteses de incidência tributária, acaba violando o disposto no art. 149, parágrafo 4º da Constituição Federal, pois vai elencando a seu bel prazer novas hipóteses de incidência em seu cabide potencialmente infinito. O que gera insegurança jurídica no mercado.

Frise-se que não é a finalidade da política pública obrigar o operador da plataforma a realizar uma espécie de escolha de Sofia, no sentido de enxugar o máximo seu catálogo e ter que escolher, por exemplo, entre "O Auto da Compadecida", de Guel Arraes, ou "Central do Brasil", de Walter Salles. Ou ainda, entre "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodanzky, ou "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles. Ao contrário dessa escolha trágica, a ideia deve ser a de permitir justamente a inclusão de todos os títulos, propiciando o aumento da diversidade, a expansão do mercado e a melhor experiência possível para o consumidor.

Portanto, a partir da análise técnica da ação regulatória da Ancine resta evidenciado que a alteração legislativa é salutar e desnecessária. Não é preciso que o legislador diga que não se pode descumprir a norma constitucional para que esta não seja violada pelo regulador através de suas normas infra legais. Chega a ser ululante!

Por outro lado, não deixa de ser "conveniente" para a atual administração da Ancine que suposta mudança de paradigma venha pela via legislativa e que possa ser utilizada politicamente como uma forma de resolver a questão do passivo que, em tese, estaria sujeita a repetição do indébito tributário e também justificar a sua inércia no enforcement para realizar a cobrança da Condecine instituída por mecanismo infralegal.

E tal assertiva fica clara a partir da novel redação truncada da referida emenda nº. 1 da Medida Provisória n. 1.018/2020 que inclui a expressão "(…) a partir da vigência da contribuição de que trata o artigo 32 (…)" no intuito de conceder eficácia retroativa a norma interpretativa.

A esse respeito, cabe assinalar que o fato de o legislador desautorizar expressamente a criação de "outros mercados" no vídeo por demanda não permite por interpretação a contrário sensu a instituição de tributos por instrução normativa, haja vista que a hipótese de incidência tributária só pode ser criada pelo poder legislativo, em consonância com o art. 149, § 4º e o art. 150, I da Constituição Federal. E muito menos há que se falar em "isenção fiscal", pois o tributo jamais foi instituído por lei. Já dizia Aristóteles por intermédio do princípio da não contradição que uma coisa não pode "ser" e "não ser" ao mesmo tempo.

Vale dizer que a alínea "e" do inciso I do art. 33 da MP 2.228-1/2001 não é um imenso "cabide" que pode ir acomodando novos "segmentos de mercado" de acordo com a vontade do agente regulador sob pena de eternizar uma situação precária de insegurança jurídica e falta de previsibilidade no mercado ao se "instituir tributos" por regulamento. Portanto, entende-se aqui que ainda que haja alteração legislativa, ainda assim é cabível a repetição de indébito pela instituição infralegal de tributos ao arrepio da Constituição Federal.

Diante do exposto, por mais que seja difícil para a sociedade da informação extasiada pelas próprias paixões e convicções pessoais abdicar do discurso militante apaixonado e vazio das redes sociais, é fundamental para o desenvolvimento de um mercado tão heterogêneo e com atores tão distintos como o mercado audiovisual que se permita dialogar com todas as partes e que se eleve o nível dos debates para o campo técnico, com o consequente discurso lógico e racional.

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